Correntes e Acorrentados

Conto por Fabio Campos

Cidade de Santana do Ipanema, de ruas e praças espraiadas no tabuleiro inconstante do rio. As casas, teclado vivo de um órgão descomunal, melodiavam uma melodia diuturnamente, intensa, incansável. Ora suave e relaxante, ora extravagante e profusa. Ainda assim sonoridade semi Vivaldiana.

Magníficas elevações serranas circundantes lembravam, aos deslumbrados contempladores, ursos hibernantes. E o povo como que em êxtase, dormia um sono acordado, e o mais que sabiam, era ouvir e contar histórias. Reais ou inimagináveis, de sujeitos e pátria desimportantes até. Porém criam.

Glauco e Otávio ali se haviam um dia. Num tempo, que a gente jamais esquece. Tempo em que os trovões eram roucos de se ouvir. E o céu de toda manhã se abria como fenda de fogo vivo que aparece. Tempo, em que Deus estava ainda terminando de fazer o mundo. E ao separar as águas do elemento terra, acabou por ficar tão escasso ali. Glauco era homem do campo. Amava o cultivo do solo. Ainda bem cedo, quando os primeiros raios de fogo tocavam-lhe as faces, punha-se de joelhos. E fincando suas duas mãos no solo do sertão, pedia a benção, a mãe terra. Elevando os olhos aos céus, atirava um punhado de pó ao vento, e agradecia a Deus. E nas festas da Padroeira Senhora Santana, não importava se o ano fora seco ou de fartura, não faltaria com a oferenda, ao templo de Jerusalém, remanescente de Israel. Tantas sacas de feijão e milho doaria para o leilão. Pra o compadre Ermíndio, dono da farmácia, certamente não faltaria um peru gordo cevado, no natal. Doutor Cleófanes médico obstetra, ganharia um queijo, uma galinha, um dúzia de ovos de capoeira. O prefeito que atendera seu pedido de limpar o açude seco, planear a estrada, pra ele uma marrã de ovelha, que ele mandaria matar, e com os amigos comeria, regado a bom uísque.

Otávio, nosso outro personagem, vivia vida de gado, um povo marcado, um povo feliz. Porque gado aquela gente marcava, a ferro e fogo. Mas com gente, não era muito diferente. E o mundo vivia girando sob as patas de seu cavalo. O elemento água também essencial era ali. E Otávio trouxe até sua propriedade um mago. Um homem sábio de lugar longínquo veio. Conhecedor das ciências ocultas, deitava orações para afastar maus-olhados, curava doenças. Livrava da morte certa animais picado por bichos peçonhentos. Pras os confins da terra afastava pragas da palma, enxames de abelha, cupim da madeira, mosca do chifre, maleita, macacoa e sezão. Tudo isso fazia. E tinha outro dom especial, sabia os locais onde havia água no subsolo. De olhos vendados, portando uma forquilha, de um pau que ele sozinho ia buscar no mato, localizou água quase na divisa da propriedade com o vizinho Glauco. Em parceria cavaram um poço, e ambos utilizavam a água. Assim o fizeram. Otávio também doava seu dízimo na festa da padroeira Senhora Santana. Tantas cabeças de gado. E os dois eram como aqueles irmãos, tementes a Deus, narrado no livro sagrado. Suas casas louvavam ao senhor todos os dias. E os filhos pediam a benção, em três momentos no período de um dia: Ao levantar-se, após as refeições, e ao deitar-se.

Um dia, ao cair da tarde Otávio pastoreava seu rebanho, pitando um cigarro de palha. E eis que foi se encontrar, olhando pras bandas do fim do mundo. Justamente do lado oposto da sua propriedade e de seu amigo, que apontavam rumo ao sol nascente. E caiu em si, numa pergunta. O que haveria pra além do que seus olhos alcançavam? Sem dizer nada a ninguém, quis ele mesmo tirar suas dúvidas. Na manhã seguinte partiria, assim o fez. E Otávio sumiu no oco do mundo. Os seus entes queridos deram-no como morto. Seus filhos e esposa tocaram a vida, como se órfãos e viúva fossem. Porém Otávio morto não estava, e depois de sua longa jornada voltou. Voltou pelo outro lado do mundo. Pois uma volta completa sobre a terra ele dera. E chegou justamente na propriedade do amigo Glauco. Por aquele, teria sido muito bem recebido. Como a um filho pródigo. Recebido com honras e festa, assim o fora. Porém notou que o amigo havia voltado com outro semblante. Os cabelos tornaram-se grisalhos, cultivara uma longa barba igualmente branca. Assemelhava-se a Moisés, depois que descera do monte Horebe. O amigo adquirira sabedoria. E passada a euforia do reencontro, quis o amigo viajante ter uma conversa com o amigo arraigado. Eles que, desde que se entendiam de gente, nunca, jamais haviam deixado suas propriedades. Otávio afinal havia rompido com aquele interdito, imposto por eles mesmo. Deus não tinha participação naquela decisão deles.

E tiveram um diálogo. Disse Otávio: – Glauco! Quero lhe falar do que vi nessa viagem que fiz. Imagine um muro bem alto, separando o mundo de fora, desse nosso mundo. Pra que você entenda melhor, chamarei de caverna. A caverna é o mundo onde só existimos nós, a minha e a sua propriedade, a minha e a sua família. Todos os dias chega um raio de luz, o sol que nasce a cada manhã. Como aqui permanecemos desde que nascemos e crescemos, só conhecemos essa realidade. Apesar de ter uma vida livre, de poder ir e vir por toda extensão de nossas propriedades, vivemos como que acorrentados. Sem poder nos movermos, forçados a olhar somente a parede do fundo da caverna. Não deixa de ser um belo cenário que aprendemos, desde de pequenos, a contemplar, amar e se sentir feliz. Ali no firmamento, todos os dias, vemos projetadas sombras de outros homens que estão para além do muro, separando o fim do mundo. E aqueles mantêm acesa uma fogueira. A luz projeta uma imagem que julgamos real, porém não passa de imagem. A realidade Glauco, está para além do fim do mundo. Ao fazer essa viagem em torno da terra, eu rompi com esse eterno estado de sonho, um mundo fantasioso, não real, em que vivíamos. Acatar tudo que nos é imposto, leis, proibições, governo, religiões. O sistema perverso hierarquizado, saúde, educação para todos, direito a ir e vir, liberdade de expressão. Tudo conversa pra boi dormir, um eterno faz de conta. E nós isolados do resto do mundo achando que assim éramos felizes.

