“Em terra de matador, mulher que mata é serial killer”, diz o cineasta René Guerra, dos curtas “Os sapatos de Aristeu” (2008) e “Quem tem medo de Cris Negrão” (2012), ao apresentar a premissa de seu primeiro longa-metragem, Serial Kelly, que traz a paraense Gaby Amarantos como uma cantora de forró matadora.
O filme, que estreou nesta quinta-feira (24) nos cinemas nacionais, é uma comédia-western-musical com coprodução da Bananeira Filmes e da Globo Filmes, que aborda a questão de gênero em um cenário machista, preconceituoso e violento, trazendo em contrapeso as belezas naturais do estado de Alagoas.
O roteiro foi escrito em parceria com o cineasta mineiro Marcelo Caetano, de “Corpo Elétrico”, e a produção é de Vânia Catani, responsável por filmes aclamados como “A Festa da Menina Morta”, “Narradores de Javé”, “Mata-me Por Favor”, a consolidada parceria com Selton Mello em “Feliz Natal”, “O Palhaço” e “O Filme da Minha Vida”, além de coproduções internacionais como “Jauja” e “Zama”.
Alagoano, atualmente morando em São Paulo, René Guerra foi premiado em vários festivais nacionais e internacionais, com filmes que defendem a temática LGBT. Orgulhoso de sua terra, fez questão de gravar em seu Estado natal, com um elenco 80% formado por alagoanos, incluindo atores como Igor Araújo, Ane Oliva e Ivana Iza. A produção conta com o apoio do Governo de Alagoas, por meio das secretarias de Estado da Cultura (Cultura) e do Desenvolvimento Econômico e Turismo (Sedetur).
A reportagem da Secult conversou com o cineasta sobre sua carreira e as expectativas de levar o nome de Alagoas para o circuito nacional de cinema.
Secult – Como surgiu a ideia do filme Serial Kelly?
René Guerra – Surgiu como consequência do meu projeto de trabalho em relação de gênero. Eu estava há bastante tempo querendo fazer uma comédia e trabalhar no meu Estado. E aí existem algumas questões em Alagoas que eu queria abordar, como violência de gênero e a própria construção cultural do masculino. Kelly vem com essa alegoria, como uma fábula de uma mulher vingativa, uma mulher dita ‘serial killer’ por matar homens, num universo onde a gente tem essa centralidade violenta. Então, de uma certa forma, eram necessidades de revisitar essas questões e subvertê-las através de uma discussão de gênero e sobre o gênero.
Secult – É seu primeiro grande trabalho nos cinemas? Como está sendo a experiência?
Rene Guerra – O primeiro filme para qualquer cineasta é um grande desafio sempre. O projeto tem um desafio grande do ponto de vista de produção, então é um grande parto. Na realidade, fazer cinema no Brasil é, por si só, bastante difícil, e eu tive a sorte de construir uma pesquisa consistente com Marcelo Caetano, que é co-roteirista, e ter sido convidado para desenvolver esse trabalho pela Vânia Catani, que é da produtora Bananeira Filmes. Então, tudo foi confluindo. Tive uma equipe maravilhosa, com profissionais extremamente criativos e um elenco basicamente 80% alagoano. Eu gostaria muito de ter o rosto dos nossos atores nessa tela e, principalmente, no meu primeiro filme. Eu sempre relaciono o primeiro longa como o meu primeiro filme. O primeiro parto, com todas as suas dores e alegrias, esperando que ele consiga, de certa forma, alcançar a maior quantidade de pessoas possível, trazendo uma mensagem dentro do alcance do que se é considerado comédia, mas de uma forma subversiva.
Secult – Qual a história do filme? Como está sendo trabalhar com a Gaby Amarantos?
Rene Guerra – O filme conta a história de uma cantora de forró eletrônico assassina, que traz a grande questão: “em terra de matador, mulher que mata é serial killer”. Trabalhar com a Gaby foi um encontro de almas, um encontro emocionante. Ela é uma artista que consegue transitar, e que teve um processo de preparação extremamente corajoso. Ela mergulhou de cabeça na personagem e o resultado foi muito potente, mas que veio dessa coragem dela ter mergulhado de cabeça. Então tenho muito orgulho e fico extasiado e deslumbrado com os lugares que a gente chegou.
