TORPE!
13 fevereiro 2015
“ (ó) que entorpece, embaraçado, acanhado; (ô) impudico; obsceno; sórdido, infame; ignóbil; nojento; sujo; manchado”
Outra vez, lá estavam os dois juntos. Cezar e o mar. O mar e Cezar. Um diante do outro. A praia sempre bela. As ondas lânguidas esticavam-se, vindo beijar-lhe, o corpo estendido na areia. Beijava-lhe os pés, subia até o peito. A areia entranhando os cabelos. Por dentro do calção bolinando-lhe o sexo. Despudoradamente se amavam. Os braços do mar, libidinosos avançavam e recuavam. Carinho de amor mútuo, impudicamente correspondido. Lascivamente entregues um ao outro. Gostava daquele afago, e tanto lhe excitava. Retivera todas as delícias das vezes que estiveram juntos. Jamais esqueceria. Com ênfase nos dias de carnaval.
Dali da areia dava pra ouvir o som do frevo, indo pelas ruas da cidade. Os clarins, o frenesi dos tambores. Sopro torpe do deus Baco. Pelo vento tangido, alucinado. Decaído das asas de Ícaro, chegavam a si. E lhes vinham sob a forma de antigas marchinhas. Reberverando ao baterem ritmadas no coração das almas folionas. A acordá-las do entorpecido sono que dormiam sorridentes, a mais de ano. As troças surgiam nos becos, e logo por outros deles eram engolidas. Debaixo de um sol agastado de luz, os blocos a brincar de colorir as coisas. A tarde de carnaval tinha todo um poder, uma magia, de facilitar as coisas. Alegravam as pedras de pisar. Donde outrora negros estrangeiros umidificados de suor na pele retinta, luzidia de sol e sal, trazido do mar. Aquelas pedras tingiram-nas um dia com seu próprio sangue. E seus corpos fizeram sombras de mesma cor no chão na dança de capoeira. Tingiam-na agora, com vinho do porto, com vermelho de colorau, azul de anilina, branco de maisena derramado. E brilho de pó de mico.
Havia um quê de permissividade. Como se personagens de sonhos e fantasias sexuais de rapazes que quebraram o cabresto, se materializassem. Mulheres ébrias de amor se beijavam beijos com gosto de cerveja. Embriagados, homens e mulheres despudores aliviavam suas bexigas, sem dar-se a ocupação de esconder seus sexos das vistas dos passantes. Pegas de surpresas meninas pudicícias viravam os rostos de rubor pro lado do mar evitando a cena. A imensa faixa de areia virada em passarela, onde fantasiados banhistas desfilavam. Fantasmas de corpos esfuziantemente vivos. Mambembes, de gozos e gestos obscenos, se atiravam no mar como um amante se atira na cama na hora do amor. Ninfetas ingênuas ao mergulharem n’água inadvertidamente perdiam a parte de cima do biquíni. E corriam a cobrirem como podiam seus pequenos seios virginais. A parte de baixo da peça de banho, depois de molhada, tanta era a força de atração exercida pelo corpo, que se colava como uma outra pele. A ponto de suas vulvas intumescidas acabarem por se desenhar vivamente perante os ávidos olhos dos varões. E tão mal disfarçavam seus olhares, e os instintos de macho os denunciavam, pouco a pouco, inflamando os volumes de seus calções.
Ninguém acudisse que o sexo no carnaval, com ênfase na praia, ditava sua lei. Mulheres de corpos esculturais em sumaríssimos biquínis a untarem o corpo de óleo bronzeador. E era tanto esmero dedicado a este ato. Como se meticolosamente encenasse uma peça de teatro onde interpretavam personagens de si mesma, e eram tão carentes de amor. E não hesitaria em se masturbar publicamente só pra chamar atenção. As mentes masculinas precavidas – desejavam ardentemente que de fato tal intenção se realizasse – por trás dos óculos raybans, lançavam olhares lancinantes, vorazes devoradores. E reteriam na retina aquela magnífica cena para usá-la dali a pouco no banheiro. Haveria deles que ali mesmo, encobertos até o pescoço pelo mar, se dava ao luxo de produzirem simulacros daquelas vaginas com suas mãos. E as ninfas aceitavam passivamente o coito imaginário, contentando-se lascívias com as libertinas lambidas do sol. Aceitando, e adorando seu caliente carinho nos seios fartos, nas coxas eriçadas de pelos oxigenados, na bunda luzidia apalpada pela areia. Enquanto o montículo pubiano atacado pelo ínfimo taco de pano retinha forçosamente o cheiro de fêmea. A brisa brincante de areia nos cabelos sedosos e lisos. Uma língua vermelha, de lábios carnudos a devorar com sofreguidão um fálico e viril picolé cujo estado de coisa não dando pra agüentar mais tanta carícia escorria pela mão seu lambuzado gozo lácteo.