Otávio, disse que, o que tinha pra dizer já havia dito. E que o amigo agora também passara a conhecer a realidade, cabia a ele continuar aceitando tudo como dantes. As correntes que nos prendem, fomos nós mesmos que a criamos. Ninguém está livre delas, resta-nos pelo menos entendê-las. Somos todos atores, partícipes duma grande encenação. “E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial, que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social”.

Um menino da Camoxinga

O menino da Camoxinga, ainda mora no meu imaginário. Morar mesmo morava na Camoxinga. A casa ficava além da ponte e do riacho que dividia Santana do Ipanema ao meio. Na ladeira do Cemitério Santa Sofia. Num tempo, tão lá atrás, que nem havia calçamento de paralelepípedo, ladrilhando as ruas, afastadas. E tão pouco era o número de casas, que de cá do Monumento, dava pra ver o alto. E apontando dizia: -A casa que eu moro é aquela, amarela! Tá vendo? Nossos olhos iam pra lá. Um aceno de cabeça pra confirmar. Apenas confirmar, pois era muito provável que nem estivéssemos enxergando a tal casa amarela. E tendo certeza da dúvida, ele fazia questão de descrever como era: -Tem uma área na frente, um portão de ferro, muitas plantas! Com um pouco mais de atenção, talvez desse pra ver, sua mãe, cultivando uma nesga de húmus, que chamava de jardim. E haveria de debulhar um rosário de imprecações, se a bola traquina, dos meninos, fosse esbarrar nas suas plantinhas queridas, velhas amigas com que conversava toda manhã.

Às vezes fico pensando se tenha existido de verdade, o menino da Camoxinga. Se não teria sido apenas fruto da imaginação. Mas era tudo tão real. Porque meninos são seres de mente muito fértil, capazes de inventar histórias, inverossímeis, inimagináveis. E menino, era o que a gente nunca devia deixar de ser. Mesmo que o tempo se encarregasse de naufragar, lá bem dentro do corpo aumentado, a frívola, a mágica energia dos verdes anos.

Luiz André era um menino diferente. Jamais entenderei porque, seria necessário gastar quatro decanos de calendários, separando-nos tempo e espaço, pra chegar a tal constatação. Diferentes uns dos outros todos somos. Mas não seria dessa diferença, a que me refiro. Luiz André era um menino azul. Não que trouxesse o anil na tez. Azul cobalto era sua alma, e isso brotava no oceano dos seus olhos. Transparecia no piano do seu sorriso marinho. E mesmo o azul do céu, a brisa vespertina, vinha intrometer-se em seu cabelo liso em desalinho. E de tanto vê-lo trajado no brim da farda do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, ficou assim, um menino Azul Cecília Meireles. E numa daquelas magníficas tardes, depois que a gente saía da escola, esteve a contar-me mais uma de suas inúmeras histórias fantásticas, que tanto me fascinavam.

Sentados a um dos bancos da praça, remexendo no que restara dos nossos lanches do recreio. A sua lancheira azul, em alto relevo trazia o desenho do capitão América. A minha, o Homem de Ferro. Observando outros meninos fazendo estripulias nos brinquedos do parque da praça, calmamente disse: -A minha casa é mal-assombrada. Estávamos no final de outubro daquele ano, e remendou: -Por esses dias fica ainda mais mal-assombrada! –Como assim? Quis saber. Com a proximidade do dia de finados, o Cemitério Santa Sofia ficava muito movimentado, o povo ia limpar e ornamentar as catacumbas. As almas dos defuntos, que não tinham ido pro céu, ou pra lugar algum, surtavam. Incomodadas com a presença de tanta gente barulhenta acabavam por vagar pelas redondezas. Iam perturbar a vizinhança. Derrubavam panelas na cozinha, quebravam pratos na pia. À noite acendiam as luzes dos quartos. Abriam torneiras da pia do tanquinho, do chuveiro. Ligavam ventiladores e o liquidificador. Espalhavam discos pelo chão, punha a vitrola pra tocar. O gato coitado, eles conseguem ver esses espíritos desencarnados, era o primeiro a desaparecer naqueles dias, pois não o deixava em paz. Também o cachorro lá no quintal, latia freneticamente e uivava de modo sombrio. Era como se chorando dissesse: –Socorram-me! Eles estão me perturbando! O próprio André presenciara, numa das vezes que fora acalmar o cão, de lá do breu do quintal, atiraram-lhe uma manga verde, sem que houvesse possibilidade alguma dum ser vivente ter feito aquilo. E os galhos da mangueira balançaram violentamente, ainda que não houvesse o menor resquício de ventania, na noite quente abafada.

Teve uma vez que estava dormindo, e acordou com alguém lhe chamando, pelo nome. Era voz de um menino. Procurou embaixo da cama, não estava. Revistou os cantos, nada. Abriu o guarda-roupas, encontrou. Um menino bem afeiçoado, bonito. De cócoras todo molhado, a roupa colada ao corpo, tremia de frio. Os cabelos castanhos, lisos, molhados, escorridos na testa. Os olhos grandes, de longos cílios, pareciam ainda maiores, arregalados. Disse que tinha medo. Medo de um homem muito mal que queria lhe fazer algo muito ruim. Disposto a ouvi-lo, sentou-se ao seu lado. Ouviu dele que o homem mal era seu tio, que havia perdido os pais, num acidente de carro. Por isso foi morar no sítio, com o irmão de seu pai, mas a esposa não gostava dele, lhe batia chamava-o de afeminado. Um dia o tio, que era alcoólatra, encontrou-o a buscar água no açude, arrastou-o pro mato, e abusou sexualmente dele. Pra ter certeza que não contaria a sua esposa, afogou-o. Também pra parecer que tinha sido ele mesmo que se afogara. André e Augusto ficaram amigos, e combinaram uma vez por ano se encontrarem. Dia de finados, seria o dia.

