Lenda Suburbana
27 fevereiro 2013
O Serrote do Pintado é uma vistosa montanha que se estende a noroeste da cidade de Santana do Ipanema. Desde o sopé até o cume, coberto de exuberante mata nativa, a caatinga. Alheio a voraz sagacidade do progresso e da urbanidade, conserva-se intacto até hoje. Como que a desafiar o tempo e a civilização. Onças-pintadas, raposas, gambás, preás, saguins, jiboias e outras tantas variedades de serpentes e salamandras ali convivem, num verdadeiro santuário ecológico. Contam-se casos da existência de répteis tão grandes naquela floresta que teriam até virado lendas. Passadas de geração a geração pela boca dos contadores de histórias. Cobras gigantes, que já atacara alguns caçadores, matando-os e comendo-os vivos. Permissão nenhuma era dada para entrar, muito menos caçar, naquele bosque. Ato ilícito cometia os que ali adentravam e assim, nunca ninguém sabia direito quem fora, ou de que família era os que levavam sumiço. Indigentes, nunca reclamados, nem ao proprietário da mata, o prefeito, nem a polícia. Só os escutadores de causos, estes sim querem saber.
Quem se punha a andar ao sopé do serrote sempre pensava que nenhuma construção veria num raio de muitos metros. Só que, de repente, lá estava ela. Aparecia como que por encanto, a fazenda do prefeito Agamenon. Por entre árvores frutíferas, propositadamente cultivadas, com a finalidade de arejar, dar sombra em derredor da casa. No entanto muito ajudava a esconder a construção. A entrada era simples. Uma cancela, feita de madeira nobre em duplo xis. Sob um portal elevado em alvenaria. Ladeado por duas pilastras de pedras, dava uma aparência rústica. Não trazia no alto a denominação pelo qual era conhecida: “Castelo das Tucaias”. Concebida no declive, numa área mais recuada. Construção elegante e graciosa. Um casarão em estilo colonial. Feito com esmero. Arquitetada de modo a aproveitar as falhas do terreno, escarpado. As vigas, apoiadas em batentes de mureta propiciou espaço ao esconderijo alpendrado. Por entre a vegetação arbustiva, catingueiras e craibeiras.
Seu Jasão e o filho Josuel, estavam juntos a cocheira. Uma puxada, anexa ao curral. Cuidavam da lida diária da fazenda, iniciada com a ordenha matutina. De onde estavam, avistavam a patroa Dona Sofia. Uma bela senhora. Mulher de uma beleza sábia. Beleza que se descobre, a cada vez que se deita o olhar sobre suas feições de singela imagem. Nem a maternidade, muito menos a vida matrimonial tiraram dela, a graça, o viço juvenil, que aflorava na fugaz essência de seu ser. O cabelo preso. A um intruso observador, cabe o ilícito dever de imaginá-la desprendendo aquela linda cascata de fios sedosos e lisos a se derramar por sua espádua. Liberando no ar, a sua volta, o perfume suave e inebriante do seu colo. Nos lábios, suave tom purpúreo. Contrastando com a pele alva, e realçando ainda mais seu rosto e os olhos claros. Gracioso chapéu à mão, põe-no à cabeça. Uma bela dama. É a primeira dama do município.
Josuel nasceu naquela fazenda. Seu Jasão ali viu nascer, a ele, e aos seus onze irmãos. Também o prefeito Doutor Agamenon. Seu Jasão é capataz desde quando a fazenda ainda era do velho patriarca, o falecido Ulisses. De geração em geração, as vidas seguem seus dramáticos destinos: Daqueles que só vivem para serem servidos, e daqueles que acham que só servem para servir. Josuel rapaz de feições morenas. Dedicado no trato com as coisas rurícolas, aprendera a arte e o ofício com seu pai. É alto e forte, como o pai. A labuta no campo acrescentara ao rapaz, musculatura potente, rija, viril. Um mancebo de feições atraentes. Um rosto interessante, boca de lábios finos, olhos astuto, de águia, cabelo serrado, rente a cabeça. Braços e mãos de Titã. Pernas firmes.
