CAMPEÃO DE QUE?
Há algumas semanas o presidente do Supremo Tribunal Federal disse durante uma palestra para estudantes que “nós (os filhos desta pátria mãe gentil) temos partidos de mentirinha”. Durante vários dias a notícia foi amplamente divulgada na imprensa, entrevistas com parlamentares foram realizadas, cientistas políticos fizeram análises quase que freudianas sobre o acontecido e eu, assistindo a tudo isso, tinha uma única pergunta na mente: Porque tanta polêmica sobre uma verdade tão antiga.
Pode parecer coincidência, mas eis que na mesma cadeira em que assisti a reportagem sobre a declaração do ministro, estava debruçado sobre um livro de crônicas de Olavo Bilac, presente do meu primo Gaspar Guimarães, com apenas 899 páginas, quando de repente leio um texto do ano de 1890 em que o autor questiona as ações contra a liberdade religiosa empreendidas pelo recém instituído governo republicano. Frisando que a república foi proclamada sob o pretexto de liberdade que supostamente o regime monárquico não proporcionava, o grande poeta e jornalista brasileiro finalizou sua crônica fazendo alusão à Guerra do Paraguai, em que o governo brasileiro, na época uma monarquia, arrasou o país vizinho proclamando o discurso da liberdade.
O texto de Bilac dizia assim:
“Tenho na minha modesta panóplia uma faca paraguaia. Valente lâmina! Deu-ma um velho militar que a trouxe do Paraguai em 70. Na folha há a seguinte inscrição: Libertá! – e o velho militar dizia-me sempre: “Todas as facas no Paraguai têm essa inscrição; veja você que diabo de divisa foi arranjar um povo sem liberdade!”
Agora, que todas as bocas e todos os jornais, depois de 15 de novembro, andam cheios aqui dessa palavra – liberdade – eu começo a desconfiar de que o Brasil está se parecendo muito com uma faca paraguaia.”
O descompasso entre o discurso, ações e intenções da classe política deste grande país é tão antigo quanto sua própria existência e tentar descobrir uma solução é algo tão difícil quanto caminhar num terreno movediço. É por isso que eu prefiro me deter nos aspectos mais pitorescos que tal prática nos proporciona e vocês hão de convir que é bem menos doloroso.
Refletindo sobre a declaração do presidente do STF, veio à memória a figura do meu avô Gaspar Wanderley, figura marcante da minha infância. Gaspar era um homem de baixa estatura e franzino, mas de atitudes dignas de um gigante. Como era comum naquele tempo tirava o seu sustento da agricultura e da criação de gado, mas também mantinha no compartimento da frente de sua casa uma pequena mercearia, uma “venda” como era chamada. Na venda de Gaspar tinha alimentos como milho, farinha e feijão, além de ferrolhos, dobradiças, pregos e parafusos. Tinha também uma seção de “fiteiro” onde se encontrava sabonete, perfume e brilhantina Glostora e outra de armarinho onde se encontravam lenços, meias e outras peças de uso pessoal. No conceito de hoje tinha o sortimento equivalente a um mercadinho, mas o atendimento era no balcão onde, além de confeitos e uma diversidade de pastilhas, também se vendia cachaça, vinho de jurubeba e Genebra ou Zinebra uma espécie de cachaça composta com zimbro. Bebida originária dos Países Baixos, a Zinebra foi muito difundida no nordeste brasileiro, mas hoje em dia é raramente encontrada. Tinha um alto teor alcoólico e trazia a fama de ser medicinal. Mamãe me contou que muita gente comprava a bebida para misturar com cebola e tomar como um remédio para dores de barriga. Ela e minhas tias Gasparina, Auxiliadora e Olávia ajudavam na “venda” e cada uma tinha uma gavetinha onde eram colocados os pagamentos das vendas efetuadas por cada uma delas. Ao final da semana Vovô contava o apurado de cada uma e lhes pagava alguns tostões pelo serviço realizado. Naquele tempo o trabalho dignificava e educava, hoje em dia… Os conceitos são outros.
Percebendo a concentração de pessoas durante as festas de reis e de São Sebastião, em sociedade com Manoel de Sulia, até hoje vivo lá pras bandas da cidade do Recife, Vovô construiu um carrossel de madeira que naquela época era chamado de “curre” e isso eu já contei para vocês. O curre de Gaspar era armado na rua em frente à sua casa e tanto gerava uma renda extra no período das festas como também atraia a freguesia para sua “venda”. Na década de 50, Vovô deu uma lição de empreendedorismo e ousadia quando resolveu comprar uma caldeira a lenha para a geração de energia, sendo portanto o pioneiro da eletrificação de Poço das Trincheiras no tempo em que a localidade era apenas um distrito do município de Santana do Ipanema.