Muitas outras histórias seriam compartilhadas, bem como, muitos outros momentos bons. Nos banhos do rio Ipanema. Tantas foram as vezes que foram juntos a uma tropa de meninos, na maior algazarra, rumos pra além da Maniçoba. A um lugar chamado “Escondidinho”. Chegavam ao início da manhã. Escalavam rochedos pra se atirar perigosamente no turbilhão das águas bravias. Desafiando todas as leis do universo, o mundo era daqueles meninos. E se o gasto energético ocasionava a fome, saiam à cata dos frutos dos umbuzeiros, tubérculos, frutos e mesmo folhas. Ao aproximar-se a hora de deixar o “velho” amigo ficavam todos nus. Estendiam os calções para enxugar ao sol. E pareciam um bando de índios. E ficavam excitados e masturbavam-se por puro prazer, sem mesmo recorrer à visão de uma vulva feminina. Uma versão da Terra dos Meninos Pelados, nua, crua, sem poesia, longe de Quebrangulo, distante do sonho de Graciliano Ramos.

André convidava-me a fazer determinadas estripulias que sozinho jamais teria coragem de fazer. Roubar uvas no pomar de Doutor Clodolfo, desfrutar os mamões do terreno baldio do Grupo Escolar. Tirar tamarindo, escalando o muro do quintal de Dona Marina Marques. Surrupiar amendoim, um pouco de fubá e farinha de mandioca, dos mangaieiros, no meio da feira. Tomar banho no proibido, açude de Seu João Augustinho, ou na piscina da chácara de Doutor Aderval Tenório. Tentar entrar no circo por baixo da lona, sem pagar. Acompanhar o palhaço no meio da rua, anunciando o espetáculo, pra ganhar um ingresso. Tentar entrar no cine Alvorada, num dia de filme impróprio para menores. Um dia compramos uma garrafa de vinho de jurubeba, meio quilo de salame e alguns pães. E fomos pescar pitu no riacho do bode. Cheguei tarde e levei uma sova de meu pai por isso. Acabei aprendendo a usar o menino da Camoxinga como subterfúgio, atribuindo a ele, as coisas erradas que fazia e eram descobertas. Dizia: -Foi o menino da Camoxinga! Um menino que simplesmente nunca passaria de fruto do meu fértil imaginário.

Fábio Campos

Um navio, o rei, o país do monumento

Era uma vez um gigante. Não um gigante como aquele da história de João e o pé de feijão. Porque pra eles existirem, só dependem do ponto de vista de quem vê. Pra nós, meninos moradores da Praça do Monumento, do início da década de setenta, Zé Reis se nos aparentava um gigante. Tronco minotáurico, braços colossais. A cabeça como que implantada em cima duma montanha de músculos, e um rosto talhado na pedra. Os olhos enterrados rente as espessas sobrancelhas, e a bocarra como que cortada a faca. Assim era Zé Reis.

O Rei Teria surgido no Condado do Monumento, assim de um jeito muito semelhante à Gulliver quando surgiu na ilha de Lillipute. De uma terra distante, sem experimentar o naufrágio, em seu navio, teria chegado. Alvissareiros, os ventos noroeste fizeram com que conseguisse aportar com certa tranquilidade, no país do Monumento. Porque pra aqueles moleques, a Praça do Monumento, era um país. Menor que o Principado de Mônaco, porém igualmente rico. Tanto quanto o Vaticano. Não tinha ali a Capela Cistina, porém ao centro ostentava-se a Igreja de Nossa Senhora Assunção. O ouro espalhado no leito do Largo, pra quem quisesse pegar, era só estender a mão e tocá-lo. Sentir seu calor, sua luz, incandescente chegado do Leste nas primeiras horas, o sol se derramando. À esquina a casa de Seu Artur e a bodega de Seu Ozéias, delimitava o Norte do mais novo reinado que já se vira. A fileira de casas recuada por trás do quiosque “O Pinguim”, o limite a Nordeste. O consultório odontológico de Dr. Adelson olhando pro Grupo Escolar Padre Francisco Correia acessava o Leste. Ao mesmo quarteirão, ficava o oitão do velho educandário, o Ginásio Santana, juntamente com o Tênis Club Santanense apontavam e delimitavam o Sul do menor país do mundo. Seus citadinos, os moleques da praça, exerciam sua cidadania digladiando-se em constantes guerras. Havia quase todas as noites a Batalha pelas Bandeiras. Os meninos e suas clãs a tudo disputavam. Pela conquista das bandeiras, azul e encarnada se sucediam infinitos combates. A batalha com caroço de mamonas e a batalha das balas de barro de louça. Seguidores do Ipiranga e do Ipanema. A busca ao ouro (Ourobusca). A conquista do garrafão. A Revolta dos Queimados.

O Navio Aportado à praça era o símbolo da conquista do território ocupado: o País do Monumento. A nau concebida e construída das mãos do rei, com esmero a fez. De madeira nobre seu casco revestido, em latão e zinco hermeticamente calafetado. Azul de colbato, branco e vermelho carmim, em cores vivas, luzidia a couraça do monstro náutico. Imponência culminando a bandeira dizia “Liberdade, Fraternidade, Igualdade” no alto do mastro a observar o horizonte. Escotilhas blindadas com acabamento de vitrais. Botes salva-vidas, encordoamento de arremesso. Possante timão envernizado, adiante do painel de controle a casa de máquinas. Antenas e sonares, radares e campainha de alarme. Um soldado de chumbo fixado à proa e mais dois guardiães das pás da hélice arrematando a popa. A estibordo e a bombordo, gradil e parapeito caprichosamente arrematado por boias salva-vidas. Admoestação a lua, ofuscando a noite opulência de luzes da nave nauta. Afronta inconcebível! Se ia o monarca a outros países, singrava os ares a imensa nau, pelo próprio rei timoneada. Os moleques do país do Monumento jamais aceitariam pacificamente aquela ocupação. Um decreto foi baixado “ninguém podia aproximar-se do navio, salvo exceções se na companhia do imperador”. Decerto nisso residia os segredos da conquista territorial. As mentes febris dos meninos maquinavam e maquinavam planos. O rei invasor não perdia por esperar.