Secult – O filme terá momentos musicais?
Rene Guerra – O filme é um western musical alagoano. Só que a parte musical é absorvida pela diegese do filme, ou seja, não é um filme operístico nesse sentido. A personagem principal é uma cantora, então, tem momentos que essas duas características da protagonista se juntam. O que tem muito a ver com o potencial de voz da Gaby. A música permeia o filme e também faz algumas observações de cenas.
Secult – Pode revelar para nós algum segredo ou alguma curiosidade da produção?
Rene Guerra – Não tem segredo nenhum em relação ao processo, principalmente porque existe uma certa curiosidade como é que a gente chega em alguns lugares. Eu tô bastante feliz em estar trabalhando com essas pessoas, com os artistas locais e com a Gaby Amarantos. Curiosidades têm milhões, como qualquer processo, como o trabalho com as atrizes trans, a própria questão do corpo, da relação com a Gaby, que engordou para fazer o papel, porque sabia que o corpo dela era político também. Foram várias questões que vão culminar no significado, que é a imagem. Então, trazer os significantes é um pouco deixar as pessoas não tirarem suas próprias conclusões.
Secult – Por que o Estado de Alagoas foi escolhido como cenário do filme?
Rene Guerra – Ele não foi escolhido. Eu sou alagoano e tive a sorte de ter meu primeiro filme na minha terra. É óbvio que eu tenho um processo de investigação e de carreira em São Paulo, mas meu inconsciente é alagoano. O meu simbólico está muito ligado a nossa cultura, então, faz bastante sentido eu ter filmado na minha terra, com as questões que até hoje me assombram e que me maravilham.
Secult – Qual a expectativa de você, como alagoano, levar o seu Estado para o circuito nacional de cinema?
Rene Guerra – Espero conseguir representar de todas as formas possíveis os artistas que nós temos em nossa terra, contribuindo e dizendo que existem, sim, novos talentos, que eles estão fora do eixo Rio-São Paulo. Do ponto de vista de Alagoas, o filme foi extremamente bem recebido pelos órgãos e, no possível, na parte logística. É óbvio que a gente tem uma expectativa de alcançar o máximo possível de pessoas, mas, também, a missão de não fazer uma comédia vazia, de trabalhar com alguns símbolos com propriedade e profundidade. Às vezes, eu tenho medo dessa palavra expectativa, porque a gente trabalha o tempo inteiro com esse sentimento de angústia. Quem tá fazendo arte não tem grandes certezas, a gente tá arriscando, e o risco gera angústia, ansiedade. Estamos exatamente neste momento de entender o uso das imagens, entender a narrativa da história, não se trair e ao mesmo tempo se trair em relação à imagem, procurando o máximo possível chegar nesse lugar que foi apontado e percebido por tantas pessoas que contribuíram para o projeto. E quando falo isso, falo da produtora Bananeira Filmes, falo da Vitrine Filmes que estará distribuindo, falo da Globo Filmes e em nome de todos os parceiros e artistas que trabalharam nesse projeto. A gente sempre espera que o projeto se concretize da forma mais especial possível.
Secult – Você é um jovem com uma carreira sólida e vários curtas de sucesso. Qual a sua história com o cinema? O que te inspirou e inspira?
Rene Guerra – Dentro da minha trajetória de curta-metragista e preparador de elenco, o universo trans, drag e da teatralidade do real é algo que me deixa obsessivo. Para mim, elas são heroínas, que conseguem construir através da imaginação o real e reconstruir esse real. O que me inspira muito são essas pessoas anônimas, que buscam através da imaginação construir suas histórias e suas vidas, independente do que as pessoas falem. É um ato de resistência só de existir.
Secult – Entre seus trabalhos existe alguma diferença entre os primeiros filmes e o atual?
