Quando o Consumo consome o Consumidor

Desde seu surgimento pelas mãos de John Keynes, a macroeconomia tem como objetivo central o crescimento econômico à espera dos sufocantes padrões de consumo. De forma equivocada, muitos ainda acreditam que a abundância material “produz” bem-estar e permite melhorar substancialmente a vida das pessoas, cabendo à atividade econômica ser a protagonista principal desse filme cujo enredo é conhecido: manda quem pode (as forças de mercado) e obedece quem tem juízo (o bolso dos consumidores).

No afã em se produzir a qualquer preço para o atendimento das propagadas necessidades humanas – cada vez mais ilimitadas – a política econômica faz o jogo do mercado e, assim, contribui para transformar artificialmente desejos em necessidades. Para isso, põe a roda da economia para girar com mais força visando o alcance de taxas mais elevadas em termos de produção de bens e serviços; afinal, apoiada por ampla propaganda televisiva, o consumo precisa acontecer para o regozijo da classe produtora.

Mas, como nem tudo que reluz é ouro, nesse meandro produção-consumo não há como refutar uma assertiva: para crescer economicamente (produzir mais) é necessário usar o meio ambiente (fatores naturais) e, em decorrência desse “uso” crescer significa, grosso modo, “destruir”.

Assim, essa premissa pode ser reescrita de outra forma: Consome-se, logo, destrói-se. Produz-se mais, logo, agride-se mais.

Pois bem. Numa sociedade centrada no uso e na força do dinheiro como mecanismo potencializador de qualquer consumo temos a premissa de que “o consumo consome o consumidor”, como diz profeticamente Frei Betto em “A Mosca Azul”.

Diante disso, uma crucial e instigadora pergunta se apresenta como pertinente: como produzir mais para satisfazer desejos e necessidades de consumo se há visivelmente limites e pré-condições impostas pela natureza que impossibilitam esse atendimento em escala crescente?

Como existe o desejo em prontamente atender as necessidades mercadológicas impostas pelo apelo consumista, que por sinal são cada vez mais vorazes, primeiramente, em respeito ao bom senso, deve-se ter em conta aquilo que Clóvis Cavalcanti, especialista em economia ambiental, chama a atenção com bastante veemência: “mais economia implica menos ambiente”.

Isto posto, se é verossímil o fato de que o consumo consome o consumidor, a macroeconomia do consumo consome a natureza e, por esse “consumismo” desenfreado de recursos naturais (limitados, finitos) por parte da atividade econômico-produtiva, em breve, sem exageros retóricos, não haverá mais natureza, não haverá mais economia, mais mercado, produtos, consumidor, vida.

Em nome do “crescimento econômico” a destruição ambiental tem se apresentado com mais veemência nos últimos tempos, ainda que muitos insistam em fechar os olhos para tal questão. O certo é que mais produção material – com a atual matriz energética largamente usada – hoje em dia se traduz como sinônimo de mais emissões de gases de efeito estufa. É imprescindível conter o total dessas emissões, caso contrário, elevando-se a temperatura média do planeta teremos mais enchentes, derretimento de geleiras, mais secas.

Na esteira dessa análise, a economia tradicional beira a cegueira e incorre no crasso e estúpido erro ao confundir e não diferenciar crescimento (quantitativo) de desenvolvimento (qualitativo). De um lado, têm-se a receita tradicional da macroeconomia keynesiana: buscar o crescimento econômico para atenuar os desequilíbrios em relação à taxa de emprego e renda. Do outro, têm-se a questão ecológica que ressalta a não existência de recursos naturais em quantidades disponíveis para a ocorrência desse tal crescimento. O que não se coloca claramente é que crescimento econômico, como diz Ricardo Abramovay em “Muito Além da Economia Verde”, não é uma fórmula universal para se chegar ao bem-estar. Não se nega a importância do crescimento da economia; o que não se pode é fazer dele uma “finalidade”, pois o mesmo é apenas um “meio” para que a vida econômica prospere.

Desse embate teórico, algo tem de ficar bem esclarecido: uma maior produção econômica irá derrubar mais florestas, irá agredir o solo, usar mais água, o ar, a energia, teremos mais aumentos de emissões globais de gases de efeito estufa e teremos, sim, a vida colocada em risco pelo desequilíbrio climático decorrente disso tudo. Continuando com a falta de lucidez por parte da economia tradicional, a insistência em crescer economicamente além dos limites significa ainda aumentar o intercâmbio global de produtos, base essa do atual e avassalador modelo de globalização que recomenda, na ponta final, que a “receita para o sucesso” é ter sempre a geladeira repleta de produtos, de preferência importados. Ora, é simplesmente insano fazer com que um ketchup, por exemplo, vindo dos Estados Unidos “viaje”, às vezes, mais de 10 mil quilômetros para chegar ao mercado brasileiro quando poderia ser produzido domesticamente e “viajar” menos de 1.000 km para chegar às mesas dos brasileiros.

No entanto, para esse modelo de globalização que corre às soltas atestando que o produto importado é a característica mais visível da modernidade, pouca relevância tem o gasto energético intenso envolvido nessa “viagem” de fora para cá do ketchup. Pouco importa se isso é altamente agressivo sobre o meio ambiente e potencialmente gerador de CO2.

Nessa mesma linha de raciocínio, vejamos outro exemplo de como o consumo consome o consumidor e junto a isso a economia consome a natureza pondo a estabilidade climática à beira do precipício: a fruta nectarina produzida em Badajoz, na Espanha, “viaja” quase 400 quilômetros de caminhão queimando combustível até chegar a Portugal, no Porto de Lisboa. De lá vem ao Brasil, chegando ao Porto de Santos vinte dias depois. Alguém consegue imaginar o quanto foi gasto em termos energéticos nesse processo? Isso é inadmissível numa sociedade que já consome em energia e recursos o equivalente a um planeta e 1/3.

Ora, acatar esse modelo de consumo desenfreado (que não passa de um parâmetro falso de bem-estar) “patrocinado” pela macroeconomia da destruição da base natural e “propagandeado” por uma estrutura midiática que movimenta bilhões de dólares e se legitima por gordos lucros é continuar jogando terra sobre a capacidade de se obter desenvolvimento sustentável, pois isso está longe de melhorar a qualidade de vida das pessoas. Ao contrário: isso apenas reforça a ideia mercadológica (e sabemos que os mercados nunca promoveram bem-estar) e potencializa o triste fato do consumo consumir o consumidor possibilitando a chegada mais rápida da era do caos em termos de qualidade de vida relacionada aos serviços ecossistêmicos.