O País O dia sete de setembro. Parada militar pra marcar o dia da Independência do país. Mas que independência? Se ainda havia o rei mandando no povo? Zé Reis punha vestes de fuzileiro naval para passar em vista as tropas de guerrilheiros da Corte. Fazia uma trança com o cabelo, ficava parecendo um cavalheiro de infantaria, da guarda do palácio da condessa Beatriz. O rei também garbosamente desfilava. Constituía-se de arcos medievais a entrada do Palace Hotel da Condessa Beatriz uma pequena saleta, o hall. Adiante do lado direito os quartos dos hóspedes. Do lado oposto as janelas. Indo adiante a cozinha, ornada de belas mesas, naturezas mortas nas paredes, compostas de avelãs, uvas, damascos, vinho tinto em garrafões de palhinha trançada, obras por Zezinho assinaladas. A hospedaria de esquina acessava a Alameda Rotary que acessava outro país, a ilha de Liliputas. Ali liliputanos viviam sob o regime da anarquia. Vida aventureira, cassinos: jogos de cartas, gamão, xadrez. Libertinagem, mulheres. Dada início a década de sessenta, os liliputianos santanenses que já haviam crescido se organizaram e criaram “Os I Jogos de Inverno” que ganhou o simpático de apelido de Festa da Juventude.

O Combate Os meninos se organizaram “Fora o Rei com seu Navio!”. Era o grito de ordem. Bombas de cordão atiradas a Arca, na campanha de São João. A Companhia de Jesus apoiava a Corte. O ataque não surtira o efeito desejado. Permanecia o reinado. Os negros que levavam os dejetos dos senhores feudais pra lugares ermos, estavam do lado dos meninos, e na calada da noite catapultaram fezes a nau. Duro golpe! A fedentina emporcalhou o país, mesmo assim o monarca resistiu bravamente. Numa tarde que o rei saiu a passear, os meninos colocaram um pé de fícus sobre o navio para que seus galhos ferissem o casco. Lançaram mão de sua âncora pondo a deriva, no leito da rua. Acionaram-lhe a campainha de alerta, provocando alarido. Foi golpe fatal. Finalmente o rei combalido. Dando-se por vencido abandonou o país.

O Reencontro Quase metade de século já havia se passado. Fui encontrar o rei deportado, no degredo. Cumprimentei-o. Humilde prestava serviços na prisão de Alcatraz. Na terra dos Cavalos inteligentes, que faz fronteira com o país das Liliputas. Apenas contemplei seu rosto e encheu-se de um sorriso, reconheceu-me. Apertou-me a mão, e o coração. A pronúncia de Seu nome José Paulo Soares Morais e deu-se em água meus olhos. Decidi seguir minha jornada, intencionava encontrar-me com o rei. Não havia mais rei, nem gigante era mais.

Por Fábio Campos

No poço das águas corredeiras

A menina estava lá. Talvez dez anos, ou dois anos mais que isso. Um pequeno chapéu de rendinha de filó, engomado, pousado a cabeça. Donde por baixo derramava-se, exuberante cascata de negro cabelo liso, que lhe ia ao colo. O vestido alvíssimo quase que tocava as meias brancas suplantadas num singelo par de sapatos igualmente brancos. Parecia estar muito triste. De verdade, triste estava. Sentada a um dos bancos da Praça do comércio de Santana do Ipanema. Olhava… Uma borboleta? Sim era. Uma pequena borboleta de asas amarelas, pousada no encosto de braço do banco. Fixamente olhava. Era uma fria tarde, triste, plúmbea. Havia lágrimas que se derramavam pelo rostinho. Teimosas, caíam, em suas mãos inertes. Demorou-se por um tempo infindável e levantou-se dali. Pôs-se a andar, e era como se a calçada de veludo fosse. O menor barulho, nada se ouvia. O vento, nem o pipilar dos pardais, vozes dos transeuntes, nada. Santana do Ipanema como que deserta. No passeio só a menina. Tendo de vida mesmo, só o inseto alado. Desceram a Rua Barão do Rio Branco. A borboleta borboleteando a menina, indo para além da ponte do padre.

À porta da igreja Matriz de Senhora Sant’Ana belo mancebo, do breu interior surgido. Chapéu de palha, roto nas pontas, às duas mãos. Com leve sofreguidão amassava as abas. Posto à cabeça cobrir-lhe-ia parte do escorrido cabelo negro. A fronte, de tez mais alva. Barba rala a desenhar-lhe a face. Surrada camisa, calça igualmente velha, enrolada ao meio da perna, alpercatas de couro cru. Rosto borrado de fumo denunciava-lhe carvoeiro. Todos os dias, sacos de carvão enchia e rumava pelas ruas a anunciar: “-Olha o carvão!”. Em vão tentara se confessar com o padre Bulhões. O pároco estava em jornada missionária. Se tivesse conseguido, talvez saísse dali menos desolado. O serrote do Cruzeiro por testemunha, calado, de verde esmaecido. Um céu desbotado, de nuvens cheias de angústia, pros lados do Alto da Cajarana. Ampliando-lhe n’alma vontade de morrer, morto estava. Diria ao padre do crime que cometera.

Do que fizera à filha do Coronel Serra Negra. Se o descobrissem, jamais o perdoariam, era melhor dar fim a própria vida. Rememorava o dia fatídico. Era só no que pensara, desde então, por horas, dias, meses, anos a fio. Era só em que pensava. Ao levar o saco de carvão para a dispensa do coronel, outra vez, mais uma vez a viu. A menina deitada à cama, no quarto. Sempre vira, todas as vezes que ali fora, cândida cena. A porta entre aberta. O corpo sob luz diáfana varando a cortina fina, aura rósea, virginal. Perfume de suave fragrância das cobertas fluindo, da intocável flor de lótus, guardada sob a calcinha de algodão e fitas de cianina. Indo o cheiro às aguçadas narinas encarvoadas. Não podia tocá-la, mesmo assim aquele homem o fez. Não podia, ainda mais por ele! Cometia dolo de crime qualquer que o fizesse! Amava a menina, ela nunca poderia saber. Um pecado incrustado a sua carne, sobre a pele, nunca, jamais deveria dali ganhar forma, do consciente sair. Como jamais saiu. A ponto de invadir o quarto da ninfeta, a tocar-lhe os pequenos seios. Não o fez, nunca faria, delirava. Suas imensas mãos desadestradas na rudeza do campo, nunca tocariam a púbis inefável, crime imperdoável! Pecado venial. Sentia ele, merecedor de morte e morte cruel! Por tudo o que vira e desejava não ter visto! O coronel! Não! Não queria acreditar que fosse capaz daquilo!

