O TROPEIRO (Meu Pitaguari)
27 agosto 2015
A mata. Labirinto de puro mistério. Um calafrio a percorrer o corpo toda vez que ia por lá. Por que aquele medo toda vez que passava ali? A mula avançando pelo caminho. As casas. Cadê as casas que não apareciam logo? Desejava avidamente que a vila apontasse no olho da estrada. Por que justo naquela curva tinha que ter mata dos dois lados? Dum lado, subia a serra, do outro despencava abismo abaixo. A estrada serpenteando doida de pedras, e barro. Os olhos atirados lá pra cima, medo de olhar pra baixo. Os caçuás, vuco-vuco, roçando na sela dando ainda mais nos nervos. A burra, o ar dos pulmões entre o esôfago e a traqueia, remedava o som do roça-roça. Pensamentos de gelo, o frio petrificando os lábios, entristecido os olhos. Vida de tropeiro, vida toda varando o mundo em cima duma mula. Para que aquele vento gélido não viesse chover daria de pensar num começo de reza. Como sempre entendida ao contrário, e caía torrencial tempestade. Melhor seria não ter inventado reza. Lembrou com ternura do aconchego da bodega. Cheiro de bacalhau pubo, lapada de cachaça, fumo de cachimbo. Seu Pedro dizia que o Sítio Capim e toda aquela redondeza parecia que ficava mais perto do céu, porque nunca viu lugar pra chover tanto. O chapéu encharcado a aba amolecida, pingando e pingando, no bico da venta, congelando, a barba dura. A molhação empapando a roupa, penetrando até os ossos. Seu Antônio Tenório tinha uma ciência que chuva fina molhava mais que chuva de trovoada.
“Meu Pitiguari/ Meu Pitiguari
Voa vai buscar/ Voa vai buscar
A espera mata/ A espera mata
Um coração que quer amar
…
Ansiedade me machuca o peito
Sem ver a hora de você chegar
Amor ardente, paixão incontida
Por toda a vida é o que vou lhe dar
Meu Pitiguari”
O tropeiro. Todos os dias, caminho de casa caminho da rua. Caçuás cheios de macaxeira, a vender de porta em porta. Entrou no armazém de Seu Eliezer precisava duns atavios. As coisas ali, de tão cansadas dormiam, como em berço esplêndido. Um silêncio velho, passeando na camada de pó das prateleiras sem sentir o menor constrangimento por isso. Mercadorias sérias, caladas demais. Tudo ali era tão sem assunto que dava agonia. Tudo tão anêmico de tons, apático de cor, raquitismo de luz. Tudo assim tão carente de vida. Ali dentro se sentiu como um resto de piada “…mais perdido que rato em casa de ferragem!” o que acabaria trazendo um pouco de calor humano, conforto pra alma. A mente numa tentativa sobre humana de trazer de volta a alma do desinfeliz que vagava. O consciente ia apresentando um sequencial de tudo de que precisava: uns metros de corda de caruá, pavio de candeeiro, fósforo da marca Matches, sal Cisne, um facão Tramontina, pólvora Sacy, chumbo Guarany. Vários novelos de corda de caruá de diversas bitolas deitados no chão, vasos de grãos de feijão e milho de chapas de zinco apoiados em lastros de madeira encostados na parede, perfilados. O cheiro reinante ali era de querosene da marca Jacaré. Seu Eliezer que era da lei de crente usava camisa de mangas comprida abotoadas nos punhos, e a gola fechada rente ao pescoço. O bigode branco combinando com a alva carapinha. A bíblia de capa preta sobre o balcão sempre ao alcance da mão, enorme mão de dedos nodosos. No interior penumbra, as aberturas das portas como fendas que ameaçavam encher tudo dum imenso deserto de luz de fina cal como um portal que daria acesso a terra da lua. O sol que um dia havia talvez tivesse adquirido uma mancha negra que se estendia formando um magnífico eclipse e a todo instante provocava explosões espalhando pelo cosmo uma chuva de larva incandescente que acabaria por dizimar toda a vida reptiliana, a única existente sobre a terra de uma época remota. Isso talvez fosse o que se chamaria de caos. E a partir daí daria início a criação.