 

Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor de economia da FAC-FITO e do UNIFIEO, em São Paulo. Mestre pela USP com passagem pela Universidade de Havana (Cuba)

prof.marcuseduardo@bol.com.br

“Passarinho” e Virgulino Fúria de Titãs

O povo santanense, civilização surgida às margens do Nilo do sertão, o rio Ipanema, cujo delta em terras alagoanas, banha o vale do Ka-Içara. Santana do Ipanema de três raças. Os nativos primórdios deram nome às duas principais fontes de vida, à mata chamaram de Ka-á-tinga e o curso d’água de “Águas amargas”. Cobiçada pelos donatários, a rica e fértil planície seria incorporada à sesmaria dos irmãos Vieira. Ocupação que marca a chegada do homem genuinamente branco, de origem portuguesa. Em meados do século XVIII chegariam às primeiras levas de negros escravos. Mercantilizados na feira livre, em meio a toldas de legumes, frutas, cereais e a manufaturas de couro e madeira. Mercadoria valorada conforme a condição física que se encontravam. Pelos senhores feudais comprados para os mais variados trabalhos. Agropastoril ou doméstico, segundo suas habilidades.

Nossa história, vem de um século depois que a princesa Isabel decretou o fim da escravidão negreira, em terras brasileiras. Num tempo em que índios e negros legendavam suas sagas. Eram maioria, e poucos se atinham disso. Tempo em que negros e nativos mais prolíferos e sem posses, acabariam pelo inchamento da plebe, empurrados pra periferia. Margearam a reboque o braço do rio. A montante de sua várzea direita a cidade serpenteou, se expandiu. No centro, soergueram sobrados, instalaram entreposto, empórios e intendência municipal. O padre reconheceu firma, em livros cartoriais registrou a freguesia de Senhora Sant’Ana, ergue a Matriz. A periferia alastrada em mocambos. Do tronco tupi-guarany, os nativos aqui existentes se disseminaram da linhagem I-atés ou Kaá-r-nijós que significava “Os que habitam as margens da água forte” e “nascidos do ventre da mata”.

Índios

Santana do Ipanema, imenso legado indígena herdou. Costumes, cultura muito ainda se teria deles para sempre. Nomes de ruas, lendas, plantas: Baraúna, Maniçoba, Velame, Kaa-mo-xinga. Famílias tradicionais de consolidadas raízes aborígenes, Cinésio conhecido por “Caboclo”. Professor Valter, cujas veias, flui sangue da descendência I-até. “Índio” ex-goleiro do Ipanema Atlético Clube. Aman-tá -y- Çá que significa “mãe-da-chuva-que-vê”, era minha avó, cuja mãe viveu e a criou numa aldeia. Aportuguesado, seu nome virou Amância de Sá. Índio se conhece pela cor da pele amarronzada, o cabelo, a compleição facial. Deixou pra civilização o hábito de cultivar milho, usar plantas alienantes como a diamba, em rituais de cura. O tabaco para selar acordo de amizade entre tribos. Deles que depois terminariam sendo estivadores, por não terem tido oportunidade de estudar. “Carrinho” índio”, “Passarinho”, dentre outros, ganhavam a vida no carrego e descarrego de secos e molhados, dos caminhões que chegavam e saiam todos os dias, levando e trazendo o progresso pra Santana. Açúcar, café, e manufaturados. E levavam feijão, milho e algodão. “Passarinho” era um de estatura física fenomenal, braços fantasticamente musculosos. Seu corpanzil titânico daria a atribuir-lhe feitos formidáveis, enaltecido pelos contadores de causos nas noitadas de luar à praça São Pedro. Narrativas apoteóticas de suas caçadas. Numa delas teria enfrentado a cobra Norato, uma serpente gigante de dez metros de comprimento, que engolia um boi inteiro. “Passarinho” teria matado-a na ocasião que dera uma cheia no Ipanema, ao tentar atravessar o rio a nado pelo poço das corredeiras próximo a foz do riacho João Gomes a bichona se atracou com ele dentro d’água, o ofídio gigante teria o engolido. Dentro das entranhas do réptil, sacou seu punhal e destroçou suas tripas. Uma vez livre teria nadado chegando são e salvo a margem do rio.

Negros

Os primeiros autenticamente negros em Santana do Ipanema, teria vindo de duas linhagens Bantus e Nagôs traficados da mãe África. Era fácil diferençar uns dos outros, os de origem Nagôs, vindos de Nova Guiné e Guiné Bissau, eram negros retintos, o pretume da pele era tanto que reluzia. Bem alimentados, aumentavam no porte físico. Muito prolíferos. Arredios no manejo com lavouras preferiam trabalhos domésticos, tinham dificuldade de aprender nossa língua. Exímio no manejo de armas brancas. Sonhavam com a liberdade por isso eram muito fujões. Ficaram conhecidos como a raça dos Baus. Bantus eram originados de Moçambique e Angola, eram negros fubentos, a pele parecia coberta de cinza, não eram dóceis com seus donos. Praticavam rituais de macumba, com holocaustos de animais e fetos humanos. Eram bons capoeiristas. Ficariam conhecidos e temidos pela fama de antropófagos, a raça dos Bius.

A Briga

Foi num final de tarde, de um dia de sábado. Mais um dia de feira livre findo. Mangaieiros começavam a desarmar suas toldas. Início da Rua Tertuliano Nepomuceno, quase à porta do mercado da Carne. A via ficava imunda, frutas e legumes estragados jaziam no leito. Cães vadios catavam o comer no meio dos despojos do burgo. Conhecida também como “Rua dos porcos”. Leitões e galinhas – entre grunhidos e cacarejos, fezes e lama – vendidos. Aquela artéria acessava a Intendência Municipal e o baixo meretrício. Virgulino um estivador morador do mocambo da Lagoa do Junco – da raça dos Bius – com “Passarinho” se encontrou por acaso. Estavam intrigados por uma desavença anterior. Por ter ingerido vários grogues de cachaça Virgulino esbarrou com violência contra seu desafeto. Isso foi suficiente para darem início a uma briga.

Entre gritos da populaça e curiosos, os raçudos titânicos se atracaram. O choque de músculos produzia quase um som metálico, como de espadas. Golpes magníficos de capoeira desferidos atingiam o alvo. Tenazes braços, claves de bronze, catapultavam bancas dos mascates. Fantasticamente pesadas, flutuavam como se feitas de isopor. Como num passe de mágica, um machado foi parar na mão do índio que vibrou no ar, buscando destroçar carne e osso humano. Conseguindo apenas arrancar um silvo do ar. Virgulino de posse de uma cangalha arremessou-a contra o oponente, atingindo a espádua de “Passarinho” que foi ao chão. Uma vez engalfinhados desferiram golpes um no outro. Numa sincronia e reciprocidade de pura fúria de brutamontes, como se trocassem cortesias. Eis que abrindo passagem entre os espectadores surgiu um homem, trajado em paletó e de gravata, encheu os pulmões de ar, emitiu um grito, que tornaria estático o burburinho. Parado no ar o murro, o golpe a ser desferido congelado. Tudo e todos estratificados por um grito de “parem em nome da lei”. Diante da voz do homem, os gigantes virados estátuas. Quisera, o tempo tornasse em pedra aqueles dois titãs, no meio da rua, eternamente. E ao cimento fresco, o artista autor da obra assinasse: Doutor João Ioiô Filho, juiz de Direito da comarca de Santana do Ipanema.