Coronel Serra Negra, homem talhado no bronze. A sisudez no trato e o caráter ferrugíneo de quando vivera, assim retrataram-no à praça. Pelo que representava virou figura no rol dos vultos de nossa história. Figura imorredoura. Tudo pronunciado de sua boca, lei seria. Seus atos, alguns até corriqueiros virados lenda. Causos densamente narrados de roda em roda de conversas de outrora. Diziam de feitos heróicos, de atos bravios na guerra do Paraguai. De medalhas de honra repousando em cofre depositadas. Orgulho de família, passado glorioso. O coronel tivera com dona Domiciana oito filhos, sete varões e a caçula Maria Engrácia, a menina do banco da praça. Coronel fundou em Santana do Ipanema a primeira escola de esgrima. E o primeiro pelotão dos aspirantes a Agulhas Negras das matas e sertões.

A um terreno baldio, por trás da casa do padre encontraram o corpo da menina. Havia dois dias desaparecida. Chovia à dias. O coronel havia suspendido as buscas, ao longo do rio por conta da cheia. Os meninos que voltavam do mato, com alçapões e gaiolas, encontraram-na morta. Um deles viera chamar alguém pra ver. O delegado Bento e o soldado Faustino, esbaforidos chegaram ao local. Os lindos olhos vitrificados contemplavam o céu, o nariz afilado pra lá apontava. A boca entreaberta, como se por ali, tivesse escapado o último halo de vida. O vestido branco, o frágil corpo comprimindo a relva contra o solo negro, úmido. Hematomas no pescoço indicavam que talvez tivesse sido morta por asfixia. Formigas subindo-lhe pelo pescoço e braços, a explorar aquela imensa boneca de pele alva, levemente rosácea rica em proteína que se decompunha. Uma borboleta de asas amarelas, como se costurasse no ar uma sinfonia muda, convidou a menina pra passear, e se foram as duas.

Percival, o carvoeiro, estava profundamente perturbado. Estava no poço das águas corredeiras, além do Bebedouro. Na encosta do rio as mulas pastavam. Afogado em pensamentos o rapaz contemplava o torvelinho da correnteza bravia. Buscava sem encontrar, coragem para ataviar os animais. Impor-lhes cargas, e ganhar a vereda que dava pra rua. Coronel Serra Negra partira em seu encalço. Enquanto avançava o cavalo, outro sinistro se delineando, a acontecer em breve. O coronel conjecturava se abordaria o carvoeiro, indagando-lhe sobre o que conseguira ver naquele dia, ou se chegava sacando sua arma e desferindo-lhe os tiros fatais. Estava decidido, não mais importava saber o que vira o carvoeiro. Se o que ele presenciara acabara levando sua filha à morte, também ele teria que morrer. Chegou atirando. Tanto era o ódio que fez o cavalo avançar por pedregulho falso, íngreme. Os projéteis ricochetearam na pedra sem alcançar o alvo. Cavalo e cavaleiro despencaram no precipício. Já o rapaz, dum salto projetara seu corpo ágil no ar. Alçou vôo indo parar no ventre do espumante turbilhão d’água sanguineo. Tudo estava consumado. Homens, cavalo, armas, para sempre, selando seus destinos. O rapaz à porta da igreja matriz perdido em pensamentos. A menina ao banco da praça brincava com a borboleta. O coronel talhado no bronze, do alto do pedestal contemplava – as pedras, que um dia fora – o profundo poço das águas corredeiras.

“Passarinho” e Virgulino Fúria de Titãs

O povo santanense, civilização surgida às margens do Nilo do sertão, o rio Ipanema, cujo delta em terras alagoanas, banha o vale do Ka-Içara. Santana do Ipanema de três raças. Os nativos primórdios deram nome às duas principais fontes de vida, à mata chamaram de Ka-á-tinga e o curso d’água de “Águas amargas”. Cobiçada pelos donatários, a rica e fértil planície seria incorporada à sesmaria dos irmãos Vieira. Ocupação que marca a chegada do homem genuinamente branco, de origem portuguesa. Em meados do século XVIII chegariam às primeiras levas de negros escravos. Mercantilizados na feira livre, em meio a toldas de legumes, frutas, cereais e a manufaturas de couro e madeira. Mercadoria valorada conforme a condição física que se encontravam. Pelos senhores feudais comprados para os mais variados trabalhos. Agropastoril ou doméstico, segundo suas habilidades.

Nossa história, vem de um século depois que a princesa Isabel decretou o fim da escravidão negreira, em terras brasileiras. Num tempo em que índios e negros legendavam suas sagas. Eram maioria, e poucos se atinham disso. Tempo em que negros e nativos mais prolíferos e sem posses, acabariam pelo inchamento da plebe, empurrados pra periferia. Margearam a reboque o braço do rio. A montante de sua várzea direita a cidade serpenteou, se expandiu. No centro, soergueram sobrados, instalaram entreposto, empórios e intendência municipal. O padre reconheceu firma, em livros cartoriais registrou a freguesia de Senhora Sant’Ana, ergue a Matriz. A periferia alastrada em mocambos. Do tronco tupi-guarany, os nativos aqui existentes se disseminaram da linhagem I-atés ou Kaá-r-nijós que significava “Os que habitam as margens da água forte” e “nascidos do ventre da mata”.

