RETRATO NA CADEIRA (Minha Vida – Lulu Santos)

4 setembro 2015


Uma nuvem caminhando sozinha do lado mais azul do céu, mais uma tarde se fez. Um lírio despencou do talo, feito uma lágrima branca, e era ainda aquela mesma tarde. Uma mãe sentada na cadeira na porta de casa, cada vez mais tarde ia à tarde. Uma que era filha veio vindo. Pediu a benção beijou-lhe a testa. Sentou noutra cadeira. Acendeu um cigarro, folheou um álbum de fotografias, e sorriu, a tia que estava no retrato, continuava séria. Muito bem disfarçada a cicatriz no supercílio direito que desde muito estava lá. “Tia queria ser cantora…” “Tenho saudade de minha mãe.” Disse a primeira. Olhando pras bandas de onde ficava a terra natal disse isso. Como se o céu pudesse trazer o passado, e ficou triste. Não apenas a que disse, mas tudo em redor ficou triste.

“Quando eu era pequeno

Eu achava a vida chata

Como não devia ser

Os garotos da escola

Só a fim de jogar bola

E eu querendo ir tocar guitarra na tevê”

A igrejinha, os degraus, alvo querubim no alto do portal, a santa no altar, o negro badalo, sisudo, sisudamente atrepado, lá em cima. Tudo como estava daquele jeito, trazia pra acolá a casa materna. A buscar tristes recordações, os olhos se enchiam de lágrimas. Lembranças das discussões acirradas de tio Enéas e tio João Doroteu. Um era crente, o outro católico. Se pudesse não ouvia aquela arenga. Vontade dava era de sumir. Tio Manoel ensaiando seus cânticos pros velórios. Cantos tão penosos. Acompanhava-o vô Antônio com sua rabeca “a porca cochicha”, Um riso morno chegou aos lábios, por ternos segundos virou sorriso. Tio Pedro sentado num tamborete perto da janela porque depois duma xícara de café, acendia o cigarro de fumo picado. As baforadas e as cusparadas defenestradas, umas pelas janelas, e outras por cima da folha da porta. O cheiro de pinha vindo da dispensa. Abóboras e pinhas amadurecendo dentro dum balaio, aguçando as ventas dos curiosos. Em cima da mesa uma travessa cheia de goiabas tão amareladas guarida dos mosquitos, fedidas a bufas de bebê.

“Aí veio a adolescência

E pintou a diferença

foi difícil esquecer

a garota mais bonita

também era a mais rica

me fazia de escravo do seu bel-prazer”

Osvalinda e Aucantina iam pra igreja. Esta de cá carinhosamente Tinô. Tinha por obrigação toda tarde ir as duas pra igreja. Por vezes ia Dália. As três, às três da tarde de joelhos, véu sobre a cabeça, rosário nas mãos, rezavam a ladainha, o terço da Divina Misericórdia. Uma vela acesa penitência encomendada por madrinha Amália. A bancada em verniz preto, o apoio dos braços marcado de pingos de parafina recrudescido. O sacrário ladeado de imagens de anjos segurando luminárias, as asas subindo suavemente, olhar de quem guarnecia serenamente. A imagem de Cristo o lado traspassado pela lança, ombros esfacelados, joelhos em carne viva, na iminência do sangue gotejar nos alvos panos do altar. Sagrado altar esmeradamente forrado da cor das tapiocas de dona Faustina. Santo Antônio com seu rosto de anjo segurando no colo outro menino. A moeda colocada no cofre da igreja. O trinco da bolsa fazia um barulhinho engraçado quando fechava. Um dia, André filho de dona Mirian foi pra missa, levou um cruzeiro pra por na cesta de coleta. Só que ao invés de colocar o peralta tirou foi mais um. Pra completar o ingresso pra sessão de cinema: “Noites Cariocas” com Oscarito, somente naquela noite, no salão do açougue. Andrezinho bronca tão séria levou do padre que bastava ver um menino se aproximar da urna de doações que arregalava os olhos. E de longe, com medo de se aproximar avisava aos berros pra ter cuidado que “A alma de meninos eram sugadas pelo cofre do padre!” E que a noite ao pé da cama, na hora de rezar, daria pra ouvir o gemido das pobres pedindo pra alguém tirá-las de lá dentro.

“Quando eu saí de casa

Minha mãe me disse: Baby

Você vai se arrepender

E lá iam às duas irmãs, sem pressa, pela estrada seguindo. Acima de tudo felizes. Os vestidos alvos caçoavam das nuvens, acenavam ao vento. No rosto, diáfano pó de arroz, no penteado belo broche, um chapéu gracioso. Tudo que era dito um dia teria sido realmente. A mãe se segurando pra não chorar. Chorava porem as palavras. E era como uma cortina feita de polissílabos que no eco plasmavam flutuantes. Talvez fosse mais fácil dizer silêncio. O mundo porem teimava em ser repleto de azul. Cheio de saudade. Estupidamente caduco de lembranças que instigavam os sentidos, a flor da pele. Causando um frio que casaco nenhum conseguiria aplacar. E as coisas todas como se estivesse esperando os relógios envelhecessem as horas, e era como se toda dor que não devia ter sobrevivido voltasse, irremediavelmente. O amarelo das goiabas querendo adultamente ser laranja; o lilás detestando ser roxo; o púrpura despudoradamente sendo violeta fruto do mandacaru. O colo esperando um rosto amigo pra repousar, mas quem sabe, jamais viria. A iminência de coisas muito sérias novamente voltando a acontecer, coisas que tiveram gosto de faca cortando, lânguido igual babão da jaca mole, o liga do leite de labirinto. Cheiro de velho, de ninho de passarinho. Gosto de água de pote na boca. Os homens um dia se foram, e caminhavam sem olhar pra trás, muito sérios iam. Só Deus sabe tão sérios aonde queriam chegar. A vila inteira, os feirantes, os meninos, o açougueiro, o tabelião, o delegado, a professora. Dentro de um azul e preto em câmara lenta seguiam a procissão dos iludidos. Menos o padre Bulhões que tinha ido pro sítio Gameleiro encomendar uma alma, e o farmacêutico Moreninho fora até a fazenda de Zé Roque aplicar uma injeção contra Cornage, um mal de cavalo que fazia assobiar forte ao respirar. Compromisso nenhum do que foi dito, tinha com a história que ainda estava pra acontecer. Talvez o esperado nunca fosse realmente contado.

Pois o mundo lá fora

Num segundo te devora

Dito e feito

Mas eu não dei o braço a torcer”

Padrinho Pizeca tinha uma tosse crônica que piorava com o cair de tarde, tão fria quanto àquela. Lá do quintal dava pra ouvir a pulmoneira que começava pouquinha e acabava em crise. Dona Amélia fazia um chá de hortelã com mastruz que aliviava, só não podia tomar muito, pois era muito forte. Enéas mais Seu Esaú foram cubar uma terra de Seu Tonico Ambrósio que seria repartida em herança, parte seria vendida pelos filhos, a Seu Pedro Vieira. Tinha uma semana pra mandar destocar quando viriam as chuvas de inverno atrasado. As chuvas arrastaria o barro e tudo ficaria nuzinho, os tocos queimados ponteariam sobre a terra. O imbuá caminhando, a tanajura zumbindo na cumieira da serra. A sementeira quietinha dormindo, aguardava esperando o momento certo depois de covar, desarcordar debaixo do chão. Negro Bongo dera pra andar com Casteado. pense duas peças lorde! Boa coisa os dois não andavam aprontando no oitão do mundo. Pegaram uma encrenca com dona Terezinha por conta duma gamela. Foram dar comida pros porcos, o jumento pisou dentro do cocho que se partiu em dois pedaços. Pense no fuzuê que a mulher fez. Botou os dois pra correr debaixo de chicote.

“Hoje eu vendo sonhos

Ilusões de romance

Te toco minha vida

Por um troco qualquer”

