Correntes e Acorrentados
Cidade de Santana do Ipanema, de ruas e praças espraiadas no tabuleiro inconstante do rio. As casas, teclado vivo de um órgão descomunal, melodiavam uma melodia diuturnamente, intensa, incansável. Ora suave e relaxante, ora extravagante e profusa. Ainda assim sonoridade semi Vivaldiana.
Magníficas elevações serranas circundantes lembravam, aos deslumbrados contempladores, ursos hibernantes. E o povo como que em êxtase, dormia um sono acordado, e o mais que sabiam, era ouvir e contar histórias. Reais ou inimagináveis, de sujeitos e pátria desimportantes até. Porém criam.
Glauco e Otávio ali se haviam um dia. Num tempo, que a gente jamais esquece. Tempo em que os trovões eram roucos de se ouvir. E o céu de toda manhã se abria como fenda de fogo vivo que aparece. Tempo, em que Deus estava ainda terminando de fazer o mundo. E ao separar as águas do elemento terra, acabou por ficar tão escasso ali. Glauco era homem do campo. Amava o cultivo do solo. Ainda bem cedo, quando os primeiros raios de fogo tocavam-lhe as faces, punha-se de joelhos. E fincando suas duas mãos no solo do sertão, pedia a benção, a mãe terra. Elevando os olhos aos céus, atirava um punhado de pó ao vento, e agradecia a Deus. E nas festas da Padroeira Senhora Santana, não importava se o ano fora seco ou de fartura, não faltaria com a oferenda, ao templo de Jerusalém, remanescente de Israel. Tantas sacas de feijão e milho doaria para o leilão. Pra o compadre Ermíndio, dono da farmácia, certamente não faltaria um peru gordo cevado, no natal. Doutor Cleófanes médico obstetra, ganharia um queijo, uma galinha, um dúzia de ovos de capoeira. O prefeito que atendera seu pedido de limpar o açude seco, planear a estrada, pra ele uma marrã de ovelha, que ele mandaria matar, e com os amigos comeria, regado a bom uísque.
Otávio, nosso outro personagem, vivia vida de gado, um povo marcado, um povo feliz. Porque gado aquela gente marcava, a ferro e fogo. Mas com gente, não era muito diferente. E o mundo vivia girando sob as patas de seu cavalo. O elemento água também essencial era ali. E Otávio trouxe até sua propriedade um mago. Um homem sábio de lugar longínquo veio. Conhecedor das ciências ocultas, deitava orações para afastar maus-olhados, curava doenças. Livrava da morte certa animais picado por bichos peçonhentos. Pras os confins da terra afastava pragas da palma, enxames de abelha, cupim da madeira, mosca do chifre, maleita, macacoa e sezão. Tudo isso fazia. E tinha outro dom especial, sabia os locais onde havia água no subsolo. De olhos vendados, portando uma forquilha, de um pau que ele sozinho ia buscar no mato, localizou água quase na divisa da propriedade com o vizinho Glauco. Em parceria cavaram um poço, e ambos utilizavam a água. Assim o fizeram. Otávio também doava seu dízimo na festa da padroeira Senhora Santana. Tantas cabeças de gado. E os dois eram como aqueles irmãos, tementes a Deus, narrado no livro sagrado. Suas casas louvavam ao senhor todos os dias. E os filhos pediam a benção, em três momentos no período de um dia: Ao levantar-se, após as refeições, e ao deitar-se.
Um dia, ao cair da tarde Otávio pastoreava seu rebanho, pitando um cigarro de palha. E eis que foi se encontrar, olhando pras bandas do fim do mundo. Justamente do lado oposto da sua propriedade e de seu amigo, que apontavam rumo ao sol nascente. E caiu em si, numa pergunta. O que haveria pra além do que seus olhos alcançavam? Sem dizer nada a ninguém, quis ele mesmo tirar suas dúvidas. Na manhã seguinte partiria, assim o fez. E Otávio sumiu no oco do mundo. Os seus entes queridos deram-no como morto. Seus filhos e esposa tocaram a vida, como se órfãos e viúva fossem. Porém Otávio morto não estava, e depois de sua longa jornada voltou. Voltou pelo outro lado do mundo. Pois uma volta completa sobre a terra ele dera. E chegou justamente na propriedade do amigo Glauco. Por aquele, teria sido muito bem recebido. Como a um filho pródigo. Recebido com honras e festa, assim o fora. Porém notou que o amigo havia voltado com outro semblante. Os cabelos tornaram-se grisalhos, cultivara uma longa barba igualmente branca. Assemelhava-se a Moisés, depois que descera do monte Horebe. O amigo adquirira sabedoria. E passada a euforia do reencontro, quis o amigo viajante ter uma conversa com o amigo arraigado. Eles que, desde que se entendiam de gente, nunca, jamais haviam deixado suas propriedades. Otávio afinal havia rompido com aquele interdito, imposto por eles mesmo. Deus não tinha participação naquela decisão deles.
E tiveram um diálogo. Disse Otávio: – Glauco! Quero lhe falar do que vi nessa viagem que fiz. Imagine um muro bem alto, separando o mundo de fora, desse nosso mundo. Pra que você entenda melhor, chamarei de caverna. A caverna é o mundo onde só existimos nós, a minha e a sua propriedade, a minha e a sua família. Todos os dias chega um raio de luz, o sol que nasce a cada manhã. Como aqui permanecemos desde que nascemos e crescemos, só conhecemos essa realidade. Apesar de ter uma vida livre, de poder ir e vir por toda extensão de nossas propriedades, vivemos como que acorrentados. Sem poder nos movermos, forçados a olhar somente a parede do fundo da caverna. Não deixa de ser um belo cenário que aprendemos, desde de pequenos, a contemplar, amar e se sentir feliz. Ali no firmamento, todos os dias, vemos projetadas sombras de outros homens que estão para além do muro, separando o fim do mundo. E aqueles mantêm acesa uma fogueira. A luz projeta uma imagem que julgamos real, porém não passa de imagem. A realidade Glauco, está para além do fim do mundo. Ao fazer essa viagem em torno da terra, eu rompi com esse eterno estado de sonho, um mundo fantasioso, não real, em que vivíamos. Acatar tudo que nos é imposto, leis, proibições, governo, religiões. O sistema perverso hierarquizado, saúde, educação para todos, direito a ir e vir, liberdade de expressão. Tudo conversa pra boi dormir, um eterno faz de conta. E nós isolados do resto do mundo achando que assim éramos felizes.
Otávio, disse que, o que tinha pra dizer já havia dito. E que o amigo agora também passara a conhecer a realidade, cabia a ele continuar aceitando tudo como dantes. As correntes que nos prendem, fomos nós mesmos que a criamos. Ninguém está livre delas, resta-nos pelo menos entendê-las. Somos todos atores, partícipes duma grande encenação. “E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial, que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social”.
01 dez
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