Índios

Santana do Ipanema, imenso legado indígena herdou. Costumes, cultura muito ainda se teria deles para sempre. Nomes de ruas, lendas, plantas: Baraúna, Maniçoba, Velame, Kaa-mo-xinga. Famílias tradicionais de consolidadas raízes aborígenes, Cinésio conhecido por “Caboclo”. Professor Valter, cujas veias, flui sangue da descendência I-até. “Índio” ex-goleiro do Ipanema Atlético Clube. Aman-tá -y- Çá que significa “mãe-da-chuva-que-vê”, era minha avó, cuja mãe viveu e a criou numa aldeia. Aportuguesado, seu nome virou Amância de Sá. Índio se conhece pela cor da pele amarronzada, o cabelo, a compleição facial. Deixou pra civilização o hábito de cultivar milho, usar plantas alienantes como a diamba, em rituais de cura. O tabaco para selar acordo de amizade entre tribos. Deles que depois terminariam sendo estivadores, por não terem tido oportunidade de estudar. “Carrinho” índio”, “Passarinho”, dentre outros, ganhavam a vida no carrego e descarrego de secos e molhados, dos caminhões que chegavam e saiam todos os dias, levando e trazendo o progresso pra Santana. Açúcar, café, e manufaturados. E levavam feijão, milho e algodão. “Passarinho” era um de estatura física fenomenal, braços fantasticamente musculosos. Seu corpanzil titânico daria a atribuir-lhe feitos formidáveis, enaltecido pelos contadores de causos nas noitadas de luar à praça São Pedro. Narrativas apoteóticas de suas caçadas. Numa delas teria enfrentado a cobra Norato, uma serpente gigante de dez metros de comprimento, que engolia um boi inteiro. “Passarinho” teria matado-a na ocasião que dera uma cheia no Ipanema, ao tentar atravessar o rio a nado pelo poço das corredeiras próximo a foz do riacho João Gomes a bichona se atracou com ele dentro d’água, o ofídio gigante teria o engolido. Dentro das entranhas do réptil, sacou seu punhal e destroçou suas tripas. Uma vez livre teria nadado chegando são e salvo a margem do rio.

Negros

Os primeiros autenticamente negros em Santana do Ipanema, teria vindo de duas linhagens Bantus e Nagôs traficados da mãe África. Era fácil diferençar uns dos outros, os de origem Nagôs, vindos de Nova Guiné e Guiné Bissau, eram negros retintos, o pretume da pele era tanto que reluzia. Bem alimentados, aumentavam no porte físico. Muito prolíferos. Arredios no manejo com lavouras preferiam trabalhos domésticos, tinham dificuldade de aprender nossa língua. Exímio no manejo de armas brancas. Sonhavam com a liberdade por isso eram muito fujões. Ficaram conhecidos como a raça dos Baus. Bantus eram originados de Moçambique e Angola, eram negros fubentos, a pele parecia coberta de cinza, não eram dóceis com seus donos. Praticavam rituais de macumba, com holocaustos de animais e fetos humanos. Eram bons capoeiristas. Ficariam conhecidos e temidos pela fama de antropófagos, a raça dos Bius.

A Briga

Foi num final de tarde, de um dia de sábado. Mais um dia de feira livre findo. Mangaieiros começavam a desarmar suas toldas. Início da Rua Tertuliano Nepomuceno, quase à porta do mercado da Carne. A via ficava imunda, frutas e legumes estragados jaziam no leito. Cães vadios catavam o comer no meio dos despojos do burgo. Conhecida também como “Rua dos porcos”. Leitões e galinhas – entre grunhidos e cacarejos, fezes e lama – vendidos. Aquela artéria acessava a Intendência Municipal e o baixo meretrício. Virgulino um estivador morador do mocambo da Lagoa do Junco – da raça dos Bius – com “Passarinho” se encontrou por acaso. Estavam intrigados por uma desavença anterior. Por ter ingerido vários grogues de cachaça Virgulino esbarrou com violência contra seu desafeto. Isso foi suficiente para darem início a uma briga.

Entre gritos da populaça e curiosos, os raçudos titânicos se atracaram. O choque de músculos produzia quase um som metálico, como de espadas. Golpes magníficos de capoeira desferidos atingiam o alvo. Tenazes braços, claves de bronze, catapultavam bancas dos mascates. Fantasticamente pesadas, flutuavam como se feitas de isopor. Como num passe de mágica, um machado foi parar na mão do índio que vibrou no ar, buscando destroçar carne e osso humano. Conseguindo apenas arrancar um silvo do ar. Virgulino de posse de uma cangalha arremessou-a contra o oponente, atingindo a espádua de “Passarinho” que foi ao chão. Uma vez engalfinhados desferiram golpes um no outro. Numa sincronia e reciprocidade de pura fúria de brutamontes, como se trocassem cortesias. Eis que abrindo passagem entre os espectadores surgiu um homem, trajado em paletó e de gravata, encheu os pulmões de ar, emitiu um grito, que tornaria estático o burburinho. Parado no ar o murro, o golpe a ser desferido congelado. Tudo e todos estratificados por um grito de “parem em nome da lei”. Diante da voz do homem, os gigantes virados estátuas. Quisera, o tempo tornasse em pedra aqueles dois titãs, no meio da rua, eternamente. E ao cimento fresco, o artista autor da obra assinasse: Doutor João Ioiô Filho, juiz de Direito da comarca de Santana do Ipanema.

 

O voo do Rouxinol

Olhos, cabelos. Rosto de índio tinha Martins. Muito de selvagem havia nele. De manso apareceu nas nossas vidas. Chegou, pediu uma cerveja, e ficou. Mesmo sem dizer o que era terra, disse. Sem falar do amor que sentia, disse. Jeito texano, caubói do asfalto. Cativou-nos o jeito apaziguado. Nunca olhava. Contemplava, e punha poesia no que via. Acalentava, como que fosse por as coisas pra dormir. Acendia o cigarro como aquele da propaganda da Marlboro. O caminhão, a estrada sua casa. Nem bem chegava – deitava a girar a bola do mundo embaixo dos pneus – partia aventureiro. Se ia, deixava pra trás seu coração dentro do peito de minha irmã. Não prometia, se voltaria. Sempre voltava. Quis criar limo, cravou os pés em Santana do Ipanema.

