SOMBRAS E LUZ (Ariana e Lamarck)
28 outubro 2014
Esta história é de Ariana, a ela pertence. Interessante é que não a conheço, jamais a vi. Por acaso num banco da Praça Senador Enéas, esquecido, encontrei um caderno de estudante. Pelo motivo da capa um personagem feminino, percebi tratar-se de uma menina. Olhando envolta tentei descobrir porem das que estavam ali próximo – a despeito dum rapaz que ia – não havia alguém que parecesse ser a dona do espiral. Cleptomaníaco possui-o. Folheei-o rapidamente. Detive-me na contracapa havia ali uma mensagem manuscrita. Aliás, aproveito a oportunidade, Ariana, para pedir-lhe desculpa – não tive como não ler – o esmero, aquela caligrafia.
“Lamarck, Eu preciso te dizer o quanto te amo, o quanto você é importante para mim. Hoje acordei cedo. Você sabe, sempre acordo tarde. Hoje, porém fiz diferente. Enquanto minha mãe e meu irmão ainda dormiam, na pontinha dos pés, fui até a cozinha. Abri a porta dos fundos e ganhei o quintal. O dia vinha amanhecendo… Meu Deus como é lindo ver o dia amanhecer! E pensar tantas manhãs como aquela, que eu já perdi. Enquanto simplesmente dormia. E perdia de ver momento tão maravilhoso! Aquele sol com seu brilho, invadindo pouco a pouco todos os espaços! Espalhando sua luz e seu calor sobre toda criatura. Fazendo sorrir as plantinhas do chão, verdinha com suas flores coloridas. Pintadas com capricho pelas mãos do maior dos pintores, o nosso Pai, Deus do céu o Criador! E ver os passarinhos cantando sobrevoando os telhados, subindo além do imenso azul do céu. Lembrei de nós quando estamos na praça, também brincamos e cantamos. Os adultos dizem que nós os jovens, não pensamos em nada, e tudo que mais queremos é mudar o mundo, o que não é verdade. Sabemos que o mundo nos espera, e o que pode, e tem a nos oferecer. Jamais nos iludimos de que tudo é “um mar de rosas” ou que “tudo são flores”. Sobre as flores, e os animais que habitam o mar, você mesmo, tem ideias revolucionárias, o curso de Biologia lhe proporcionou muitas e novas descobertas. Tens consciência do que dizes em tuas teorias, que pode serem rejeitadas, jamais aceitas pela maioria. Eu porem faço minhas as palavras de Lavoisier, àquele que o nosso professor de filosofia falou: “Posso não concordar com tudo que dizes, porem defenderei até o fim o direito de dizeres.” Quando estamos juntos trocamos carícias, nos beijamos e fazemos juras de amor um pra o outro. E dizemos que nada, nem ninguém será capaz de acabar um amor tão intenso, tão real, tão sincero, como esse que sentimos um pelo outro.Te amo muito meu amor!”
A mensagem tomava toda às costas da capa. Não era porem ali, que acabavam as confidências da jovem Ariana. Folheando um pouco mais, e adiante, depois de muitos escritos de escola, encontrei outras coisas de si. Dizia que havia sido muito traumático, saber que a mãe estava doente. “Doeu muito em mim, descobrir que minha mãinha tinha câncer. Ela estava com um câncer de mama. Sempre que chegava do trabalho, cansada, reclamava de dores embaixo do braço. Eu falava que achava aquilo normal, afinal a ocupação de serviçal, por ela exercida no Tribunal de Justiça. O dia inteiro a passar o pano, naquelas imensas salas. Bem que poderia ser a causa. Lembro ainda hoje, do dia da consulta médica. Eu fui com ela. Depois de vários exames minuciosos, a médica fez-lhe uma série de perguntas. Desde quando sentia aquelas dores? Perguntou que idade tinha. Em que dias do mês menstruava. Notei-lhe bastante envergonhada por estar relatando tanto de sua vida íntima, não por conta da médica, mas da minha presença, sua filha. Foi prescrita uma bateria de exames, entre elas, a tão falada ressonância magnética que muito elucidaria. Pra acabar de vez a dúvida a tal biópsia, e com ela a confirmação do diagnóstico: células tumorosas na mama esquerda, em adiantado estado de formação. Foi-nos explicado que era um tumor não benigno, em estágio avançado. Era caso pra extração cirúrgica seguida de tratamento quimioterápico. O tratamento começou no outro dia. E veio a parte mais cruel, para qualquer mulher. Ver que estava perdendo os cabelos. Minha mãe ficou completamente careca. Chorávamos nós duas abraçadas, eu tinha que ser forte, mas não conseguia. Eu olhava pra minha mãezinha querida. E só em lembrar do quanto era ela uma mulher vaidosa, que tanto se valorizava e tinha um astral lá em cima. Gostava tanto de viver! Ia aos bailes e festinhas, com as amigas e amigos, colegas de trabalho. E levantava a auto-estima de todos, onde chegava. Meu Deus, são os mistérios da vida. Ela e meu pai, haviam se separado quando eu tinha só nove anos, e meu irmão era um bebê.