 

Cada um com sua história

Colegas de todos os nomes e de todos os valores

Todos nós temos um nome, nem sempre exclusivo, mas que nos identifica. No universo, cada criatura é única e o nome é uma importante ferramenta na diferenciação entre os seres. De uma maneira geral todos procuram, uns mais outros menos, dar aos seus filhos um nome que tenha a capacidade de identificá-lo no meio da comunidade onde vive. Alguns desses nomes são mais comuns, fazendo alusão muitas vezes a personalidades que se destacaram ao longo da história, outros são simplesmente inventados, frutos da engenhosidade linguística dos pais da criança, que muitas vezes unem duas palavras, acrescentam letras e sílabas ou simplesmente criam verdadeiros neologismos, de modo que cada um de nós tem sempre uma história sobre a origem dos nossos nomes.

Quando meu pai nasceu, caçula numa família de nove filhos, minha avó Jovita já havia dito que, se o filho fosse homem, seria batizado com o nome de Jugurta… Alguém achou este nome estranho? Por favor sossegue, todos aqueles que ouviram sua pronúncia ou o leram pela primeira vez tiveram a mesma sensação. Muitos pensam tratar-se de um daqueles nomes estranhos, aos ouvidos de hoje, que eram bastante usados no passado ou até mesmo que tratar-se-ia do fruto da imaginação fértil de minha avó. Enganam-se todos. Pelos nomes dados aos irmãos e irmãs de papai, quais sejam: Djalma, Alberto, Albertina, Haroldo, Ana, Hilda, Maria de Lourdes e Celso, nomes usados até nos dias hoje, conclui-se que vovó não era afeita a invenção ou adoção de nomes que possamos considerar como esdrúxulos. Mas, onde teria minha avó buscado inspiração para a escolha de um nome tão incomum?

Quando eu estava servindo o exército, um amigo meu interessou-se pelo tema e, pesquisando numa velha e boa enciclopédia, encontrou citação sobre um personagem da história que tinha este nome. Em épocas mais recentes, usando tanto o “gúgol” como outras fontes de pesquisa, soube que Jugurta foi um rei da Numídia, nascido nos idos de 160 a.C. Falando nisso: Alguém sabe onde fica a Numídia? “Véio!!!”… é num lugar tão longe que até hoje eu não consegui entender onde vovó foi procurar o nome do seu filho caçula. Hoje, nos tempos da internet, em que assistimos a invasão de máquinas terráqueas no planeta Marte, é muito fácil obter informação até de outros planetas, mas em 1933, em pleno sertão alagoano, lá na beira do Rio Ipanema onde a iluminação era a candeeiro e aparelho de rádio era uma novidade encontrada em, no máximo, meia dúzia de casas? Onde ela foi buscar esse nome? Meu bisavô Tertuliano era um comerciante bem sucedido no ramo dos tecidos e pode proporcionar aos seus filhos alguma formação escolar, mas onde ela leu este nome é um mistério que nunca foi desvendado.

Voltando à história desse antigo personagem, contam os livros que Jugurta, o rei dessa tal de Numídia, dividia a governança do reino com dois parentes, mas, querendo ficar com tudo, terminou matando os dois. O caldo azedou pro lado dele porque, durante a perseguição, terminou matando uns mercadores romanos que negociavam na região e não deu outra, Roma declarou-lhe guerra. Acuado pelas legiões romanas, Jugurta refugiou-se no reino do seu sogro, o rei da Mauritânia, só que terminou sendo traído e entregue a Roma. Nesta cidade foi exposto na rua como se fosse um troféu de guerra e no mesmo dia foi assassinado na prisão, isso no ano de 104 a.C.

História antiga a parte e voltando à nossa que é mais recente, convém ressaltar que, quando papai nasceu, vovó estava gravemente enferma de uma doença que, naquela época, não tinha cura, a tuberculose. Em consequência do seu estado de saúde o menino nasceu magrinho e todos pensaram logo que ele não iria sobreviver, então Vovô Pedro procurou um irmão chamado Virgílio, e aí vocês passam a saber também de onde veio o meu nome, e disse:

– Virgílio, leve esse menino pra cuidar que ele não se cria. Quando ele morrer me traga a conta que eu pago.

Vovô Virgílio era viúvo e vivia o seu segundo matrimônio com Francisca, Vovó Chiquinha, uma moça lá das bandas do povoado Capelinha, na beira do Ipanema, entre os municípios de Major Isidoro e Olivença. Moravam no Sítio Caboré, na região da Serra Limpa localizada entre os municípios de Carneiros e Olho d’Água das Flores. Convém lembrar que todos esses atuais municípios eram parte do imenso território que formava o município e a paróquia de Santana do Ipanema até meados de 1949. Nessa época, o pároco era o Padre José Bulhões e cabia a ele a assistência a toda aquela região.

Vovó Chiquinha nunca teve filhos, mas foi uma grande mãe, não apenas do meu pai como de outros filhos que Vovô Virgílio tivera. Vendo o estado do menino, esmerou-se em cuidados. Não podendo amamentar e preocupada com o risco do menino estar contaminado pela doença da sua cunhada, dava-lhe mamadeira de leite com o sumo do mastruço, erva nativa das Américas dotada de reconhecidas propriedades terapêuticas, mas que tem um gosto horrível.

Certo dia, Vovô Virgílio soube que o padre estaria no povoado de Olho d’Água das Flores, então levou o menino para batizar. Chegando à igreja, ele e Vovó Chiquinha apresentaram-se ao padre como sendo os padrinhos da criança e ele logo perguntou:

– Como é o nome do menino?

– É Jugurta.

O susto foi com a molestra e padre refugou logo.

– Ah!? Com esse nome eu não batizo não.

Ouvindo a resposta do Padre Bulhões, a autoridade mais respeitada da região, meus avós ficaram tristes, porque aquele tinha sido praticamente o último pedido da minha avó Jovita e, em sua memória, sua última vontade precisava ser acatada. Com muito jeito e humildade foram tentando convencer o padre a mudar de opinião até que o sacerdote fez uma pergunta que só quem é do interior conhece o sentido.

– Esse menino é de onde?

– É da Serra Limpa.