Rene Guerra – Cada filme é um filme, mas dentro dessa linha que juntam os filmes está a nossa percepção de mundo. Quando a gente posiciona a câmera e faz um recorte. Existem símbolos que se repetem, que tem a ver com a política de gênero e com a discussão de pessoas que têm direitos e de pessoas que não têm direitos, de pessoas que são invisíveis aos olhos dos outros. O tempo inteiro estou falando sobre essas pessoas.
Secult – Quais suas metas para o futuro como cineasta?
Rene Guerra – Minha meta é continuar fazendo a única coisa que eu sei fazer, que é filmar. Concretizar ideias e trazer essas ideias para materialização, não se trair, conseguir sobreviver minimamente e ter uma liberdade para que a gente consiga se enxergar e gerar imagens, onde outras pessoas possam se reconhecer ou uma própria crítica a nós mesmos. Minha meta é amadurecer, sobreviver e continuar a produzir imagens que possam subverter essas questões de gêneros e questões sociais também. Por exemplo, a violência transfóbica e a questão das transfobia e do machismo estão muito relacionadas ao feminicídio. O que esses agressores estão tentando destruir é a marca do feminino que está impresso nos corpos. Então, meu grande desafio também é juntar essas fraturas, as pessoas e essa diversidade, para que a gente consiga construir um discurso fílmico que junte pessoas.
Secult – Qual mensagem você mandaria para quem quer fazer cinema hoje no Brasil?
Rene Guerra – Mensagem é muito particular, né? Porque tem muito a ver com resistência e obsessão de você continuar a fazer o que acredita. Eu não conseguiria fazer nada se não fosse arte, então, o que eu deixo basicamente como uma pequena sugestão é a gente continuar sobrevivendo, lutando e acreditando naquilo que a gente precisa realizar nesse momento. Acreditar na sua sensibilidade, se juntar com as pessoas que querem fazer e tem o mesmo olhar, não se deslumbrar, ser forte, sintético e singelo e continuar fazendo arte e cinema.
Serial Kelly – Uma assassina justiceira com discurso empoderador
Uma deusa, uma louca, uma feiticeira? Que tal as três e um pouco mais? Gaby Amarantos se entrega totalmente a sua personagem no filme Serial Kelly. Ela vive Kellyane, uma cantora de forró eletrônico que se revela uma assassina justiceira durante uma turnê por Alagoas.
Enquanto cumpre uma agenda de shows em inferninhos pelo Sertão, Kelly vai deixando um rastro de mortes pelo caminho. Em seu trajeto de consumo compulsivo e violência, ela atravessa um Nordeste novo, espiral de um desenvolvimento também apocalíptico. Quando passa a ser investigada pelos assassinatos de três homens, sua turnê mambembe se transforma em uma estratégia de fuga. De estrela ascendente, ela se torna uma heroína marginal: a temida e procurada Serial Kelly: a primeira serial killer mulher do Brasil.
Kelly trará um questionamento muito importante e forte. O machismo mata e oprime. Ela é matadora, ladra e tem uma enorme compulsão alimentar. Uma personagem cheia de traumas devido aos abusos do pai ao longo da vida.
Gaby Amarantos precisou engordar 16 quilos e deu uma pequena pausa nos shows. Foram seis semanas de preparação de elenco e um ano de imersão pensando na parte musical e como seria a personagem, com todas as características alagoanas.
Nós também batemos um papo com ela para saber como foi viver sua primeira protagonista.
Secult – Como está sendo a experiência de interpretar uma serial killer no cinema?
Gaby Amarantos – Fiquei muito feliz com o convite do René Guerra. Está sendo uma experiência incrível viver essa personagem. É minha primeira protagonista. Ela é uma mulher muito forte e impactante, que vai tratar de assuntos muito importantes perante a sociedade, como o machismo, a homofobia e a diferença de gêneros. Quando uma mulher mata, o contexto é totalmente diferente.
Secult- Você tem algo em comum com ela?
Gaby Amarantos – O que ela tem em comum comigo é que ela é uma cantora. Uma menina que tem seus sonhos, que batalha muito. Na história, ela faz seus próprios figurinos, e no comecinho da minha carreira eu também fazia os meus. Então, esse comecinho da carreira dela parece muito comigo, quando eu ainda era menina, que morava em Jurunas e sonhava em ser uma grande artista.
