DONDE VAIS ESCREVEDEIRA DE GARGANTA PRETA?

João Baptista, e André Soares constituíam-se amigos. João Baptista morava na Quinta da Vinha. Província de Vieira do Minho, proximidades da cidade de Braga, norte de Portugal. O outro, era brasileiro, nascera no nordeste brasileiro, porem desde muito jovem morava no Rio de Janeiro. O que os unira, o fato de serem ambos naturalistas. Em plena selva amazônica, num congresso sobre fauna e flora tropical, conheceram-se.

Milhares de quilômetros de céu marinho, debaixo de águas oceânicas separavam-nos. Um pequeno obstáculo geográfico, talvez fosse só um detalhe. Não se constituindo jamais empecilho pro amigos. Mantinham portanto constante correspondência. E a cada dia, lá ia o funcionário do correio, vermelho e verde na farda, uma estrada, uma casa de pedras. O frio madrugador se dissipando sob o sol. E os galináceos em sua variada linhagem jamais indiferentes os intempérie da friagem, cumpriam sua missão de acordar o dia. De ciscar o terreiro de além açores, de alçarem vôos até pelo menos dois infinitos. Em todo seu esplendor de luz e calor, de dar vida ao mediterrâneo. Enquanto ia o sol predestinado, espreguiçando-se sobre a Europa. De tanto se esticar em luminosidade, acabava vindo esbarrar na América. Só quem via e sentia, sabia o quão era bom, ter a posse de tudo aquilo. De acordar todos os dias, e ter diante de sua existência, montanhas deslumbrantes, recoberta pela plumagem da floresta arbustiva. E o céu de Deus vinha vindo, e descia sobre o céu dos homens, num constante indo e vindo. O rio Ave, a ponte. A ponto de não mais distinguir-se o que era cenário, ou se cenáculo. Enquanto bovinos lá longe, biscuits estáticos, a gramearem grama verdinha, verdejante somente muito longe. E aquele, tinha o propósito de vir ao Brasil num monomotor, do tempo da segunda guerra mundial.

“E o Senhor me perguntou: “O que você está vendo, Amós?” “Um prumo”, respondi. Então disse o Senhor: “Veja! Estou pondo um prumo no meio de Israel, o meu povo; não vou poupá-lo mais. Amós 7-8”

João Baptista, do vale do Cávado, de origem camponesa. Estudou na Universidade Católica Portuguesa na “cidade da juventude”. O Centro de Cooperação Cultural possuía diversos albergues, o que tinha de velha, vibrava na população universitária tão jovem. Assim era Braga. E no mês de maio tinha a tradicional festa do “Enterro da Gata” por três dias os jovens vivenciavam competições de rua, ralis nas cercanias da cidade, corridas de bicicletas, nas estradas rupestres, pelas ruas, o ponto máximo era a escolha da rainha da festa, a premiação dos competidores campeões. Desde o tempo de ensino médio interessou-se pelo trabalho de Lineu e Darwin, formou-se biólogo. Pretendia um dia fazer o caminho do Beagle, só que uma viagem aérea. Do Brasil iria a Patagônia, a ilha de Fernando de Noronha e Gálapos. Amava o campo e o cultivo agrícola a criação pastoril. Seus avós e pais contavam histórias de como haviam chegado à região, de serem ancestrais provenientes do povo Celta, duma linhagem chamada “Castros” que travaram lutas contra os “Bácaros” do qual originaria o nome da cidade. Num tempo ainda mais antigo que estavam vivendo,quando da fundação do vilarejo, os romanos teriam invadido a província e forçado a população a descer o vale. A sua descendência vinha dali. Daqueles que foram expulsos pros campos.

