Já é comum ouvirmos de torcedores, treinadores, jogadores e comentaristas esportivos que o Campeonato Brasileiro é o mais competitivo do mundo por sua imprevisibilidade. E realmente, poucas vezes temos uma repetição de campeões, mesmo nos tempos atuais, em que Flamengo e Palmeiras se destacam dos demais em termos econômicos e de poderio para montagem de seus plantéis.
Porém, se o resultado é imprevisível, existe um tema que é constantemente repetido, ano após ano, por todos, principalmente para justificar o insucesso: o calendário. Nada mais comum e batido do que ouvir técnicos reclamando da sequência de jogos dos times ao participarem das quatro principais competições que envolvem os times brasileiros: os estaduais, o Campeonato Brasileiro, a Copa do Brasil e as duas copas internacionais: a Libertadores ou a Sul-Americana. A esses, se somam ainda os torneios decididos em um dois ou três jogos: a Supercopa do Brasil, a Recopa Sul-Americana e o Mundial de Clubes da Fifa.
Se um time passar por todas essas competições e alcançar as fases finais de cada uma delas, jogará facilmente mais de 70 jogos em 10 ou 11 meses, a depender do período de pré-temporada e das férias dos jogadores. A surpresa de Jürgen Klopp, treinador do Liverpool, ao descobrir que seu adversário na final do Mundial de Clubes de 2019 já tinha jogado mais de 72 partidas até então na temporada, se tornou um marco dessa discussão. O time em questão era o já histórico Flamengo de Jorge Jesus, que, mesmo com toda essa carga de pelejas disputadas, foi campeão Brasileiro e da Libertadores e fez um jogo duríssimo na final do mundial contra o então melhor time do mundo, treinado por Klopp. Célebre também foram as reclamações de Abel Ferreira em 2020, quando seu Palmeiras ficou em quarto lugar no mesmo torneio, tendo perdido a semifinal e a disputa do terceiro lugar para o Tigres do México e o Al Ahly da Arábia Saudita respectivamente. O treinador elegeu o desgaste como principal culpado de resultados tão ruins e destilou as suas já famosas e exaltadas críticas.
Fato é: joga-se mais no Brasil que em outras ligas europeias. Talvez também do que em outras ligas sul-americanas, apenas para permanecermos nos dois centros mais comentados do mundo. Mas ainda assim, provoco o leitor com a seguinte pergunta: o calendário é mesmo o principal vilão do futebol brasileiro? Seria ele o principal culpado por derrotas, como insistem os treinadores e dirigentes?
Falta de tempo para treinar ou de recursos para contratar? O que é pior?
Tendo a discordar dessa afirmação. E, para isso, os convido a algumas reflexões. A primeira delas: futebol é um grande negócio. Envolve paixão, disputa e as ações ocultas do “Sobrenatural de Almeida”, mas ainda assim é um negócio. Que demanda cifras milionárias para se montar e manter equipes competitivas. Times mais qualificados tecnicamente e com grandes elencos se distanciam dos demais. Mesmo que a imprevisibilidade possibilite surpresas, como times mais fracos vencendo grandes equipes e azarões sendo campões, está cada vez mais claro que os melhores elencos entram como favoritos e se destacam. Podemos ter o surgimento de uma joia da base ou uma contratação despretensiosa que encaixa e permite que um time se destaque e seja campeão. Mas isso é a exceção e, se esse time não for estruturado economicamente, dificilmente esse resultado se repetirá no ano seguinte. Vide o Atlético Mineiro, campeão brasileiro e da Copa do Brasil de 2021, que naufragou no ano seguinte. Um time que contou com injeções financeiras de patrocinadores/torcedores que possibilitaram a contratação de grandes atletas como Hulk. Mesmo assim, afundado em dívidas, o time perdeu peças importantes e se viu sem resultados expressivos no ano seguinte.