“Meu Pitiguari/ Meu Pitiguari
Voa vai buscar/ Voa vai buscar
A espera mata/ A espera mata
Um coração que quer amar
…
Eu lhe dou tudo o que você pedir
E faço tudo que você gostar
Dou a paixão que eu sempre tive
O amor bem livre, com sede de amar
Meu Pitiguari”
A Rua. Um pingo de remorso não tinha, de nada se sentia culpada. De quem era pobre, de quem tinha muitas posses, de quem era miserável. A rua não sentia culpa se ‘a’ ou ‘b’, se fulano, sicrano ou beltrano não tendo o que fazer ficava falando da vida alheia pelas esquinas. A rabeca de Seu Antônio em duas notas: “A porquinha ronca e fuça” gargalhada geral. Desconfiavam que o rapazola que ajudava o padeiro com o forno da padaria tivesse um chamego com De Lourdes empregada de dona Cristina, e daí não era a mulher, solteira mesmo. Só que pendia uma asa pro cabo Matias. Depois que vendia a macaxeira, tropeiro ia buscar uma carrada de madeira encomenda de Seu Arlindo da padaria. E se estivesse chovendo não tinha quem fizesse o ajudante ir até a bodega comprar uma garrafa de cana. Considerava o fim da picada, sair na chuva depois de horas a beira do forno, e correr o risco de ter uma constipação, ficar doente. Como aconteceu com finado Zezinho. E olhe que ele tomava umas canas pra aguentar o rojão. O peste era tão viciado que pra conseguir tomar a primeira dose do dia, segurava o copo com as duas mãos. Tremia tanto que derramava quase tudo no rosto no pescoço. O companheiro Mané guarda chegava de madrugada ligava o motor do caminhão Ford que fazia a maior zoada. A chuvinha fina bem escondidinha no escuro enganava quem tinha que sair da cama cedo. Se ao menos desse pra ouvir os pingos batendo na telha se negaria a sair tão cedo de debaixo dos cobertores. Naqueles dias de inverno cadê coragem pra tomar banho. O lençol abafa-bufa grosso que só parede de igreja, pegava uma inhaca desgraçada. A mulher pra aguentar a catinga o obrigava a lavar pelo menos os possuídos.
“Meu Pitiguari/ Meu Pitiguari
Voa vai buscar/ Voa vai buscar
A espera mata/ A espera mata
Um coração que quer amar
…
Meu desejo já não tem sossego
Buscando o seu todo instante vai
Por tudo peço não demore não
Que o meu coração já não aguenta mais
Meu Pitiguari
Descambou a folhear um jornal velho, encima do balcão. Tão cheio de tanta letra. Figura que é bom quase nenhuma. Talvez só servisse mesmo pra enrolar prego. E tudo poderia ser muito menos dolorido do que na sempre fora. Lamentou não ter leitura suficiente pra ler aquele monte de coisa. Quem sabe lesse a crônica de Rubem Braga que falava de borboleta, dum pé de jambo na Rua do Ouvidor. Ficaria a par da recessão que assolava a nação americana. Depressão severa nos Estados Unidos, da América, e no Canadá tudo por conta da maldita guerra. Muita gente não podendo assumir seus compromissos com o aluguel foi morar em favelas apelidadas de Hoovervilles, uma sátira ao presidente Herbert Hoover. Não tendo dinheiro pra abastecer de combustível seus automóveis, muitos passariam a atrelar mulas aos veículos apelidados de Bennett Buggles, carroças Bennet, uma crítica ao primeiro ministro Richard Bennet.
“Meu Pitiguari/ Meu Pitiguari
Voa vai buscar/ Voa vai buscar
A espera mata/ A espera mata
Um coração que quer amar
…
Se seu amor é igual ao meu
Chega de pressa, vem de pressa vem
Que o meu desejo é lhe matar de beijo
Depois de saudade eu morrer também”
A casa. Lá estava arribada na ribanceira do gravatá. Mês de agosto fazia muito frio, meu Deus como era frio! Dona Amélia dizia que aquela casa ficou mal-assombrada. Quando estava sozinha do alpendre ouvia alguém abrindo o armário da cozinha. As alpercatas de couro cru rangendo, rastejando no piso. A gaveta dos talheres se abrindo. Tudo em plena luz do dia. Alguém pegando a faca na gaveta. Exatamente como naquele dia. Calmamente indo ao quarto, a filha estava deitada na cama toda enrolada, nem um pio se ouviu. O sangue morno descendo pelos lençóis empapando o colchão. As grades da cabeceira ficaram sujas de sangue. Depois das sevícias na hora do desespero teria se agarrado ali. Sete facadas nos peitos e colo. Institivamente olhou pro mato, na direção onde haviam encontrado o corpo. O vestido rasgado, a calcinha bem longe dali, uma tiara e os sapatos. O caderno todo rasgado tinha desenhos, vários corações sublinhavam a frase: Te amo papai.
Fabio Campos 13 de Agosto de 2015