“Acaso correm os cavalos sobre rochedos? Poderá alguém ará-los com bois? Mas vocês transformaram o direito em veneno, e o fruto da justiça em amargura. Amós 6-12”

Bom mesmo era quando chegava o mês de junho, quando o povo comemorava na frente das igrejas Santa Sé de São Pedro, em Bom Jesus, Sameiro e falperra, santa Maria Madalena e santa Marta das Cortiças, reunidos se confraternizavam. Não havia entre eles a tradição das fogueiras. Armavam-se imensas mesas com muita comida e bebida, vinhos produzidos nas redondezas, todos tinha adegas em casa e pães enormes. Queijos de fabrico artesanal, e vinho muito vinho. Jovens casais executavam a “Dança do Rei Davi”, embora sendo bem mais modesta, lembrava as danças na corte imperial do século iluminista. As lavradeiras faziam em casa velas de parafinas e cera. Ficariam conhecidas como velas votivas de Braga, as camponesas levavam pra missa para serem consagradas, após a celebração eucarística, benzidas. De tanto viver este ritual, virou tradição, os turistas tomando posse da lenda, passariam a comprar pra levarem de lembrança. Maria Ondina de Braga tinha devoção com a alma da irmã Maria Estrela Divina, que dera sua vida na guerra dos mouros e visigodos na tomada da cidade, seu corpo martirizado, fora sepultado na Santa Sé. Quando chegava o mês de junho era costume depositar uma coroa de flores, amarrar diversas fitas coloridas no gradil da igreja e acender pelo menos três velas, para venerar o antepassado. Em junho era verão, e as aves estavam na fase de reprodução, em abril e maio do acasalamento e logo se davam as ninhadas, como nasciam. Escrevedeira de garganta preta multiplicavam de sons e cores os céus lusitanos, as árvores, o outono, as eiras e beiras, as entrâncias e reentrâncias das chaminés das casas da vila de Braga de Portugal.

“Quando acabará a lua nova para que vendamos o cereal? E quando terminará o sábado para que comercializemos o trigo, diminuindo a medida, aumentando o preço(29), enganando com balanças desonestas e comprando o pobre com prata e o necessitado com um par de sandálias vendendo até palha com o trigo?. Amós 8-5,6”

No lado de baixo do equador era verão. O carteiro trajado num camisão cáqui cheio de bolsos, na cabeça um boné bufante, e calças dotadas de suspensórios. Com sua imensa sacola a tiracolo, percorria a Quinta da Boa Vista, bairro de São Cristovão. Buscaria a residência de André Soares. Arvoredos e muito verde entremeados de imponentes construções do período imperial enchia de graça seu espírito. A paz e o encanto proporcionado remetiam ao tempo que a família imperial portuguesa habitou ali. A bela casa da marquesa de Santos, de linhas neoclássicas, a casa do Barão Drummond que depois de uma viagem a França, inspirou-se a construir o Jardim Zoológico. Para arrecadar fundos criou a loteria dos bichos, todos os dias, um animal de médio porte era colocado numa jaula coberta com um pano. Os visitantes mediante o pagamento de uma pequena taxa de entrada no jardim apostavam que bicho estaria dentro da gaiola misteriosa. No fim do dia revelava-se e os acertadores recebiam um espólio do rateio. Estava criado o “jogo do bicho”.

“Respondeu a Amazias: Eu não sou profeta nem pertenço a nenhum grupo de profetas(26), apenas cuido do gado e faço colheita de figos silvestres. Amós 7-14.”

André Soares acordou por volta das sete horas, seguia pela alameda das sapucaias, respirando ares da nobreza. Imaginava que a qualquer momento fosse encontrar o imperador Pedro segundo, a brincar. Sorriu ao imaginar um menino de longa barba, a correr pelo parque. A poucos metros do Paço Imperial. Ali nascera a princesa Isabel. Eternizada no nome da vila. Admirava o magnífico projeto do arquiteto francês Glaziou. As aves perpetuadas, trazidas do antigo Campo de Santana, atual Praça da República, palco da proclamação. De repente viu um pequeno pássaro nu alto de um oitizeiro, percebeu nele as características duma escrevedira de garganta preta, ora mas aquela espécie só existia lá no Trás-Montes, terra do amigo João. Sim! Sem dúvida era a ave!