Sofia, o observa com naturalidade. Muito embora no âmago, no mais intrínseco de sua alma, ela vai encontrar-se traída pelos instintos de mulher à admirar o belo rapaz. Volta o rosto para o Cavalo. Acreditando que o meneio de cabeça vai acabar por afastar o pensamento impróprio. O Cavalo é realmente uma bela espécie. Aqueles belos animais estavam ali disponíveis, servis, à suas ordens. O cavalo ela poderia montá-lo. E galopar pelos arredores da fazenda. Sob aquela montaria, verdadeira deusa grega, tendo um reinado inteiro a seus pés. Um dos vassalos ali, pronto pra obedecer às ordens de sua bela rainha. E ela Ordenou:
-Josuel! Traga-me o cavalo até o alpendre da casa.
E foi vistoriar os afazeres na cozinha. O cavalo que Josuel foi pegar pra sua patroa ir ao passeio, é um animal puro de origem. Cavalos possuem uma elaborada linguagem corporal para comunicar-se com seus pares. Dotados de ilhargas suaves que lembram a sensualidade das ancas femininas. Firmes e bem apoiadas em suas patas traseiras bem delineadas. O rabo é um acessório importante, se excluído propositadamente ou não, tira parte da beleza do animal. Sua cabeça conelínea, estreita próxima a boca e levemente alargada nos flancos e orelhas. Quando pressente sinal de perigo aresta as orelhas. Aguça visão e olfato dilatando pupilas e narinas. O pescoço é firme e largo, adornado pela crina, que quanto mais cuidada imprime mais beleza e sutil sensualidade ao animal. Cavalos selvagens são ainda mais fascinantes. Cavalos permeiam a história da humanidade. -Meu reino por um cavalo! Diria Calígula. O grande orador Cícero nomearia seu belo equíno, senador da republica romana. Josuel não ficando muito atrás, denominou o seu de Príncipe.
Sofia pediu que providenciasse outra montaria e a acompanhasse, não gostava de cavalgar sozinha. Nem suas filhas, nem Agamenon estavam na fazenda. O filho do capataz, estava radiante, gostava de acompanhar a patroa, nos passeios. Achava-a engraçada, pela sua falta de habilidade pra conduzir o animal. O equídeo, acabava levando-a pra onde bem queria. Josuel a socorria, servindo-lhes sempre de bate-esteira, função do segundo cavaleiro na vaquejada. Andaram pelos pastos, verdejantes. Um gado preguiçoso pastava, com paciência. Nem levantavam a cabeça com a aproximação do cavaleiro e da amazona. Tanto andaram que se aproximaram do início da mata. O misterioso emaranhado verde, contemplava-os em silêncio. Um descuido, e de repente o rapaz ouviu Sofia gritando:
-Socorro Josuel!