O Padre Bulhões conhecia cada recanto do município, fazenda por fazenda, casa por casa. Ao ouvir falar na Serra Limpa parou, identificou na memória os moradores daquelas bandas então perguntou:

– E esse menino é filho de quem?

– É filho de Pedro Agra.

O Padre Bulhões sabia quem era meu avô Pedro, sabia que ele não era rico, mas tinha o seu valor. Ai então, em outro tom, falou sem perder a sisudez:

– Se é filho de Pedro Agra então eu batizo.

Muitos anos se passaram de lá para cá, ao longo deste tempo meus avós paternos partiram para a eternidade, mas, enquanto isso, lá pras bandas da Cachoeira de Paulo Afonso, em 27 de agosto deste ano, meu velho pai completou 79 anos de vida, dentro do prazo de validade e contrariando todos aqueles que pensaram que ele não se criava. Apesar da cabeça careca, um tremor nas mãos e algumas marcas de bisturi pelo corpo, o homem mantém uma vitalidade de fazer inveja a muitos cabras que têm metade da idade dele, mas eu acho melhor ir terminando essa história por aqui, porque Jugurta não é assunto para uma simples crônica, e sim para uma biografia inteira, mas eu confesso a vocês, quando eu penso que ele é o caçula da família e todos os seus irmãos e irmãs ainda estão vivos, quando eu lembro que Vovô Pedro só deixou esse mundo após completar os 100 anos de vida e quando eu me lembro da dívida que ele contraiu lá nos idos de 1933, de uma coisa eu tenho certeza, no dia em que a conta da sua criação for apresentada eu prefiro estar na Numídia.

Queridos colegas, com este texto seguem as minhas lembranças de cada um de vocês ao mesmo tempo em que mando o meu abraço e o desejo de que, independentemente da distância, todos estejam felizes e de bem com a vida. Espero que o pior dos males que os aflija, seja tal que possa ser curado com uma simples dose musical de Mastruz com Leite, porque o leite com mastruço, eu me lembro bem, é ruim pra danar.

Saúde, luz e paz

 

O voo do Rouxinol

Olhos, cabelos. Rosto de índio tinha Martins. Muito de selvagem havia nele. De manso apareceu nas nossas vidas. Chegou, pediu uma cerveja, e ficou. Mesmo sem dizer o que era terra, disse. Sem falar do amor que sentia, disse. Jeito texano, caubói do asfalto. Cativou-nos o jeito apaziguado. Nunca olhava. Contemplava, e punha poesia no que via. Acalentava, como que fosse por as coisas pra dormir. Acendia o cigarro como aquele da propaganda da Marlboro. O caminhão, a estrada sua casa. Nem bem chegava – deitava a girar a bola do mundo embaixo dos pneus – partia aventureiro. Se ia, deixava pra trás seu coração dentro do peito de minha irmã. Não prometia, se voltaria. Sempre voltava. Quis criar limo, cravou os pés em Santana do Ipanema.

Um dia foi, e levou um pouco de nós. Agora era dois. Iam, e voltavam. E dois virou família. Fez-nos tio, duas, três vezes mais. Vivia e se entendia – em constante diálogo, sem precisar falar – com a natureza. Sabia de calos doídos, sinalizando chuvas, de aura acinzentada entorno do luar, avisando trovoadas. De ir lá num canto do muro catar um punhado de uma plantinha, pra colocar em ferimentos, dar pro cachorro e pros passarinhos – se lhes diziam estarem – com dor de barriga. Quando podia, e por vezes podia, levava bichinhos e plantas pra dentro de casa. Cães vagabundos. Deles, apiedava-se. Cria em coincidências, e na providencial mão do destino. Num pedacinho de selva, que os homens comuns chamam de quintal, cágados, saguis, porquinhos da índia, jabutis, iguanas, hamsters. O rouxinol que gostava de canários, pintassilgos, cancãos, ferreiros, cacatuas, calopsitas. E educar papagaios pra chamar os donos pelos nomes, cantar arremedando o canto de seus pares. Encheu de mar um vão de acesso a cozinha, rei Netuno submergindo de dentro de baús, caravelas, sereias, era de aquário. Um cão amigo, amigo cão. Cúmplices de afagos e brincadeiras, e conversas sérias também, de passeios nas tardes douradas. Camisa pólo, calça jeans índigo blue, sapato mocassin. O longo cabelo escorrido, penteado com esmero – se molhado, camuflava os fios brancos – conferindo-lhe jovialidade. Ameríndio redesenhando seus caminhos. Saído da zona da mata, indo desbravar veredas do sertão.

Quando fui à primeira vez a sua terra natal, apresentou-me aos amigos. No bar preferido, a cerveja preferida. À mesma mesa, que sempre estaria lá, lhe esperando, morrendo de saudade. O barman sabia a música que devia tocar. Bebemos, brindamos à vida, ao prazer de ser o que éramos, e viver tudo o que havia: o instante. O momento era, e pronto. Martins tinha história, histórias várias. Em cada lugar que ia, a cada esquina um enredo, novos protagonistas. Moleque engraxate ganhava moeda, carinho, e apelido. Cumprimentos, acenos ao carroceiro, o estivador, o relojoeiro, a vendedora de peixe na porta do mercado. Havia história em tudo, em cada canto da sua cidade. Espraiando no horizonte a Serra da Barriga, gigante verde, encerrado adormecido. Corpo de negro, deitado de bruços, alma de negro, carne de negro incorruptível. Impregnado de húmus, de vermes, amalgamado, muito embora, em profundo sinal de respeito não pervertia. No ventre de barro, soterrado o grito nagô nos ventos da aflição. Zumbi havia em todo canto, músculos severos, suados, voltando da roça. Sangue dos Palmares, derramado no canavial, na lida com o facão ferindo a touça de cana. Bíceps e peitorais Inflamados do quilombo estrangulando saca de açúcar. A lança de Zumbi cruzou o ar, foi se encravar no coração da onça. Pés negros desnudos resvalando entre a pedra e a areia do chão antigo, chão encharcado de império. Vento assoviando ordem, impondo respeito e temor, nas flâmulas tremeluzentes dos umbrais desenhados.

O mar de cana ia engolindo tudo. Engolindo os olhos da gente. Estúpida voracidade de redemoinho. Engolindo carroções, bovinos, camponeses, negros, cães, latidos e lamentações. O choro do canzil indo longe, e voltando cego do sal da maresia sufocada de Inferno verde. Dava pra ouvir o roçar de pele de negro no capinzal, os grilhões, o canto pra espantar fadiga. As casas rústicas. O fogão a lenha, no meio do terreiro, o jumento cangalhado aguardando carga. O pano de chita gritando pra gente olhar. Sob a pele fubazenta dos banhos nos córregos cristalinos, mulatas, carnes vistosas, as partes íntimas de coito com o sol, pele luzindo n’água, pelos negros e sedosos de cheiro adocicado de banho com sabão de coco. Corpos desejados pelos capitães do mato, pelos jagunços, velado desejo dos senhorios de engenho, bem casados com nobres brancas da corte. O ar labaredeando palha da cana de dois homens de altura.