Serelepe buscou um fotógrafo lambe-lambe, tinha que captar aquela imagem. Enquanto isso um teco-teco monomotor sobrevoava a enseada de Botafogo, e o Cristo Redentor, até então taciturno, fez menção de sorrir.

Fabio Campos

OS PÉS DE JULIETA

A história de que mentira tem pernas curtas, quem somos nós pra refutar tal adágio. Podemos sim arvorar-nos na premissa, que a dita cuja talvez tenha sim, quanto ao mentiroso, nem sempre. Consideremos a existência de variado tipo de mentiroso. Existindo inclusive aquele que não convence nem a si próprio. Caso engendre-se nossa história de fantasiosas lucubrações. Deixaremos a cargo de quem lê-nos os auspícios das próprias conclusões.

O matuto verdadeiro. O homem do sertão com suas particularidades. Em essência é aquele que vive matutando. Se entre um colóquio e outro dá de falar de alguém que já passou dessa pra melhor, costuma dizer “-Que Deus tape as “oiças” lá onde ela estiver, pra não ouvir o que hei de dizer a seu respeito!” Julieta tinha nela dois defeitos. Pernas curtas e tortas, por conta de uma poliomielite, e mentia que era uma beleza. Num tempo que a gente haveria de chamar tempos idos. A ilustre figura, juntamente com sua família, fora vizinha de minha vó materna. Julieta era assim, cabocla, criada com leite de cabra. Nascida nas brenhas do sertão de Belém do Cabrobó. Trazendo no sangue linhagem Iatê-Tapuio. Da calada da noite tirou a cor dos cabelos, da casca do angico tirou a morenês da pele. Apesar do nome de personagem do clássico literário inglês uma Tiêta agrestina. Aliás, depois de saída da infância, assim que se entendeu de gente, Julieta dedicou-se com ferocidade de animal predador, a caçar o seu Romeu. Arremedo de pavão, bonita somente dos pés pra cima, ao atingir maturidade, buscou com sagacidade um homem pra chamar de companheiro. Desde a infância tornou-se amiga dos familiares de minha vó. Vizinho naquele tempo era adjetivado de “parede e meia”. Os matutos do mato, aos poucos iam se chegando a urbanidade. Atraídos pela concentração de luzes dos quixós, quando a copa da noite dava a cobrir o vilarejo. E as casinhas de taipa iam sendo construídas umas encostadas nas outras, pareciam meninos buchudos quando iam pra feira. Tímidas se espremiam na barra da saia da cidade.

Animado, igual pinto no lixo, assim se apresentava o sertão naquele ano. As promissoras trovoadas vieram no tempo certo. E o dezenove de março chegou encimado na carroceria dum caminhão Ford. E lá foram pra procissão, e a última noite do novenário das festas de São José da Tapera. Dona Amância, sentada na calçada da comadre Aurélia botava cuidado nas meninas. Os corrupios eram como chamavam o carrossel. Uma sombrinha gigante girando alucinadamente. Um engenho de cana adaptado, movido a tração humana, remetia no ar meia dúzia de moleques afoitos sentados em cadeirinhas. Nos apoios das mãos, patinhas grosseiramente pintada. Uma ruma de gente regozijava só de olhar. Jamais se atreveria a tal aventura! Melhor era mesmo olhar! Lá vinha o Mateu, mais enfeitado que santa cruz de beira de estrada. Estalando um relho, assoprando álcool, num apito de caçar “Fogo-pagô” enchia o oco da noite de lúgubre silvo. Jovens casais tentavam a sorte num Laça-laça enganoso. Tacos de madeira que não se deixavam laçar facilmente exibiam cédulas tentadoras. Uma estranha pescaria, peixinhos feitos de lata de óleo, enterrados num tacho cheio de areia. Se pescados a cauda exibia um número que indicava o prêmio ganho: um sabonete “Alma de Flores”, uma calunga de pano, uma carteira de cigarro Astoria, Chesterfield, Continental.

