Foram muitas portas fechadas, olhares ignorados e julgamentos. Às vezes nem precisava falar, mas muitos verbalizaram mesmo que ela não seria capaz. Alguns duvidaram, mas outros só esperaram por sua vitória. E ela veio. Marisa dos Santos Silva formou! É a primeira pessoa com deficiência visual a concluir o curso de Pedagogia pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Em sua invisibilidade, ela silenciou todas as palavras negativas e acreditou, provou para si mesma que conseguiria!
“Se eu tivesse dado ouvidos ao que falavam, eu não teria terminado meu curso!”, desabafou em tom de humor, explicando pacientemente o tanto de desafios que enfrentou para ter seu diploma nas mãos. A paulista, criada em Pernambuco e radicada em Alagoas, foi levando nesse trajeto os problemas de saúde que a impediram de enxergar e um sonho de se formar na profissão que vê pelo coração o futuro do outro.
“O meu sonho sempre foi ensinar. Eu queria ser pedagoga porque é por onde todas as profissões começam”, conta a mulher que aos 49 anos já tem um longo histórico de prática de ensino. Porque ela sempre precisou ensinar para estar inserida. Precisou instruir para conviver. Necessitou falar para ser vista, dentro ou fora da sala de aula.
“A Marisa é uma deficiente visual que não acredita de forma alguma que isso seja um empecilho para que ela possa aprender, conhecer, se desenvolver e crescer como ser humano e como profissional. Além disso, ela tem uma vontade muito grande de aprender para ensinar. Tem tudo a ver com o curso que ela escolheu, então, há uma vontade em Marisa que esse conhecimento e toda essa experiência e superação dela não fique guardada tão somente na história dela, mas que sirva para criar outras histórias”, descreveu o professor Marco Antônio Santos, orientador de Marisa no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Esse olhar do mestre Marco Baiano, como é conhecido, é compartilhado por colegas que acompanharam toda a trajetória da aluna até se formar pedagoga. Antes do diploma tem muita vida inspiradora.
Da baixa visão à luz do futuro
Marisa nasceu com baixa visão, mas no interior de Pernambuco e sem muitos recursos, só conseguiu buscar tratamento aos 20 anos, quando já morava em Maceió. A indicação para usar óculos parecia o fim dos problemas: “Quando usei os óculos fiquei muito feliz, igual uma criança quando ganha um presente. À noite eu tirei para dormir e, no outro dia, amanheceu tudo zerado”.
Na verdade, era a continuação de uma grande luta. Mesmo depois de perder totalmente a visão, Marisa seguiu com os estudos apoiada pela Escola Estadual de Cegos Cyro Accioly. Para quem já tinha sido convidada a se retirar da escola na infância porque os gestores à época não achavam que ela acompanharia o ensino regular; para quem tentou quatro vezes o Enem; e para quem se manteve firme ao chegar à universidade após levar uma queda e fraturar o braço no primeiro período do curso porque não tinha as condições ideais de acessibilidade… o que é mesmo mais um dia de batalha?
“O que me fez não desistir foi o que eu estava aprendendo. Imagina se eu demonstrar para quem achava incapaz uma pessoa cega aprender a ler e escrever? Eu posso provar que sim. Uma pessoa cega é capaz de aprender igual a qualquer outro universitário. Isso me ajudou muito a não desistir”, disse, consciente de que o processo exige paciência e vale a pena!
Toda essa garra ela canalizou para o TCC, mirando num futuro como professora concursada. O trabalho intitulado Práticas pedagógicas para o aluno com deficiência visual foi feito em parceria com a aluna Alessandra Alves Aragão, que acreditou não só no potencial do tema como se juntou às pessoas que torciam pelo propósito de Marisa.
“Minha parceria com a Marisa foi de aprendizagem e crescimento pessoal e profissional na área da educação, de como trabalhar com uma pessoa com deficiência visual, e conhecer as dificuldades e desafios que ela já enfrentou em toda sua trajetória na educação regular e no ensino superior. E, apesar de todas as dificuldades, desafios e barreiras encontradas, ela não desistiu dos seus objetivos”, disse Alessandra.
O TCC foi defendido no início do ano e coroa uma jornada pautada na superação de cada um que contribuiu um pouco pela pedagoga que Marisa se tornou. “A formação de Marisa é uma formação do Cedu [Centro de Educação da Ufal]. Como orientador posso dizer que foi um trabalho que me trouxe muita satisfação, que me fez repensar muitas vezes na maneira de orientar, nas práticas pedagógicas, nos instrumentos pedagógicos, mas encontrei Marisa. Alguém que, durante o processo de formação, teve também muitas orientações e muitas pessoas que ajudaram. É um brinde para todos os professores do Cedu”, comemorou o professor Marco Antônio.
Por mais profissionais para alunos especiais
O tema escolhido para dar um desfecho à história de Marisa como graduanda na Ufal não poderia ser diferente. O TCC foi mais do que o acesso à vida profissional, foi um alerta para a necessidade de formação de professores e uso de materiais adequados para essa parcela da população de estudantes com necessidades especiais.
Logo quando chegou à graduação ela se deparou com um problema: “Eles não sabiam como se comunicar comigo, eu tinha que repassar as informações para eles, explicar como era pra me ensinar. Eu pensei que eles já eram formados e já sabiam como lidar com deficiência, mas eles não sabiam ler braile e nem sempre o material era adaptado pra mim”.
Isso a fez refletir sobre como poderia contribuir para mudar de perspectiva. Seu orientador captou todas as expectativas dela: ““A Marisa tem uma consciência muito grande do status do processo de inclusão que hoje nós passamos. Todo esse processo vai desaguar numa visão, tanto minha como do orientador, como da orientada, e do corpo de docente e técnico do Cedu, a enxergar um pouco mais esse processo de inclusão, e buscar novas condições para que nós possamos atender, dentro do que se pretende, a outras pessoas com deficiência, que querem apenas um lugar no espaço, como todos nós temos direito”.
Foi esse pensamento crítico que Marisa levou para os estágios de prática em sala de aula. Quando ouvia uma criança perguntar se ela só poderia ser professora de cegos, a resposta estava pronta: “Não! Eu posso ensinar qualquer aluno igual a você”. Porque ela acredita que tudo é possível se as mudanças necessárias acontecerem: “Não adianta ter a LBI [Lei Brasileira de Inclusão] só no documento. Essa lei só existe no papel, porque na prática não acontece. Eu sou uma prova disso, porque eu cheguei na escola regular do quinto ano até concluir o meu ensino médio e eu não tive apoio. Só na escola especial”.
Para fazer diferente, ela levou para a escola regular o que esperava ter tido quando sentava numa cadeira para ser alfabetizada: “Mostrei letras ampliadas, letras recortadas, emborrachado, fiz várias demonstrações para formar palavras numa tela em velcro e utilizei muitos materiais adaptados. Os professores também aprendiam comigo. Era uma troca de conhecimento e muitos até me agradeceram. Isso me fortaleceu”.
E foi só o estágio… imagina a força que Marisa vai levar para sala de aula quando conseguir conquistar o concurso que pretende para continuar ensinando e inspirando?
“Marisa vai ser uma excelente professora, uma pessoa que vai descobrir e pesquisar novas alternativas, que vai estar sempre atenta ao processo de inclusão, e que vai ser uma pessoa que deve estender a mão a toda e qualquer pessoa que precise, deficiente ou não. É uma característica de Marisa. Marisa aprendeu para ensinar, não há dúvida nenhuma nisso, e aprendeu de uma forma crítica, mas com a sensibilidade gigante”, projetou o professor Marco.