O matagal, misterioso olhava ameaçador, dizendo pra manter distância. Não excitaria em devorar-nos vivo. Árvores gigantescas se projetando pro anil celestino, e quando à pujança do rei-sol se ia, viravam dragões, monstros fantasmagóricos, paridos do ventre da mãe terra, incontestavelmente transportados da idade medieval. Caía o véu da noite e dava pra ouvir os atabaques e afoxés, vindo da mesa da montanha. Cujo cume custodiava a negrada fugidia. Refugiados na crista da mata elevavam preces, ofereciam holocaustos a pai Oxalá, Ogum e Yãssan. No cruzamento da seara, sexta-feira, meia-noite arupemba com garrafa de cachaça, galinha preta, espelho, cédulas, moedas, colares, pulseiras, anéis, flores, fumo de rolo, perfume e quindim. Despacho pra Pomba-Gira e Zé Pilintra. Trabalho feito. Pra conquistar mulher difícil, pra quebrar senhorio cruel. Lá vinha Jorge de Lima todo de branco surgido no clarão da noite montado no cavalo do seu santo guardião, empinando a crina, troteava o pangaré enquanto se ouvia o canto pro acendedor de lampião e pra Nega Fulô.

Se janeiro, Santa Maria Madalena, chamava o povo pra igreja. União era festa. O estandarte da santa – roto de tempo e de história – esmaeceu de colores. Guimarães palmarino deitou contrato pra pintarmos outra bandeira. Índio Martins apenas observava – por entre a fumaça azulada do cigarro – acompanhava as voltas que a tinta e o pincel davam sobre o algodãozinho. Ao cair da noite depois da novena cantava o rouxinol, canto mavioso de cordas acompanhado. Os janeiros áureos se foram, tragados feito fumo, pra dentro do abismo do tempo. O rouxinol aturdido por não saber mais de cantar, alçou vôo, voou.

Aprendizes de pai

Quando meu filho disse que ia embora. Naquele instante, lá bem dentro, num cantinho onde dorme a tristeza dos meus pensamentos. Aquela música da dupla sertaneja veio me embalar. Consolar-me talvez. Acho que consegui disfarçar, embora os olhos marejados denunciassem-me. Em questão de segundos, toda uma vida, num relampejo, passou na mente, como um trailer dum filme. Ali na frente dele, não podia chorar. Pior, tinha que ser forte o suficiente para incentivar, passar sensação de confiança, de apoio. Bocado difícil. No nosso excesso de zelo e proteção, nós pais, achamos que os filhos nunca estão prontos, preparados pra cair na vida. Estarão sempre, terna e eternamente, a precisar de nós.

À noite, trancado no quarto, embaixo das cobertas de dormir, o choro veio. Um choro morno, bom de chorar, a um só tempo contido e desatado. Quis volver no tempo, num retrocesso de vinte e poucos anos. Lembrei quando sua mãe, em estado gestacional avançado, entrou em trabalho de parto. Tudo estava devidamente preparado, para àquela hora. Uma semana antes, bolsa contendo o enxoval. Tudo, premeditadamente organizado, carro pra levar ao hospital Dr. Arsenio Moreira. A obstetra permitiu-me, assistir. Antes, havíamos optado em não fazer ultrassonografias. Bom a expectativas, a surpresa. E foi. No dia quatro de agosto daquele ano, veio ao mundo. Nosso primogênito, filho amado, um varão, da descendência de Davi, de Israel. Veio encher duas vidas. Preencher o vazio duma casa, ser luz. Passamos a ser um casal de três, o que a família um dia almejara.

E agora, eis que estava ali, a dizer que iria embora, morar com a namorada, em Maceió, num apartamento no farol. Renunciava o emprego em Santana do Ipanema, sua terra natal. Ia tentar conseguir ocupação semelhante, na terra do sol, paraíso das águas. Só tínhamos que concordar. Abençoar aquelas vidas, pedir que Deus colocasse sua mão protetora selando seus destinos. Afinal, havíamos trilhado caminho parecido. Agora era a vez dele. E o tempo se encarregou de aplacar nossas angústias, nossas incertezas. De longe rezávamos, volvíamos nossos olhos a Deus pedindo por eles, e pra eles, proteção divina.

Um belo dia chegou e disse: – Pai você vai ser vovô! De novo! Como Deus é bom para com os seus. Antes de vir ao mundo, ela já sabia que se chamaria Sofia. A ansiedade fê-los descobrir que era uma menina, antes do parto. Amada, antes de concebida, mais ainda depois. Nove meses amada, amplamente aguardada. Mesmo nós em Santana, eles em Maceió, conseguíamos nos transportar pra lá. Em sonho, íamos parar dentro do seu apartamento e víamos. Belo casal, assemelhado ao casal lá da Judéia. Tudo tão simples. Cabeça apoiada no ventre de sua amada. Ventre planeta redondo, onde a única forma de vida habitava o interior. Como se da obra de Antoine Saint-Exupéry o Pequeno Príncipe cabelos revoltos conversava com Sofia:

-Que quer dizer “cativar”

-Tu não és daqui – disse a raposa – Que procuras?

-Procuro os homens – disse o pequeno príncipe

– Os homens – disse a raposa – têm fuzis e caçam. É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante. Tu procuras galinhas?

-Não – disse o príncipe – Eu procuro amigos. O que quer dizer “cativar”?

-É algo quase esquecido – disse a raposa. Significa “criar laços”.

Dentro da barriga da mãe, Sofia ouvia o pai, que contava histórias só pra ela, e cantava cantigas de ninar, entrecortadas, pela metade, em ritmo de rock’in roll, a som de guitarra. Dizia das histórias que lia, e do quanto era aguardada. Dizia do enxoval que estava sendo preparado com muito carinho, do quarto. Seu quarto, com esmero, por ele próprio pintado. Um pedaço de céu aqui na terra pra Sofia. Bibelôs, travesseirinhos – tudo tão minúsculo, como se trazido da “Terra do Nunca” de Peter Pan, das viagens de Gulliver – Chuquinha de chá, chuquinha de água, babadores, toquinhas, pares de sapatinhos com cara de coelhinhos. Macacões com carinhas de ursinhos, e fraldas, muitas fraldas. E Sofia flutuava no seu planeta de bolha, dormia e sonhava. Ainda não sabia de falsos contos de fadas, onde Chapeuzinho Vermelho, era do comando vermelho, Branca de Neve na favela era pó, e dava cadeia. Ainda nada sabia dos vilões, Lobos Maus nos porões dos poderes, Bafos-de-Onça e Coringas que riam de tudo e de todos. Ainda aprenderia que o bem sempre, vencia. Sempre venceria. A Mônica, o Cebolinha, Margarida, Mickey, o Pato Donaldo, também sentia suas presenças. Sabia, estavam lá, nas paredes do seu quarto, no frasco de colônia, no pacote de fraldas, na toalhinha, sorrindo-lhe, dizendo: Seja Bem-vinda Sofia!