Depois de muita correria, os meninos dirigiam-se pras barracas de comidas, iam recuperar o gasto energético. E das algibeiras de seus calções tiravam suas tão bem guardadas moedas. A menina antes de sair de casa, praticamente implorara: “-Ô mãe! A senhora não tem tanto dinheiro! Me dê uma moeda!” E se fartariam de pão doce com suco composto de mel, groselha ou caldo de cana, rolete de cana num gancho de catingueira, a desbotar os dentes. A luz dos caandeiros alumiava as prendas do leilão: uma ancoreta de cachaça, frangos fritos, vários perus na pena. Um luzeiro mais potente, abastecido com óleo diesel, garantia claridade pra imagem do santo e pro altar. A missa campal elevava aos céus, hinos de louvores ao santo padroeiro. O cântico glorioso se diluía na fumaça dos estrondosos estampidos dos bacamarteiros. E os foguetes subiam deixando pra trás um rabo de fogo. E o fedor de pólvora esturricava nas ventas do trio de zabumbeiros.

Julieta era irmã de Zefinha costureira. Na noite da festa do padroeiro, as meninas conheceram um rapaz que ficou interessado por uma delas, que infelizmente não fora nossa personagem. Então ela armou seu laço de língua. Teria dito à irmã, que sua amiga tinha arranjado um noivo na festa e que ela providenciasse a confecção de um vestido bem bonito para um próximo encontro, que haveria entre eles. O tecido foi providenciado, o cochicho correu solto. O nome do suposto namorado também foi inventado, um padeiro da panificação São José, sem nada saber entrou na história de cochicho de mulher mexeriqueira. Numa tarde em que estavam brincando Julieta confidenciou à amiga: “-Minha amiga! Como você tem pés tão bonitos! Já os meus…” Doeu até hoje, nada podia fazer.

E o sol depois de um dia de trabalho. Cansado e enfadado, começou a escorregar por detrás das telhas dos quixózinhos, dos cristãos, cristãozinhos! Daquela terra de Deus, meu Deuzinho! Zé Costa chegava por ali, se constava na beira do fogão de lenha de minha vó. Davam de iniciar uma prosa morna, cheirando a milho assado. E iam molhando as palavras com café quente. E falaram de Mariazinha coitada que tinha asma. E estudavam: Mariazinha, Julieta, a sua melhor amiga, e uns meninos dos Abreus, outros do Gavião e do Pedrão. Um dia chegou uma professora nova, pra conhecer seus alunos inquiriu-os. Dirigindo-se a um deles perguntou: “Qual é a sua graça?” Todos riram. Não sabiam o que significava “Sua graça”. Mariazinha cansada, cansada: na hora de soletrar, soletrava: “C-a: cá, c-é: cé, c-ó: c-ó…Ô Julieta? Como é essa aqui pertinho do cú? Zé Costa e minha vó riam, e riam, a balançar a pança como fazia padrinho Pizeca.”

“- Ô Zé! Por acaso, tu soube da história que lá no grotão, no olho d’água, depois que anoitece, deu de aparecer aos homens, uma mulher nua, que vai tomar banho? Dizem que o cabelo é tão grande, mas tão grande, que passa das suas partes! Mas ninguém consegue se aproximar, ela simplesmente some.” Não sabia dessa história. Sabia de outra mais interessante: “-Tá correndo por aí uma história de, Ave Maria! Ave Maria! (se benzia) De Lampião. Mês passado, o bando do cangaceiro andou por aqui perto, passou no Capim e teve no barraco de Zé Banca, se abasteceu de um tudo. O bandido deixou o homem quebrado. Foi embora, mas deixou um recado, que o vendilhão, não dissesse (não “dixésse”, era assim que pronunciava) pra ninguém que ele tinha passado ali. Mas foi só o bando sair do seu terreiro. Correu Zé Banca, foi dizer ao delegado. Ah! Minha filha! Lampião quando soube, voltou lá no Capim, e praticou miséria. Zé Banca coitado foi amarrado num pé de babão. Deram uma pisa de urtiga no cabra, nu. Pra encurtar a história cortaram a língua do desinfeliz, e enfiaram no fiofó do miserável!” -Vixe Maria! “

