O mito Mandela é um mito necessário a um mundo que vai aos poucos substituindo o fardo do racismo ostensivo por outras formas de dominação.
A morte de um ícone como Nelson Mandela tem o dom de ultrapassar a barreira das divergências políticas e fazer o mundo cantar num mesmo diapasão.
Aqui em Berlim, a chanceler Angela Merkel se uniu ao coro choroso e afinado de estadistas europeus que destacaram sua coragem, seu heroísmo, seu exemplo de obstinação e de resistência.
Não contam neste momento as décadas em que a Europa, que esquertejou o continente africano de ponta a ponta e o submeteu a regimes colonialistas, cooperou com o regime do apartheid; nem as acusações de “terrorismo” que fizeram a Mandela o ex-presidente americano Ronald Reagan e a premier britânica Margareth Thatcher; nem a recusa da Anistia Internacional em adotá-lo como prisioneiro de consciência, porque Mandela não se opunha à luta armada de libertação.
Mandela está morto, e o mito Mandela é um mito necessário a um mundo que vai aos poucos substituindo o fardo do racismo ostensivo por outras formas de dominação.
É em solo alemão que se encontra, desde 2008, o quartel-general do comando norte-americano Africom, com 43 mil soldados distribuídos em 40 bases militares, denunciado recentemente pelo jornal Süddeutsche Zeitung por conduzir, a partir daqui, uma guerra sangrenta de drones contra supostos alvos terroristas em países africanos e provocar a morte de civis. É na Alemanha que africanos em busca de asilo vem sendo sistematicamente interrogados para fornecer informações, passadas aos serviços secretos americanos no planejamento de novos ataques.
Chora-se a perda do pacifismo de Mandela, mas poucos lembram as centenas de entrevistas que deu à imprensa internacional com críticas contundentes à invasão do Iraque pelos Estados Unidos, às sanções impostas contra a Líbia de Muammar Khadafi; e com a defesa intransigente dos princípios da revolução cubana, e de um estado palestino que faça Israel recuar às suas fronteiras de 1967.
A morte de Mandela, representa, sobretudo, o apagar quase definitivo das luzes do século XX; da era dos grandes líderes carismáticos que, com seus erros e acertos, conduziram seus povos às lutas de emancipação.
Era de panteras negras como ele, como o angolano Amilcar Cabral, o congolês Patrice Lumumba, o queniano Jomo Kenyatta, o moçambicano Samora Machel.
E o vietnamita Ho Chi Minh. O chinês Mao Tsé Tung. Sobra apenas um, numa pequena ilha caribenha: o atrevido e imperdoável Fidel Castro.
O professor de historia e ciência política da Universidade de Johanesburg, Achille Mbembe, escreveu que a longa experiência carcerária de Mandela deu a ele a certeza que provavelmente todos os líderes do pantheon do século passado carregaram em algum momento: a de que somos todos, ao mesmo tempo, diferentes e semelhantes. E a ética da reconciliação e da reparação que Mandela conduziu passa exatamente por isso: pelo reconhecimento da parte que pertence ao outro, pela proclamação da diferença, pela liberdade de escolha – sem as quais não é possível a construção de um projeto de justiça universal.
Mandela se vai, mas o desafio permanece.
(*) Elizabeth Carvalho é jornalista em Berlim