Um dia foi, e levou um pouco de nós. Agora era dois. Iam, e voltavam. E dois virou família. Fez-nos tio, duas, três vezes mais. Vivia e se entendia – em constante diálogo, sem precisar falar – com a natureza. Sabia de calos doídos, sinalizando chuvas, de aura acinzentada entorno do luar, avisando trovoadas. De ir lá num canto do muro catar um punhado de uma plantinha, pra colocar em ferimentos, dar pro cachorro e pros passarinhos – se lhes diziam estarem – com dor de barriga. Quando podia, e por vezes podia, levava bichinhos e plantas pra dentro de casa. Cães vagabundos. Deles, apiedava-se. Cria em coincidências, e na providencial mão do destino. Num pedacinho de selva, que os homens comuns chamam de quintal, cágados, saguis, porquinhos da índia, jabutis, iguanas, hamsters. O rouxinol que gostava de canários, pintassilgos, cancãos, ferreiros, cacatuas, calopsitas. E educar papagaios pra chamar os donos pelos nomes, cantar arremedando o canto de seus pares. Encheu de mar um vão de acesso a cozinha, rei Netuno submergindo de dentro de baús, caravelas, sereias, era de aquário. Um cão amigo, amigo cão. Cúmplices de afagos e brincadeiras, e conversas sérias também, de passeios nas tardes douradas. Camisa pólo, calça jeans índigo blue, sapato mocassin. O longo cabelo escorrido, penteado com esmero – se molhado, camuflava os fios brancos – conferindo-lhe jovialidade. Ameríndio redesenhando seus caminhos. Saído da zona da mata, indo desbravar veredas do sertão.

Quando fui à primeira vez a sua terra natal, apresentou-me aos amigos. No bar preferido, a cerveja preferida. À mesma mesa, que sempre estaria lá, lhe esperando, morrendo de saudade. O barman sabia a música que devia tocar. Bebemos, brindamos à vida, ao prazer de ser o que éramos, e viver tudo o que havia: o instante. O momento era, e pronto. Martins tinha história, histórias várias. Em cada lugar que ia, a cada esquina um enredo, novos protagonistas. Moleque engraxate ganhava moeda, carinho, e apelido. Cumprimentos, acenos ao carroceiro, o estivador, o relojoeiro, a vendedora de peixe na porta do mercado. Havia história em tudo, em cada canto da sua cidade. Espraiando no horizonte a Serra da Barriga, gigante verde, encerrado adormecido. Corpo de negro, deitado de bruços, alma de negro, carne de negro incorruptível. Impregnado de húmus, de vermes, amalgamado, muito embora, em profundo sinal de respeito não pervertia. No ventre de barro, soterrado o grito nagô nos ventos da aflição. Zumbi havia em todo canto, músculos severos, suados, voltando da roça. Sangue dos Palmares, derramado no canavial, na lida com o facão ferindo a touça de cana. Bíceps e peitorais Inflamados do quilombo estrangulando saca de açúcar. A lança de Zumbi cruzou o ar, foi se encravar no coração da onça. Pés negros desnudos resvalando entre a pedra e a areia do chão antigo, chão encharcado de império. Vento assoviando ordem, impondo respeito e temor, nas flâmulas tremeluzentes dos umbrais desenhados.

O mar de cana ia engolindo tudo. Engolindo os olhos da gente. Estúpida voracidade de redemoinho. Engolindo carroções, bovinos, camponeses, negros, cães, latidos e lamentações. O choro do canzil indo longe, e voltando cego do sal da maresia sufocada de Inferno verde. Dava pra ouvir o roçar de pele de negro no capinzal, os grilhões, o canto pra espantar fadiga. As casas rústicas. O fogão a lenha, no meio do terreiro, o jumento cangalhado aguardando carga. O pano de chita gritando pra gente olhar. Sob a pele fubazenta dos banhos nos córregos cristalinos, mulatas, carnes vistosas, as partes íntimas de coito com o sol, pele luzindo n’água, pelos negros e sedosos de cheiro adocicado de banho com sabão de coco. Corpos desejados pelos capitães do mato, pelos jagunços, velado desejo dos senhorios de engenho, bem casados com nobres brancas da corte. O ar labaredeando palha da cana de dois homens de altura.

O matagal, misterioso olhava ameaçador, dizendo pra manter distância. Não excitaria em devorar-nos vivo. Árvores gigantescas se projetando pro anil celestino, e quando à pujança do rei-sol se ia, viravam dragões, monstros fantasmagóricos, paridos do ventre da mãe terra, incontestavelmente transportados da idade medieval. Caía o véu da noite e dava pra ouvir os atabaques e afoxés, vindo da mesa da montanha. Cujo cume custodiava a negrada fugidia. Refugiados na crista da mata elevavam preces, ofereciam holocaustos a pai Oxalá, Ogum e Yãssan. No cruzamento da seara, sexta-feira, meia-noite arupemba com garrafa de cachaça, galinha preta, espelho, cédulas, moedas, colares, pulseiras, anéis, flores, fumo de rolo, perfume e quindim. Despacho pra Pomba-Gira e Zé Pilintra. Trabalho feito. Pra conquistar mulher difícil, pra quebrar senhorio cruel. Lá vinha Jorge de Lima todo de branco surgido no clarão da noite montado no cavalo do seu santo guardião, empinando a crina, troteava o pangaré enquanto se ouvia o canto pro acendedor de lampião e pra Nega Fulô.

Se janeiro, Santa Maria Madalena, chamava o povo pra igreja. União era festa. O estandarte da santa – roto de tempo e de história – esmaeceu de colores. Guimarães palmarino deitou contrato pra pintarmos outra bandeira. Índio Martins apenas observava – por entre a fumaça azulada do cigarro – acompanhava as voltas que a tinta e o pincel davam sobre o algodãozinho. Ao cair da noite depois da novena cantava o rouxinol, canto mavioso de cordas acompanhado. Os janeiros áureos se foram, tragados feito fumo, pra dentro do abismo do tempo. O rouxinol aturdido por não saber mais de cantar, alçou vôo, voou.