No ano passado também o carnaval havia sido ali naquela mesma praia. Vários casais amigos tinham vindo além de Cezar e Valdelice. Naquele ano, só Cezar mais ninguém. Pela saudade que sentia do mar ali estava. Também precisava dar um tempo no relacionamento desgastado. A doença de sua sogra estava atrapalhando o convívio.
Lembrou que ficaram todos na casa de dona Alcinéia e seu Oscar pescador, que moravam quase dentro do mar. A casa era pequena. Como se saída de um conto infantil, mas com jeito deu pra acomodar os quatro casais e duas crianças Elmo e Lavínia. E todos juravam que gostariam de morar ali para sempre. Recordou que ficaram no domingo à tarde vendo o por do sol. Que ocorria do lado oposto do mar, lá ia o rei, dando adeus à montanha, ao coqueiral, ao farol. Distantes um do outro apenas alguns metros estavam naquele mesmo lugar. A tarde inteira curtindo as ressacas de si, do mar. Nem perceberam que a noite chegara. Ali mesmo na praia, todos virados em negras silhuetas, fizeram amor.
Domingo de carnaval à noite. Sempre noite doidivana. Um palanque todo ano era montado no barranco do quebra-ondas. Bandas pra todos e gostos e ritmos desfilavam muito mais corpos, trejeitos, caras e bocas que música. Apenas som em altíssima frequência. Todo um terreno de terra batida toado pelo povo. Iluminado por gambiarras que ia refletir feito pingos de fogo dentro do mar, da cor de petróleo. Ainda alguns componentes de blocos resistiam de pé. Feito mambembes soldados escapes de uma batalha insana, que haviam lutado contra eles mesmos. Resistindo deseroicamente. Tudo o que meritoriamente alcançaram fora corpos extasiados, torpes. Zumbis exalando vapores de etil por todos os poros.
Domingo de carnaval à madrugada. Sempre madrugada doidivana. Pura extravagância, um esbaldar-se do ser. Como se todas as regras de vida e de mundo merecessem serem quebradas, descumpridas. Um dar-se ao direito de deleitar-se. A negação de tudo que se era. Direito a assumir-se a duplicidade de personalidade. Homens travestidos de mulheres. Alguns de tão perfeito disfarce pondo-se a passar perfeitamente por damas. Dando a pobres observadores sóbrios, o direito a dúvida. Ainda mais quando satisfazendo a desejos secretos, o ano inteiro adormecidos, beijavam-se na boca. Alegariam depois devaneios culpa da diamba ingerida, do pó consumido, do lança-perfume. Como num mundo surreal. Seres estranhamente levados por uma comoção frenética, psicodélica. Um manancial de ilusões, de arrojo e duma volubilidade tão fremente como suster um elefante por um fio de cabelo. Sobrando apenas o direito ao riso, ainda que falso, artificial sorriso de palhaço.
A chácara de doutor Luiz ficava no boqueirão, na croa da enseada. Elmo, tinha só treze anos naquele carnaval viera passar praia com os pais, ao cair da tarde foi olhar os cavalos na chácara. Saulo um negro enorme cuidava dos animais. A pedido arreou duas montarias e foram os dois cavalgar pela encosta, até quase noite andaram. O descendente de africano cuidou de dar banho nos cavalos. Despido a beira do grotão, o negro parecia o deus Priapo, com seu enorme pênis mesmo em estado de repouso. Elmo viu e ficou simplesmente estupefato. Pior não conseguia tirar os olhos de lá. Ao tempo que do seu íntimo vinha a curiosidade de saber que tamanho aquilo ficaria ereto. Parecendo adivinhar seus pensamentos Saulo ficou excitado, e a estrovenga criando vida própria, cresceu. Desejos nasceram no coração de ambos. O menino de pele alvinha, limpa, sedosa, como de uma moça. O negro não resistiu a tentação de seduzi-lo. Mas recebeu uma negativa. Prometeu que dar-lhe-ia um daqueles potros que tanto lhes fascinara. Depois de muitas tentativas o garoto cedeu, e o negro o possuiu. Fizeram amor avassalador. Arrependido do que fizera Elmo ameaçou dizer ao pai o que se sucedera entre eles. Saulo implorou pra ele não fazer aquilo pois tratava-se de uma tara, algo que não podia controlar. O menino concordou e os dois acabaram repetindo a dosagem. Saulo ainda faz amor com ele por mais outras vezes. Desta feita o mancebo o faria com prazer. E daí passou a cobrar do varão outras e mais outras vezes. Desfalecido Saulo se vê obrigado a dizer: -“Para, ou sou eu que direi a teu pai.”
Fabio Campos 03 de fevereiro de 2015