Ao ver a cena, ele ficou totalmente sem ação. Era um problema, surpreendente, inesperado. Nunca pensou que sua patroa, uma pessoa tão segura das suas atitudes, tão séria. Fosse cometer um ato tão infantil. Digno de criança travessa. Ao passar por baixo de um pé de cajueiro, agarrara-se a um galho e lá se encontrava suspensa pelos braços. Mas não era hora pra pensar, no ato traquino da senhora do patrão. O fato era real, e ela estava lá, dependurada a lhe pedir socorro. Por milésimos de segundos ainda contemplou aquele corpo tão lindo. Que ele tanto admirava, mas era a mulher do seu dono, totalmente proibido olhar se quer, com outra intenção que não fosse pra dar-lhe a atenção necessária quando falava. Quantas vezes, desviara os olhos, cheios de pudor, pra não ver seus lindos seios, às vezes com, outras vezes sem sutiã, quando curvava-se pra ver-lhe fazendo a ordenha. E agora ali, totalmente dependente dele. O lindo corpo a balouçar. Os braços esticados pra cima, delineava muito mais sua cintura, a blusa folgou atrás e exibia uma nesga de suas costas alva. Pele sedosa, que liberava no ar, um cheiro estonteante, pra aquele menino-homem, cheio de virilidade. Não precisou ela fazer um segundo pedido de ajuda. A mente do habilidoso vaqueiro trabalhou rapidamente e agiu. Colocou seu cavalo abaixo do local onde Sofia estava pendurada. Seus pés, balançavam, um pouco acima da linha do lombo do animal, sua cintura ficou praticamente a altura da cintura de Josuel que colocara-se de pé ao animal. Ele a enlaçou com seus braços fortes. Segurou-a firme pela cintura. E a colocou suavemente, a sua frente na montaria. Ao tempo que se pôs à garupa. Tudo isso durou apenas milésimos de segundo. Uma eternidade que ele não queria nunca que acabasse. Ter sua patroa, ali nas mãos era a realização de um sonho nunca antes sonhado. Sentia-se seu herói naquele instante, evitara que ela levasse talvez um tombo. Os cabelos de Sofia esvoaçavam no rosto do vaqueiro, que ao sentir o perfume liberado daquele corpo, seus desejos mais instintivos se acenderam. Se mais segundos perdurasse aquele instante, não mais responderia pelos seus atos. E o servil filho do capataz poderia cometer a mais louca das loucuras. O que poderia custar a sua vida. Mas a vida era nada, comparada ao prazer de ter nas mãos o objeto de um desejo proibido. Uma, uma grande insensatez. Prazerosa insensatez que acabaria por dominar o rapaz. Estaria ele, liberando o instinto mais humano e mais selvagem que existe em cada ser, em cada animal, em cada indivíduo macho ou fêmea. Há um dito que diz: o homem é o momento.
Sofia estava agradecida, talvez por isso deixou-se ficar mais aquelas resumidas frações de segundos envolvidas nos braços daquele que a tirou do perigo. Pra ele tanto significado tinha. Um ato bobo cometera, pensou ela. Precisava recompor-se urgentemente. Aquelas mãos, aqueles braços potentes a enlaçá-la, tirava-lhes do sério. Por frações de segundos esqueceu-se quem era. A mulher poderosa, não por ser esposa de quem era. Poderosa pela capacidade de neutralizar as forças de um gigante. De anular a fúria de um titã. Força de Eva, de mulher que seduz, que arrebata e doma, seja ele o mais bravo, o mais forte dos homens. E o coloca submisso à seus pés. Tudo vinha como vulcão do mais íntimo de seu ser. Tudo isso sempre esteve lá dentro dela. Só que estava adormecido. Tantos anos de dedicação somente a família. E agora sentindo-se mais mulher, mais senhora, muito mais poderosa. Não apenas por ser patroa. Aquela Sofia estava ali de volta, antes quieta, escondida num cantinho muito recolhido de sua alma. E aquele menino a resgatara. Era seu herói, não por tirá-la daquela situação boba. Pois o máximo que podia acontecer de grave, caso ele não tivesse feito coisa alguma, era ter conseguido uma torção no pé, isso curaria em alguns dias. O ato heróico, pra ela, estava em ele ter acordado, a Sofia mulher à muito adormecida nela. Que ela própria tinha posto pra dormir no seio de sua tão aconchegante e morna alma.
De repente um estampido ecoou pela montanha. Josuel foi atingido na perna à altura da coxa. Era o prefeito Agamenon que chegara naquele instante, e presenciando a cena de sua esposa entrelaçada com o mancebo no lombo da montaria, atirou no rapaz. Ferido, Josuel desceu Sofia do animal e cavalgou em direção a floresta. Dois tiros mais foram disparados, sem atingirem o alvo. A primeira dama novamente montou seu cavalo. Sem nada falarem os dois retomaram as veredas rumo à fazenda. Nuvens cinzas se fizeram pros lados de Santana prenunciando chuva. Enquanto se iam, a mata fechada mais e mais engolia o filho do capataz. Outro que tornar-se-ia mais uma lenda do serrote do pintado.
Fábio Campos 03/11/2010 É Professor em S. do Ipanema-AL.