Lamarck não tivera melhor sorte. Sendo sua amada órfã de pai vivo, com ele ocorrera o contrário, era órfão de mãe morta. Mais ainda traumático a forma como a teria perdido. Foi assim: Seu pai, Estevão da Paz, filho de família ilustre de sua terra natal, Santana do Ipanema, fora um rapaz boêmio dado as farras na juventude. Namorou e casou cedo com Maria Anália, tirando a jovem da casa dos seus pais, ainda quando estudava o curso normal. Só depois de casada, com sacrifício foi que se formou professora. Contra a vontade do marido ciumento, não queria que ela estudasse. Ao completar vinte anos de idade Estevão Paz, por influência política de sua família ingressaria, na Polícia de Alagoas. Como oficial chegou a major, destacou muitos anos no interior. Foi delegado em vários municípios. Aponto de ficar famoso por promover a paz nas localidades onde passava. Tranquilidade muitas vezes conseguida com o derramamento de sangue. já próximo de ir pra reserva, foi morar na capital do estado. No quartel tornou-se músico da banda da polícia Militar de Alagoas. Numa vez que a banda foi se apresentar numa cidade do litoral norte do estado. Por ocasião da inauguração de uma usina de cana-de-açúcar, um rapaz embriagado teria dirigido um galanteio a sua esposa que se encontrava no local. O major acabaria se envolvendo numa briga com esse homem. Sacou sua arma e na tentativa de acertar o galanteador, acabou atingindo sua própria esposa com um tiro no pescoço. Senhora Anália morreu a caminho do hospital. Lamarck era só um menino quando isso aconteceu. Porem jamais perdoaria seu pai por isso.
Interessante como era vida, aquele menino ficou incrédulo das coisas de Deus. Passou a acreditar puramente nas ciências. Nas teorias, nas leis criadas pelos homens. Assim era Lamarck estudante de biologia queria provar uma tese que um seu xará o biólogo francês Jean Lamarck defendia desde o século dezoito. Por méritos próprios conseguiu uma bolsa de estudos, para aprofundar sua teoria numa universidade francesa, em Bazentin-le-Petit cidade onde nascera o grande biólogo Jean-Baptiste Pierre Antonie de Monet, “Chavallier” de Lamarck “Filho mais novo, duma prole de onze irmãos. Seu era barão francês da infantaria, o que incentivou-o a entrar pro exército quando tinha vinte e quatro anos. Abandonou a carreira militar para dedicar-se a medicina e a botânica. Aos trinta e quatro anos de idade publicou três volumes do livro “Flora Francesa”. Obra que lhe valeu a nomeação para o cargo de botânico do herbário real de França pelo então imperador Napoleão Bonaparte. Professor de zoologia do museu de História do Museu de História Natural de Paris.” A biografia do mestre constava do seu trabalho.
Lamarck em sua pequena história de vida, sempre encontrara desafios pela frente. Sentado naquele banco da praça teve que decidir sua vida. Ir embora pra França e concluir sua tese sobre a Evolução dos seres vivos, ou ficar em Santana do Ipanema. Casar-se. Concluírem os dois, o curso de Biologia na universidade do Sertão. E conformar-se com o destino de sertanejo a si reservado. Ser professor, escrever, livros, compor poesias. Fazer filhos com Ariana. Dar aulas numa escola pública. Levar seus alunos pra visitarem sítios arqueológicos, rios intermitentes do vale da caatinga e reservas florestais. Com um grito talvez pudesse me ouvir. E devolver-lhe-ia então o caderno – esquecido num banco de praça – de sua amada Ariana.
Fabio Campos