Secult – Como foi trabalhar com o René Guerra e gravar em Alagoas?
Gaby Amarantos – Trabalhar com o René é uma experiência transcendental. René é um leitor de almas. Ele é um mago. Ele é alguém que consegue extrair o melhor de uma forma tão singela. Ele é amoroso. Esse mergulho foi mais bonito, porque o René estava segurando minha mão, e a gente mergulhou juntos. Era um projeto, com certeza, tão importante pra ele, quanto pra mim, e isso fez toda a diferença, ter um diretor com toda essa sensibilidade e com essa alma feminina que o René tem. Ele também tem essa mulher que é oprimida, e entende essa linguagem de uma forma intensa. Foi uma grande honra trabalhar com ele.
Secult – Quais os principais desafios como atriz? Teve alguma dificuldade durante a preparação e gravações do filme? O que te inspira?
Gaby Amarantos – Ser atriz é uma profissão que requer uma grande disponibilidade e desprendimento. Não existe ego quando você tá fazendo um personagem. Você tem que se despir de você mesmo e dar espaço pra essa outra pessoa chegar. Acho que um dos meus maiores desafios foi esse, porque na carreira de cantora a gente trabalha muito com o ego, ele tá ali do nosso lado sendo alimentado, com muito glamour. É outro tipo de apresentação de artista. Se despir desse ego, pegar esse pano de chão, limpar esse chão e deixar esse chão branco, limpo, essa tela limpa para que a Kelly pudesse chegar foi uma experiência muito bonita e muito intensa, e durante as gravações também eu fiz uma preparação de muito tempo. Desde que recebi o convite até gravar, eu já estava me preparando, pensando nas músicas, como seria essa mulher, o andar, a fala. Tudo isso me inspirou muito pra poder chegar e fazer o filme com todo esse amor e entrega que fiz a Kelly.
Secult – O que o filme representa na sua carreira?
Gaby Amarantos – Kelly representa na minha carreira algo muito grande, um legado que vou deixar para a sociedade. Além das minhas músicas, aceitei fazer esse personagem e de certa forma parei um ano da minha carreira pra me dedicar à Kelly, porque ela é importante, ela é necessária para todos nós como sociedade. Foi um grande presente receber essa protagonista. Eu entendi que era o momento de me dedicar a isso. Tenho certeza que daqui a quantos anos eu vou olhar pra traz e irei dizer que deixei essa coisa maravilhosa para as pessoas refletirem, para as pessoas perceberem o quanto a gente precisa evoluir como sociedade civil, como ser humano.
Secult – Cantora, atriz, esposa, mãe… Como é lidar com todas essas funções no dia a dia? Sente-se mais à vontade no cinema ou nos palcos?
Gaby Amarantos – Ah, é muito fácil lidar com tudo isso, porque a gente é mulher, né? A gente já tem super poderes e consegue fazer tudo isso. Cada vez mais a sociedade reconhece esse poder, a força da mulher, que se divide em mil. Tenho certeza que estar no cinema me despertou outros sentimentos, é muito diferente de estar no palco, porque o palco é explosão, é extravasar, é transpirar, é se comunicar e receber aquela energia de milhares de pessoas, e se abastecer, transcender, é outra energia. Já no cinema, com essa personagem, foi uma energia de introspecção, de mergulhar em mim, de cavar bem fundo e fazer emergir essa mulher. São sentimentos totalmente diferentes. Tenho certeza que vou fazer isso para sempre. O cinema entrou na minha vida, assim como a música entrou, de uma forma tão forte. Sempre fui atriz, sempre trabalhei como atriz na minha adolescência. Uma das minhas primeiras aspirações, até antes de ser cantora, era ser atriz. Agora irei focar na música, porque a Kelly já está pronta, mas eu tenho certeza que vou receber outros convites especiais, coisas importantes também para continuar refletindo, crescendo e aprendendo.
Assista ao trailer: