O voo do Rouxinol
17 agosto 2012
Olhos, cabelos. Rosto de índio tinha Martins. Muito de selvagem havia nele. De manso apareceu nas nossas vidas. Chegou, pediu uma cerveja, e ficou. Mesmo sem dizer o que era terra, disse. Sem falar do amor que sentia, disse. Jeito texano, caubói do asfalto. Cativou-nos o jeito apaziguado. Nunca olhava. Contemplava, e punha poesia no que via. Acalentava, como que fosse por as coisas pra dormir. Acendia o cigarro como aquele da propaganda da Marlboro. O caminhão, a estrada sua casa. Nem bem chegava – deitava a girar a bola do mundo embaixo dos pneus – partia aventureiro. Se ia, deixava pra trás seu coração dentro do peito de minha irmã. Não prometia, se voltaria. Sempre voltava. Quis criar limo, cravou os pés em Santana do Ipanema.
Um dia foi, e levou um pouco de nós. Agora era dois. Iam, e voltavam. E dois virou família. Fez-nos tio, duas, três vezes mais. Vivia e se entendia – em constante diálogo, sem precisar falar – com a natureza. Sabia de calos doídos, sinalizando chuvas, de aura acinzentada entorno do luar, avisando trovoadas. De ir lá num canto do muro catar um punhado de uma plantinha, pra colocar em ferimentos, dar pro cachorro e pros passarinhos – se lhes diziam estarem – com dor de barriga. Quando podia, e por vezes podia, levava bichinhos e plantas pra dentro de casa. Cães vagabundos. Deles, apiedava-se. Cria em coincidências, e na providencial mão do destino. Num pedacinho de selva, que os homens comuns chamam de quintal, cágados, saguis, porquinhos da índia, jabutis, iguanas, hamsters. O rouxinol que gostava de canários, pintassilgos, cancãos, ferreiros, cacatuas, calopsitas. E educar papagaios pra chamar os donos pelos nomes, cantar arremedando o canto de seus pares. Encheu de mar um vão de acesso a cozinha, rei Netuno submergindo de dentro de baús, caravelas, sereias, era de aquário. Um cão amigo, amigo cão. Cúmplices de afagos e brincadeiras, e conversas sérias também, de passeios nas tardes douradas. Camisa pólo, calça jeans índigo blue, sapato mocassin. O longo cabelo escorrido, penteado com esmero – se molhado, camuflava os fios brancos – conferindo-lhe jovialidade. Ameríndio redesenhando seus caminhos. Saído da zona da mata, indo desbravar veredas do sertão.
Quando fui à primeira vez a sua terra natal, apresentou-me aos amigos. No bar preferido, a cerveja preferida. À mesma mesa, que sempre estaria lá, lhe esperando, morrendo de saudade. O barman sabia a música que devia tocar. Bebemos, brindamos à vida, ao prazer de ser o que éramos, e viver tudo o que havia: o instante. O momento era, e pronto. Martins tinha história, histórias várias. Em cada lugar que ia, a cada esquina um enredo, novos protagonistas. Moleque engraxate ganhava moeda, carinho, e apelido. Cumprimentos, acenos ao carroceiro, o estivador, o relojoeiro, a vendedora de peixe na porta do mercado. Havia história em tudo, em cada canto da sua cidade. Espraiando no horizonte a Serra da Barriga, gigante verde, encerrado adormecido. Corpo de negro, deitado de bruços, alma de negro, carne de negro incorruptível. Impregnado de húmus, de vermes, amalgamado, muito embora, em profundo sinal de respeito não pervertia. No ventre de barro, soterrado o grito nagô nos ventos da aflição. Zumbi havia em todo canto, músculos severos, suados, voltando da roça. Sangue dos Palmares, derramado no canavial, na lida com o facão ferindo a touça de cana. Bíceps e peitorais Inflamados do quilombo estrangulando saca de açúcar. A lança de Zumbi cruzou o ar, foi se encravar no coração da onça. Pés negros desnudos resvalando entre a pedra e a areia do chão antigo, chão encharcado de império. Vento assoviando ordem, impondo respeito e temor, nas flâmulas tremeluzentes dos umbrais desenhados.
O mar de cana ia engolindo tudo. Engolindo os olhos da gente. Estúpida voracidade de redemoinho. Engolindo carroções, bovinos, camponeses, negros, cães, latidos e lamentações. O choro do canzil indo longe, e voltando cego do sal da maresia sufocada de Inferno verde. Dava pra ouvir o roçar de pele de negro no capinzal, os grilhões, o canto pra espantar fadiga. As casas rústicas. O fogão a lenha, no meio do terreiro, o jumento cangalhado aguardando carga. O pano de chita gritando pra gente olhar. Sob a pele fubazenta dos banhos nos córregos cristalinos, mulatas, carnes vistosas, as partes íntimas de coito com o sol, pele luzindo n’água, pelos negros e sedosos de cheiro adocicado de banho com sabão de coco. Corpos desejados pelos capitães do mato, pelos jagunços, velado desejo dos senhorios de engenho, bem casados com nobres brancas da corte. O ar labaredeando palha da cana de dois homens de altura.
O matagal, misterioso olhava ameaçador, dizendo pra manter distância. Não excitaria em devorar-nos vivo. Árvores gigantescas se projetando pro anil celestino, e quando à pujança do rei-sol se ia, viravam dragões, monstros fantasmagóricos, paridos do ventre da mãe terra, incontestavelmente transportados da idade medieval. Caía o véu da noite e dava pra ouvir os atabaques e afoxés, vindo da mesa da montanha. Cujo cume custodiava a negrada fugidia. Refugiados na crista da mata elevavam preces, ofereciam holocaustos a pai Oxalá, Ogum e Yãssan. No cruzamento da seara, sexta-feira, meia-noite arupemba com garrafa de cachaça, galinha preta, espelho, cédulas, moedas, colares, pulseiras, anéis, flores, fumo de rolo, perfume e quindim. Despacho pra Pomba-Gira e Zé Pilintra. Trabalho feito. Pra conquistar mulher difícil, pra quebrar senhorio cruel. Lá vinha Jorge de Lima todo de branco surgido no clarão da noite montado no cavalo do seu santo guardião, empinando a crina, troteava o pangaré enquanto se ouvia o canto pro acendedor de lampião e pra Nega Fulô.
Se janeiro, Santa Maria Madalena, chamava o povo pra igreja. União era festa. O estandarte da santa – roto de tempo e de história – esmaeceu de colores. Guimarães palmarino deitou contrato pra pintarmos outra bandeira. Índio Martins apenas observava – por entre a fumaça azulada do cigarro – acompanhava as voltas que a tinta e o pincel davam sobre o algodãozinho. Ao cair da noite depois da novena cantava o rouxinol, canto mavioso de cordas acompanhado. Os janeiros áureos se foram, tragados feito fumo, pra dentro do abismo do tempo. O rouxinol aturdido por não saber mais de cantar, alçou vôo, voou.