Portanto, para gerar caixa, obter visibilidade para patrocinadores, incentivar seus adeptos a se inscreverem em um programa de sócio torcedor, um time precisa jogar. Disputar a maior quantidade de campeonatos, se classificar para torneios internacionais e até mesmo, se possível, excursionar por outros países. Faz algum sentido então ver dirigentes clamando por menos jogos? Aliás, não são esses dirigentes que aprovam os calendários para, em seguida, reclamarem daquilo que acordaram no início da temporada? Nenhum empreendedor reclamaria de ter muitos clientes para atender. Buscaria, sim, aumentar a sua empresa, seus times de venda, para poder atender cada vez mais clientes. Por que os times de futebol reclamam ao invés de se estruturarem?
Esse não é o único ponto. Uma fatia ainda generosa das receitas dos clubes advém da venda de jogadores. Para isso, as categorias de base precisam ser aprimoradas, e as jovens pérolas dos times precisam jogar. E jogar no profissional. Ter convivência com esse ambiente de alta competição e enfrentar adversários de nível superior aos jogos da base. Se forem reduzidos os números de jogos, como esses garotos vão ter espaço para aparecer? Justamente por isso, times europeus compram garotos com pouca ou quase nenhuma passagem pelo futebol profissional e depois os revendem por um preço várias vezes maior. Lá eles ganham espaço para jogar, se aprimorar e, por consequência, passam a ser mais caros.
Dessa forma, entendo que o calendário não é o grande vilão apontado. Muitos criticam os estaduais, algo que é uma exclusividade de um país continental como o Brasil. Mas por que não utilizar esse torneio como uma pré-temporada? Por que não utilizar os times de base nessas competições, e guardar o time principal para as fases finais. Por que, ao invés de recamar do calendário, os dirigentes não lutam contra cláusulas absurdas que obrigam as equipes a jogarem com seu plantel principal jogos esvaziados da fase classificatória dos estaduais? O Brasil é um país formador de jogadores. Em 2022, nos mantivemos na ponta do ranking de países que mais exportam, bem à frente da França e da Argentina, respectivamente segundo e terceiro colocados da lista. Isso deveria ser mais um motivo para estimular nossos dirigentes a buscarem mais oportunidades para que suas equipes atuem. Esse é o ciclo que permite gerar riqueza para os clubes, que podem investir na base, na infraestrutura e na construção de elencos mais fartos, mesclados entre jovens e atletas mais experientes. Assim, todos poderiam ganhar.
A consciência precisa mudar em todo o ecossistema de futebol. Técnicos ranzinzas e desculpas pós-derrota nas coletivas sempre existirão. Mas elas não podem encobertar o fato que de nosso futebol perde a cada ano a competitividade porque nossos clubes estão cada vez mais atolados em dívida. E a falta de dinheiro não é a causa, pois tudo cresceu ultimamente: direitos de transmissão, o valor das vendas dos jogadores e até o público nos estádios. Mas falta gestão para transformar recursos em avanços sólidos. Assim como o calendário farto é uma desculpa, a falta de dinheiro circulando também é. Do contrário, o que explica o fato de a Libertadores da América, um torneio que, há poucos anos, era especialidade dos nosso hermanos latinos, ter se tornado uma competição que, à exceção de um ou dois times argentinos, é amplamente dominado pelas equipes brasileiras? Profissionalizar a gestão não é mais uma escolha e sim questão de sobrevivência para a maioria das equipes nacionais. Não à toa, estamos a tanto tempo sem ganhar uma Copa do Mundo ou os nossos times têm encontrado cada vez mais dificuldade contra as “potências” do mundo árabe. Porque esse é um problema que permeia todas as esferas do futebol brasileiro. Certamente nosso calendário pode e deve ser aperfeiçoado. Mas ele é, de longe, o menor dos nossos problemas atuais.
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* Maurício Ferro é advogado com mestrado e especializações realizadas em universidades como a London School e University of London. Cursou OPM na Harvard Business School. Autor de trabalhos nas áreas comercial e de mercado de capitais com atuação no Conselho de Administração de grandes empresas.