E Sofia resolveu dar o ar de sua graça. Escolheu um dia especial. Quis vir ao mundo num dia perto da data natalícia da mãe. E se o choro do vovô era de emoção, pela boa nova. O de Sofia era pra dizer, tenho frio, tenho fome, tenho cólica, limpem-me por favor! Estreou a vida daqui de fora, num mês que no calendário, à muito, começava o ano. Sofia quis começar a dar sentido à vida daquele casal, que se amavam e a amava, desde antes da concepção. E o pezinho de Sofia, pra sempre foi parar no braço do papai. Deusa grega, da sabedoria. Veio ser sábia, trazer serenidade, sabedoria pra um lar. Todo construído, pensado só pra ela. Antes de ser, já existia. Sofia existia nos planos de Deus. Criaturinha frágil, de colo. Carecida de toda atenção, todo amor do mundo, carinho pra tomar banho, se alimentar, arrotar, botar pra dormir. Primeiro álbum de fotos, os primeiros dentinhos. Mãos desengonçadas, ampliadas de cuidados, manuseando Sofia, como se de nitroglicerina pura. Mãos aprendendo a paternidade. Experimentando a experiência do Criador, de ser pai e filho a um só tempo.

Prato típico

Colegas de todos os paladares

Essa história de dizer que um assunto puxa o outro, todo mundo já ouviu falar. À semana passada, quando falei dos bares de Santana do Ipanema, veio à minha memória outro tema muito gostoso, literalmente falando, ou seja: A comida. Se pararmos para pensar, veremos que a alimentação é um dos mais importantes patrimônios culturais de um povo, com fortes raízes históricas, ecológicas, econômicas, sociais etc., de modo que, independentemente da origem ou vivência de cada um, todos nós somos influenciados por todas as sensações que a comida pode transmitir.

Por razões históricas que não poderão ser devidamente aqui consideradas, o sertanejo acostumou-se a consumir várias espécies de animais de caça como a nambu, a rolinha, o mocó, o preá, o veado, o tatu e muitos outros animais silvestres. Desde menino me acostumei a comer carne de caça e o seu consumo está associado na minha memória como momentos de alegria e congraçamento. No entanto, na grande maioria das vezes, consumíamos a carne de animais domésticos, como o boi e a galinha ou a carne de criação, que era o nome dado aos animais de pequeno porte como carneiros e bodes.

Era comum, as famílias criarem galinhas nos fundos dos quintais que, quando chegavam na medida certa iam parar na panela. As galinhas criadas no terreiro de casa viviam ciscando, comendo folhas, bichinhos e uns caroços de milho de vez em quando. Viviam levando carreira dos galos, chocando os ovos, cuidando dos pintinhos e todo final de tarde ainda tinham que se empoleirar para passar a noite. Por conta do exercício físico e também por causa do tempo de vida mais longo, a carne das penosas ficava mais dura e escura do que a dos frangos hoje consumidos e, associado ao acúmulo de gordura, passava a ter um sabor e textura que lembrava muito a carne de caça. Para nós esses bichinhos eram simplesmente galinhas, mas depois que chegaram aquelas de penas e carne branca criadas presas nas granjas e só comendo ração, generalizou-se no Nordeste denominar as galinhas criadas ao natural como “galinha de capoeira”, uma das marcas mais importantes da culinária sertaneja.Se em uma cidade ao nos deslocarmos de um bairro para o outro, percebemos diferenças culturais, imaginem então quantas variações e particularidades têm a gastronomia de uma região enorme como o sertão nordestino. Neste sentido, Santana do Ipanema desenvolveu a tradição do consumo da carne de um animal que se tornou uma marca da culinária local, o “cágado”. Um animal silvestre é bem verdade, mas que era amplamente criado nos quintais das casas da minha cidade.

Toda vez que eu falo de “cágado”, sempre tem alguém que vem perguntar qual a diferença entre “cágado” e tartaruga. Procurando dar uma explicação prática, não científica, convém dizer que ambos são animais da ordem dos quelônios, onde estão incluídos não apenas dois, mas três grandes grupos de espécies chamadas de tartarugas, cágados e jabutis. Tanto as tartarugas como os cágados são animais aquáticos sendo que, enquanto os cágados só ocorrem em água doce, as tartarugas tanto ocorrem no mar como na água doce. Duas diferenças entre ambas são fáceis de ser observadas, enquanto as tartarugas têm suas patas em forma de nadadeiras, os cágados têm pés com dedos interligados por uma membrana a semelhança das aves aquáticas. A outra diferença é que as tartarugas como forma de defesa conseguem recolher totalmente a cabeça para dentro da carapaça enquanto que os cágados só conseguem proteger-se dobrando o pescoço para o lado. O jabuti por sua vez é um animal exclusivamente terrestre. Enquanto as tartarugas e cágados possuem casco chato, dando-lhe a necessária aerodinâmica para os deslocamentos na água, os jabutis têm casco mais abobadado sendo proporcionalmente bem mais alto que os dos seus parentes aquáticos e suas patas são cilíndricas, bem mais adequadas aos deslocamentos em terra. Com relação à estratégia de defesa, os jabutis, a exemplo das tartarugas, conseguem recolher totalmente a sua cabeça para dentro da carapaça.

Se não bastassem as diferenças sutis entre as espécies, os nomes vulgares atribuídos aos quelônios não colaboram muito nas suas identificações. É comum de uma região para outra os mesmos animais terem nomes diferentes e ainda há os casos em que denominações são trocadas. Por exemplo, de acordo com o site Mundo Estranho, da Editora Abril, a tartaruga-do-amazonas é morfologicamente um cágado, mas é chamada de tartaruga. Da mesma maneira, de acordo com o costume do sertão alagoano, o “cágado” é morfologicamente um jabuti, mas é chamado de cágado. Eu sei que isso dá uma confusão danada, mas vamos seguir em frente que o assunto aqui seria muito demorado.

Lembro-me que no quintal da nossa casa mamãe criava umas galinhas num cercadinho juntamente com um monte de “cágados”. Como os bichos eram lentos não apenas no andar como também no crescimento, os escolhidos só iam para a panela em dias muito especiais e eram considerados como verdadeiras iguarias. Lembro-me que na cidade era tradição comer “cágado” apenas quando se recebia algum visitante ilustre ou na semana-santa, porque sua carne não era considerada como carne, sem comentários.