Aprendizes de pai

Quando meu filho disse que ia embora. Naquele instante, lá bem dentro, num cantinho onde dorme a tristeza dos meus pensamentos. Aquela música da dupla sertaneja veio me embalar. Consolar-me talvez. Acho que consegui disfarçar, embora os olhos marejados denunciassem-me. Em questão de segundos, toda uma vida, num relampejo, passou na mente, como um trailer dum filme. Ali na frente dele, não podia chorar. Pior, tinha que ser forte o suficiente para incentivar, passar sensação de confiança, de apoio. Bocado difícil. No nosso excesso de zelo e proteção, nós pais, achamos que os filhos nunca estão prontos, preparados pra cair na vida. Estarão sempre, terna e eternamente, a precisar de nós.

À noite, trancado no quarto, embaixo das cobertas de dormir, o choro veio. Um choro morno, bom de chorar, a um só tempo contido e desatado. Quis volver no tempo, num retrocesso de vinte e poucos anos. Lembrei quando sua mãe, em estado gestacional avançado, entrou em trabalho de parto. Tudo estava devidamente preparado, para àquela hora. Uma semana antes, bolsa contendo o enxoval. Tudo, premeditadamente organizado, carro pra levar ao hospital Dr. Arsenio Moreira. A obstetra permitiu-me, assistir. Antes, havíamos optado em não fazer ultrassonografias. Bom a expectativas, a surpresa. E foi. No dia quatro de agosto daquele ano, veio ao mundo. Nosso primogênito, filho amado, um varão, da descendência de Davi, de Israel. Veio encher duas vidas. Preencher o vazio duma casa, ser luz. Passamos a ser um casal de três, o que a família um dia almejara.

E agora, eis que estava ali, a dizer que iria embora, morar com a namorada, em Maceió, num apartamento no farol. Renunciava o emprego em Santana do Ipanema, sua terra natal. Ia tentar conseguir ocupação semelhante, na terra do sol, paraíso das águas. Só tínhamos que concordar. Abençoar aquelas vidas, pedir que Deus colocasse sua mão protetora selando seus destinos. Afinal, havíamos trilhado caminho parecido. Agora era a vez dele. E o tempo se encarregou de aplacar nossas angústias, nossas incertezas. De longe rezávamos, volvíamos nossos olhos a Deus pedindo por eles, e pra eles, proteção divina.

Um belo dia chegou e disse: – Pai você vai ser vovô! De novo! Como Deus é bom para com os seus. Antes de vir ao mundo, ela já sabia que se chamaria Sofia. A ansiedade fê-los descobrir que era uma menina, antes do parto. Amada, antes de concebida, mais ainda depois. Nove meses amada, amplamente aguardada. Mesmo nós em Santana, eles em Maceió, conseguíamos nos transportar pra lá. Em sonho, íamos parar dentro do seu apartamento e víamos. Belo casal, assemelhado ao casal lá da Judéia. Tudo tão simples. Cabeça apoiada no ventre de sua amada. Ventre planeta redondo, onde a única forma de vida habitava o interior. Como se da obra de Antoine Saint-Exupéry o Pequeno Príncipe cabelos revoltos conversava com Sofia:

-Que quer dizer “cativar”

-Tu não és daqui – disse a raposa – Que procuras?

-Procuro os homens – disse o pequeno príncipe

– Os homens – disse a raposa – têm fuzis e caçam. É assustador! Criam galinhas também. É a única coisa que fazem de interessante. Tu procuras galinhas?

-Não – disse o príncipe – Eu procuro amigos. O que quer dizer “cativar”?

-É algo quase esquecido – disse a raposa. Significa “criar laços”.

Dentro da barriga da mãe, Sofia ouvia o pai, que contava histórias só pra ela, e cantava cantigas de ninar, entrecortadas, pela metade, em ritmo de rock’in roll, a som de guitarra. Dizia das histórias que lia, e do quanto era aguardada. Dizia do enxoval que estava sendo preparado com muito carinho, do quarto. Seu quarto, com esmero, por ele próprio pintado. Um pedaço de céu aqui na terra pra Sofia. Bibelôs, travesseirinhos – tudo tão minúsculo, como se trazido da “Terra do Nunca” de Peter Pan, das viagens de Gulliver – Chuquinha de chá, chuquinha de água, babadores, toquinhas, pares de sapatinhos com cara de coelhinhos. Macacões com carinhas de ursinhos, e fraldas, muitas fraldas. E Sofia flutuava no seu planeta de bolha, dormia e sonhava. Ainda não sabia de falsos contos de fadas, onde Chapeuzinho Vermelho, era do comando vermelho, Branca de Neve na favela era pó, e dava cadeia. Ainda nada sabia dos vilões, Lobos Maus nos porões dos poderes, Bafos-de-Onça e Coringas que riam de tudo e de todos. Ainda aprenderia que o bem sempre, vencia. Sempre venceria. A Mônica, o Cebolinha, Margarida, Mickey, o Pato Donaldo, também sentia suas presenças. Sabia, estavam lá, nas paredes do seu quarto, no frasco de colônia, no pacote de fraldas, na toalhinha, sorrindo-lhe, dizendo: Seja Bem-vinda Sofia!

E Sofia resolveu dar o ar de sua graça. Escolheu um dia especial. Quis vir ao mundo num dia perto da data natalícia da mãe. E se o choro do vovô era de emoção, pela boa nova. O de Sofia era pra dizer, tenho frio, tenho fome, tenho cólica, limpem-me por favor! Estreou a vida daqui de fora, num mês que no calendário, à muito, começava o ano. Sofia quis começar a dar sentido à vida daquele casal, que se amavam e a amava, desde antes da concepção. E o pezinho de Sofia, pra sempre foi parar no braço do papai. Deusa grega, da sabedoria. Veio ser sábia, trazer serenidade, sabedoria pra um lar. Todo construído, pensado só pra ela. Antes de ser, já existia. Sofia existia nos planos de Deus. Criaturinha frágil, de colo. Carecida de toda atenção, todo amor do mundo, carinho pra tomar banho, se alimentar, arrotar, botar pra dormir. Primeiro álbum de fotos, os primeiros dentinhos. Mãos desengonçadas, ampliadas de cuidados, manuseando Sofia, como se de nitroglicerina pura. Mãos aprendendo a paternidade. Experimentando a experiência do Criador, de ser pai e filho a um só tempo.