Anacleto filho de dona Ciça todo dia ia pegar passarinho nos cafundós dos Judas. Os cafundós das redondezas eram as propriedades de Seu Arnóbio e Seu Canuto. Dona Ciça desde cedo, metia o pau a gritar pelos meninos “Anacleto! Diógenes!” Pra irem apartar os bezerros das vacas no curral. Os pestes se largavam no oco do mundo. Dona Ciça coitada, sozinha ia fazer o serviço levando Benezinho o mais novo, arreganhado na cintura. Comadre Dorinha encomendou um braço de milho seco a Seu Tobias. O homem achou de mandar justo nêgo Bongo pra quebrar esse milho que ainda estava na roça. Era pras galinhas poedeiras de tio Doroteu. Quando alguma estava choca botava pra deitar atrás da porta da dispensa. Toda vez que tinha que ia buscar uma cuia de feijão, era zoada doida. Zé Candinho tinha uma queda danada pelas modernidades. No meio da feira comprou um peste dum rádio. Ligava numa bateria velha e tinha um monte de arame que ia pra debaixo do chão por cima da casa. Sintonizava a rádio clube de Pernambuco, gostava de ouvir as músicas de Inezita Barroso e “As Irmãs Galvão” que as filhas de dona Amália imitavam direitinho. Os meninos tinha uma história de ir tomar banho no açude de Seu João Lola que queria ver o cão, mas menino lá dentro nem ver. Mas se um dia é da guariba o outro é do caçador. Aí o can-cão piou! Munido duma “soca-tempêro” o velho mandou chumbo. O tiro cobriu e foi menino correndo pra todo lado. Sóstenes, Maurílio desembestaram pelas capoeiras. Fernando, “Titico” e Dorival sumiram na catingueira. Era nêgo se ralando nos rasga-beiço, nas urtigas, as roupas e os chinelos deixando pra trás. Temístocles pegou a vereda, não viu o colchete lascou-se em cima dos fios de arame foi um rasgão que uma orelha pendurou, quase aparta da cabeça. Cléster outro que levou azar subiu num pé de jaqueira tinha um enxame de abelhas, levou ferroadas na cabeça, rosto e pescoço, teve febre, frio e dor de cabeça. Por um bom tempo os pássaros e bichos daquelas bandas teve sossego.

“É o que chama de destino

E eu não vou lutar com isso

Que seja assim enquanto é”

Comadre Zefinha ria pra se acabar das doidices de Emília. De tudo falava, achava extravagante quem comprava muita roupa. E Dália entendia que era com ela, punha Francisco no braço e ia embora. Mal criada Emília um dia levantou a mão pra bater em dona Neném. O filho não gostou nada disso. Seu Antônio fumava cachimbo no alpendre. Depois dos setenta teve catarata e glaucoma ficou cego. Otacílio a tarde aparecia na casa de Abdon pra contar histórias do tempo de Lampião. Os dois lembravam da seca de 32. E começavam uma discussão sobre qual tinha sido realmente o ano, 32 ou 36? Lembrou que era o povo caindo pelas calçadas pedindo alguma coisa pra comer. Cena parecida com a peste negra que assolou a Europa. O povo se trancava dentro de casa com medo da fome. A seca de 70 essa ninguém nem sonhava mas já estaria marcada pra vir.

“Hoje eu vendo sonhos

Ilusões de romance

E troco a minha vida

Por um troco qualquer”

Dália se lembrou do dia de seu casamento. O noivo contratou um sanfoneiro que começou a tocar duas da tarde, e puxou pro meio dia do dia seguinte. Lembrou que ficou sentada na cama, o pai lá na cozinha chorou. O noivo chegou pra dar um beijo, não permitiu, teve vergonha. Quis que o casamento fosse em casa. Pois soube que a igreja estava cheia de curiosos só pra ver como ficariam os noivos. No dia seguinte vieram pra Santana no carro de Seu Dota chofer contratado especialmente para aquela ocasião. O Panema em toda largura teve que atravessar de canoa, empreitada nada fácil. Quando Francisco nasceu dona Amália veio passar os dias do resguardo com a filha. Voltando pra infância lembrou que teve asma e Seu Moreninho receitou três injeções, tomaria duas, e ficaria boa. Moreninho perguntou se a menina guardava mágoa por conta do fuzuê que fizera quando levou um capão pro padrinho Pizeca na semana santa. Não ficara. A irmã na foto, o cabelo derramado pelas espáduas cobertas pela blusa de manga bufante. Tão bonita, tão séria. Para sempre no álbum de fotografias ficaria. A cicatriz no rosto, um corte de caco de pires de quando criança tomava café. Irrequieta derrubou a xícara e caiu. Dona Amália tratou da ferida. Seu Doroteu todo dia. Longe, muito longe ia buscar um pote d’água, saía madrugada e só chegava altas horas da noite. “Mãe me dá um tostão? A senhora tem tanto dinheiro… Pra que quer um tostão menina? Eu queria tanto tirar um retrato.”

Fabio Campos 26 de Agosto de 2015

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