Sempre que eu falo de “cágado” me lembro de Seu Geraldo Vilela, um cidadão gente boa que conheci em Maceió nos idos dos anos 80. Hoje Seu Geraldo usufrui da sua merecida aposentadoria, mas no tempo da ativa foi, durante muitos anos, representante de uma importante fábrica de fertilizantes do Brasil que tinha uma unidade em Alagoas. Dona Ilma, sua esposa, manteve durante muitos anos a floricultura Q-Flores, loja de referência da capital e que ficava bem ali na Rua do Sol, no centro de Maceió, mas hoje ela só cultiva flores no jardim da eternidade. Eu trabalhava com o genro dele e certa ocasião fui convidado a ir à sua casa onde pude usufruir do prazer de uma conversa boa.

Seu Geraldo era um membro muito ativo do Lions Clube e, por conta das atividades leonísticas, certa ocasião foi ao sertão participar de uma reunião do Lions Clube Santanense. A assembleia foi aberta, houve muito falatório e ao final foi servido um jantar preparado com todo o esmero pelas esposas que são chamadas de Domadoras. Ao ser anunciado o jantar todos se levantaram dirigindo-se à lauta mesa. Como forma de demonstração de respeito pelo visitante ilustre, ofereceu-se que ele se servisse primeiro. Nesse momento um companheiro Leão bem gaiato chegou junto dele e disse:

– Geraldo, hoje você vai comer uma coisa que você sempre fez.

O visitante ficou intrigado com aquilo e perguntou:

– Como assim? Eu nem sei cozinhar, como é que eu posso comer uma coisa que eu sempre fiz?

– Geraldo, hoje você vai comer uma “cagada”.

O susto foi inevitável, mas ele com um raciocínio muito rápido perguntou:

– De colher ou de garfo e faca?

Aí todos eles riram e explicaram para o amigo que ali à mesa, estava sendo servido um prato típico da culinária da cidade, o “cágado” ao leite de coco (entenda-se jabuti). Eu fico de água na boca só de pensar.

Naquele tempo não se falava em legislação ambiental e sequer existia a expressão “ambientalmente correto”, comer carne de caça ou animais silvestres era motivo de alegria e da prática de uma antiga tradição. Mas os tempos mudam, e hoje em dia os “cágados” desapareceram dos quintais e das mesas dos santanenses. Para aqueles que quiserem vê-los eu sugiro uma caminhada nas trilhas do sertão.

A propósito, o nome correto da comida feita como o “cágado” é a cagadada.

Meus amigos, aproveitando mais uma vez para cumprimentá-los, espero que todos tenham uma semana produtiva e prazerosa como uma velha e boa cagadada.

Saúde, luz e paz

Abrigo seguro

Colegas de todos os bares e de todos os refúgios

Me desculpe Sigmund Freud, mas para mim o maior concorrente do divã do analista é a mesa de bar. Não importa se em Paris, Rio de Janeiro ou no sertão nordestino, a mesa de um bar é o lugar mais procurado por aqueles que querem esquecer os problemas, as paixões, as dívidas e outras mazelas da alma, com a vantagem de que o freguês, digo o paciente, pode fazer uma terapia cujos efeitos podem não ser muito duradouros, mas, com certeza, é muito mais prazerosa.

Nos meus tempos de rapaz, durante as férias escolares, lá pras bandas da Ribeira do Panema, era exatamente os bares o local preferido para relaxar, jogar conversa fora e fazer o congraçamento dos jovens estudantes da cidade, tanto aqueles que estudavam em cidades distantes como Maceió, Recife ou Campina Grande, como também aqueles que haviam permanecido na cidade, alguns estudando e outros já encarando uma vida profissional.

Naquela época era comum que, tanto os bares quanto outras modalidades de pontos comerciais funcionassem na própria residência dos seus proprietários que destinavam o salão da frente para o atendimento à clientela, ficando os demais cômodos reservados ao uso familiar. Atualmente a cultura moderna de separação do ambiente familiar do comercial também chegou ao sertão, mas tem um traço cultural que nas pequenas cidades permanece até os dias de hoje. Pois, independentemente dos bares ostentarem letreiros luminosos com os nomes escolhidos pelos seus respectivos proprietários, até hoje é comum que estes estabelecimentos sejam conhecidos pelos nomes ou apelidos dos seus donos. Lembro-me de alguns nomes como o “Bar do Biu”, o “Bar do Dema”, o “Bar de Gedalva” e o “Bar de Zé de Pedo”, não estranhem a escrita porque é exatamente assim como são conhecidos. Fugindo a esta regra, havia também o “Alto da Fé”, cujo nome não está associado ao nome do dono, mas sim ao fato de que próximo a ele havia umas estátuas religiosas que foram posteriormente retiradas.

Havia também outro bar que funciona até hoje com um nome pra lá de curioso, que é o “Restaurante João do Lixo”. O que vocês esperariam de um bar ou restaurante que tenha tal denominação? Devo admitir ser natural que se pense ser um lugar sujo e pouco recomendável, mas também devo alertá-los, ser um ledo engano. O que acontece é que João trabalhou durante muitos anos dirigindo o caminhão que recolhia o lixo da cidade, passando assim a ser conhecido por todos. Um belo dia resolveu mudar de ramo e começou a servir comidas e bebidas na sua própria casa, que ficava lá na Rua Delmiro Gouveia, em cuja calçada o mesmo colocava as mesas. Servindo uma boa comida e com um atendimento cortês, o ponto tornou-se conhecido. Com o passar do tempo ele foi ampliando o negócio, de modo que hoje em dia ele já não precisa colocar as mesas na calçada. Seu restaurante tornou-se um lugar bastante frequentado, tanto pelas famílias locais quanto por aqueles que visitam a cidade. No começo João batizou seu restaurante com um nome que eu nem me lembro mais, o problema é que a clientela só se referia ao ponto como “João do Lixo”. O costume foi tão forte que João terminou cansando e o jeito foi estampar um letreiro com o nome pelo qual ele e o estabelecimento ficaram tão conhecidos.

Havia também outro lugar que costumávamos frequentar que era a casa de Marinosa, localizada num sítio a cerca de seis quilômetros do centro da cidade e às margens da rodovia BR 316. Naquele tempo não havia telefonia celular, então, quando a gente queria ir à sua casa, tinha que mandar um aviso por um portador qualquer para que ela matasse uma galinha e, no dia e hora combinados, a turma chegava para traçar a penosa.