Com o temperamento que tinha não deu em outra, um dia, finalmente, ele entrou para a política. Naquele tempo as disputas muitas vezes eram resolvidas na bala, mas uma boa combinação entre um discurso afiado e algumas precauções permitiu que ele atravessasse esta etapa da vida sem que seu nome fosse associado a ações de violência. Foi desse tempo uma história que me foi contada várias vezes por Aderval Wanderley Tenório, homem de grande inteligência e exímio advogado. Aderval ingressou na política e rapidamente galgou o posto de deputado estadual. Objetivando garantir o seu espaço político procurou estabelecer uma boa rede de aliados e, ciente das disputas existentes no Poço das Trincheiras procurou o apoio do meu avô. Naquele tempo, devido a precariedade do aparelho de estado, cargos públicos que hoje são acessíveis apenas através de concurso eram preenchidos por cidadãos comuns, mas que demonstravam aptidão para a respectiva função, podendo ser indicados pelos membros da comunidade ou então pelo próprio governador do estado. Eu sei que a coisa não funcionava tão bem como se gostaria, mas foi nesse contexto que Aderval conseguiu para Gaspar o cargo de Delegado de Polícia do Distrito de Poço das Trincheiras. A ideia era conter o poderio dos adversários e ressaltar a imagem de uma gestão séria e enérgica.
Uma vez empossado, o novo delegado começou a mostrar serviço. Tudo ia bem até que, um dia, um indivíduo aprontou algumas e entrou na sua mira para uma estadia no xilindró. Não sei exatamente que tipo de infração o sujeito cometeu, o certo é que, percebendo que não seria possível escapar das garras da lei sua mãe resolveu procurar Aderval. Com uma conversa melosa e uma convincente promessa de fidelidade eleitoral a mulher conseguiu que ele aceitasse intervir no caso para que o cabra não passasse uns dias vendo o sol nascer quadrado. O deputado escreveu um bilhete e orientou-a que apresentasse o rapaz à delegacia e entregasse o bilhete ao delegado. Confiante no peso político do seu “padrinho” a mulher fez exatamente como lhe fora recomendado. Retornando ao Poço das Trincheiras, pegou o filho pela mão e foi à delegacia. Quando Gaspar viu o sujeito já ia mandando que o detivessem quando a mulher então mostrou-lhe o bilhete que começava dizendo “Caro primo Gaspar”, passava por uma recomendação de condescendência e terminava com a assinatura “Do Aderval”. O delegado leu a mensagem, leu mais uma vez, olhou bem para o papel, olhou para a cara do sujeito e, dirigindo-se ao policial que estava a postos, ordenou:
– Prenda esse vagabundo agora mesmo.
Não deu em outra, o cabra foi para detrás das grades e o delegado foi exonerado poucos dias depois.
Com atitudes incompatíveis com a expectativa do seu partido político e perseguido pelos seus adversários a carreira política de Gaspar Wanderley foi um verdadeiro desastre. Ironicamente, as duas únicas coisas que ele obteve desse período da sua vida têm valores completamente opostos: a derrocada financeira e o respeito de muitos dos seus adversários. Fatos contraditórios, mas por incrível que pareça verdadeiros.
Falando em contradições, vejam os pitorescos exemplos abaixo:
Primeiro: A polícia não consegue proporcionar uma política de segurança pública. No entanto, esbanja força contra manifestantes que reivindicam seus direitos ou protestam contra o mau uso dos recursos públicos.
Segundo: Vereadores que ganham mais de R$ 10.000,00 por mês aprovam uma lei que reduz o salários de professores para menos de R$ 900,00. No entanto bilhões de reais são gastos na construção de estádios de futebol.
Terceiro: A seleção brasileira ganhou de 3 X 0. Será que a palavra “Campeão!” será a escolhida para a versão brasileira da “faca paraguaia”? Só precisamos definir, campeão de que?
É colegas a situação deste grande país está tão complicada que a única política que venho praticando ultimamente é a da boa vizinhança. Um grande abraço a todos.
Saúde, sabedoria e paz.
Virgílio Agra
OBS: A crônica “Liberdade” de Olavo Bilac foi publicada no livro “Bilac, o Jornalista”, de Antônio Dimas, pela Editora da Universidade de São Paulo.
Na foto de 1943, Vovô Gaspar e Vovó Lindalva. Em pé Tia Gasparina e Tia Auxiliadora e o bebê é Tia Zélia.
As edições anteriores das Saudações Caetés estão no blog saudacoescaetes.blogspot.com
18 jun
0 Comments