Foi nesse contexto gastronômico-regional que, certo dia, alguns amigos se encontraram casualmente na rua e, entre uma conversa e outra, resolveram ir para um bar, para poder relaxar, jogar conversa fora e fugir por alguns instantes do “stress” diário. Eram apenas três: Airles, Chico e Pãozeiro. O grupo era pequeno e logo surgiu a idéia de convidar alguém mais, para que o encontro fosse mais abrangente e divertido. A escolha recaiu sobre Hiram, um sujeito que não era de perder uma boa farra e que, pela sua inteligência, humor e perspicácia, seria uma garantia de sucesso daquele encontro. Uma vez decidido quem seria o quarto componente do grupo, partiram os três em direção à loja dele que se dedica ao comércio de rações e ferramentas agrícolas. Perguntaram a um funcionário e souberam que ele não se encontrava. Imediatamente a turma raciocinou que estavam atrasados e que Hiram já estava em algum bar, relaxando dos aperreios do dia-a-dia, então resolveram procurá-lo.

Entraram num carro, deram uma volta na praça central e a primeira parada foi o “Bar de Zé de Pedo” que ficava bem ali no centro da cidade, funcionando como restaurante comercial, na rua que desce para a Ponte do Padre. Chegando lá, logo viram que Hiram não se encontrava e, seguindo a mesma direção, resolveram procurá-lo no “Bar do Biu” e em “João do Lixo”, visto que ambos estão situados na mesma rua. Constatando que o amigo não se encontrava em nenhum dos dois, seguiram descendo a Rua Delmiro Gouveia em direção ao “Bar de Gedalva”. Chegando lá e diante de nova negativa, resolveram agora procurar no outro lado da cidade. Foram ao “Bar do Dema” e em seguida ao “Alto da Fé”. A essa altura dos acontecimentos e já se sentindo um pouco órfãos, os amigos resolveram ir à casa de Marinosa e pegaram a estrada. O certo é que eles passaram a tarde inteira procurando em todos os bares da cidade até que, finalmente, cansados da busca, cada um foi para sua casa, para repousar e se preparar para um novo dia.

No dia seguinte os três acordaram com aquela pergunta que não conseguia calar: Onde estava Hiram que ninguém conseguiu encontrá-lo. O mistério tinha um peso tal que, sem que houvesse combinação prévia, quando o comércio abriu as portas, a primeira atividade do dia para eles foi passar na loja do amigo para saber o seu paradeiro. Lá chegando, a pergunta foi direta:

– Ô Hiram! Onde é que você se meteu que ontem ninguém conseguiu encontrar você? – Perguntou um.

– A gente veio à sua loja e não te encontrou, foi em todos os bares da cidade e você não estava. Onde é que você tava, homem?

Hiram olhou para eles, abriu um sorriso de satisfação e disse:

– Vocês não iam me encontrar nunca.

– E finalmente onde você estava?

– Vocês não iam me encontrar nunca. Eu estava em casa.

Conhecendo os hábitos do amigo, os três perceberam ser aquele o mais improvável dos lugares onde se imaginaria encontrá-lo.

Caros colegas, me desculpem. Faz um bocado de tempo que não mando notícias minhas. Culpa do trabalho? Talvez. O certo é que além do trabalho também estou fazendo um curso, realizando outros projetos e buscando mais histórias para contar para vocês, tudo ao mesmo tempo. A verdade é que eu estou tão assoberbado que tem horas que me dá vontade de também procurar um refúgio e eis que o melhor de todos eles é, para mim, aquele que me permite contato com a família e com os amigos, é por isso que eu posso até demorar, mas não paro de escrever. Aproveito como sempre para desejar a todos uma boa semana, ao mesmo tempo em que me coloco a disposição de qualquer um que queira fazer uma terapia de mesa de bar, garanto que serei solidário até a última gota.

Saúde, luz e paz

Ipanema, um rio macho

Sexta-feira próxima, estaremos lançando ao público o livro “Ipanema, um rio macho”, evento que acontecerá na Câmara de Vereadores Tácio Chagas Duarte, às 20 horas e 30 minutos. O nosso primeiro livro foi o romance do ciclo do cangaço “Ribeira do Panema”, até hoje o mais conhecido de todos. Depois vieram outras obras como a didática “Geografia Geral de Santana do Ipanema”, o conto “Carnaval do Lobisomem” e depois um novo romance do mesmo ciclo do cangaço “Defunto Perfumado”. Em seguida lançamos o livro humorístico de cunha maçônico “O Coice do Bode”, que ainda hoje circula nacionalmente e faz parte do Clube do Livro. “Floro Novais, herói ou bandido”, veio depois, contando a história do famoso matador, na versão apresentada pela sua família, em estilo romanceado. Com a sétima obra, “A Igrejinha das Tocaias”, o autor resgata um episódio oral, acontecido no tempo de um dos netos do fundador de Santana. A obra é escrita em versos e é a única que fala sobre o assunto, até hoje. Em seguida o autor publica o CD, “Dez poemas engraçados”, ele mesmo recitando todos eles. Este ano foi publicado no Tênis Clube Santanense, o trabalho “Santana do Ipanema; conhecimentos gerais do município”. Portanto, na próxima sexta-feira, estaremos oferecendo ao povo santanense e brasileiro, o livro “Ipanema, um rio macho”, tratando-se da décima obra do autor. (mais…)

Versos selvagens

Por cima dos tocos, na base de outeiros,

Os versos matutos trajando gibões,

Rompem o mato, a urtiga, os pés de pinhões,

Facheiros, favelas, belos marmeleiros;

Guindastes de troncos, folhas de pereiros,

Pedaços de serras, clarões de luar, (mais…)

Abelhas

Não sei se elas são de fato assassinas. Simpáticos insetos listrados dos himenópteros, apóideos, nos fornecem o delicioso e nutritivo mel. Vários tipos de abelhas, porém, possui ferrão e não enjeitam uma briga de verdade, principalmente se o adversário for um bípede como nós. O meu vizinho, cujo apelido é “Dem”, é um dos apicultores do município, produzindo mel de boa qualidade e fornecendo para a merenda escolar. Ali perto do sítio Jaqueira, às margens do rio Ipanema, Dem se mistura com elas, as abelhas, e vai dando às ordens aos poderosos insetos em revoadas pelos arredores. Logo no final da tarde de ontem, todavia, abelhas no papel de batedoras entraram pela porta da minha cozinha. Retiraram-me da hora de elaborar a crônica de hoje. Mas elas não queriam atrapalhar a crônica e sim fazer parte dessas magras linhas. Fiz ver às batedoras que elas estavam erradas, eu não era criador de abelhas e sim o meu vizinho. Elas não acreditaram. Mandei chamar o Dem. Ele veio, mas estava sem roupa apropriada para enfrentar ferrão. Avisou que àquelas vieram à frente, mas logo o grosso chegaria. Não deu outra. A tropa inteira chegou, invadiu a cozinha e nos pôs para fora de casa. Não aceitaram o Dem como tutor. (mais…)