Julieta ficou velha. Também velha tornou-se sua melhor amiga. Um dia, velhinhas tornaram a se encontrar. Na casa da viuvez da amiga, se encontraram. Aquela que arranjou namorado na festa de São José. Namorado de mentira que se tornou verdade. Agora tudo era motivo de risos. Com aquele, a amiga constituiu família, tiveram filhos. E tornaram a ri, riram, e riram lembrando de Mariazinha, que era doente de asma, que não sabia soletrar o c-a: cá! Mariazinha que já morrera. E padrinho Pizeca que ria tanto a balançar a pança. E se despediram, sem saber Julieta que era a última vez que via a melhor amiga.

Fabio Campos

26 Maio

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ROSAS ENCARNADAS, NEGRO GATO

Nossa história daria de começar assim um tanto triste. Não por causa daquela chuva fina que caía no fim da tarde. Tampouco tinha a ver com o rubro, no leito da rua encharcada, trazido pela enxurrada. O barro vermelho da chácara de Seu Narciso, acabava tingindo de encarnado o calçamento da Rua São Vicente. Uma melancolia branda, plúmbea, desenhada junto das nuvens, lá nos cantos do mundo. Encontraram Damásio morto.

Quem era Damásio? Um dos sete gatos de dona Milu. Veio-me, ainda agora, a lembrança de seu esposo, Seu Benjamim, o tangedor de burros. Chapéu de massa, que um dia fora preto, na cabeça. A copa amarrotada, bolorento na fita. A peninha colorida, milagrosamente se mantinha intacta, a aba carcomida na fronte. Corpo franzino, rosto sulcado de salubridade das águas do Panema. Barba rala. Camisa de mangas compridas. Rota, nos ombros. Desgaste provocado pelas ancoretas. Os punhos enrolados até os cotovelos. Caso Seu Zé “Bêja” tirasse o chapéu, o que era raro acontecer, expunha uma testa alva. Serpenteada por alguns poucos fios de cabelos que lhe restavam. O jeito dele andar é que era interessante. Andava como se mancasse, como se acabasse de pisar num espinho. Arqueava os braços, semi-abertos claudicante. Também a calça enrolava a bainha até a altura das panturrilhas. Nos pés um par de alpercatas. Falava mais com o corpo que com a boca. Se sorria, expunha os incisivos tintos de fumo. Teve um dia, que junto com a carga d’água, trouxe-nos um gatinho enjeitado. Feio, assustado, não parava de miar, e tremia. O bichinho quase sumiu nas mãos cascudas, enrugadas de meu pai. Foi adotado, meu pai gostava de gatos.

O bichano morto de dona Milu havia sido encontrado por Seu Genésio carroceiro, as margens da Br 316. De manhãzinha. Foi levar um carreto de areia, pra reconstrução de um muro de arrimo, que o aguaceiro derrubou, bem ali perto do santuário da Virgem de Guadalupe. Dona Milu não entendia como Damásio fora parar na pista. Não era comum seus gatos sairem de casa. Quando era de tardezinha, Enquanto recolhia os panos do varal, eles a acompanhava no terreiro atrás de casa. Roçavam em suas pernas. Brincavam fazendo estripulias, rolavam no capim verdinho. Amolavam as unhas no caule duma goiabeira. Saltavam uns sobre os outros, e perseguiam gafanhotos e borboletas. Depois que o marido morrera, e os filhos foram embora pra São Paulo restara-lhe a filha caçula, com síndrome de Down, e os gatos pra lhe fazer companhia. No fim do mês, quando recebia o dinheiro da aposentadoria, na feira de sua mantença, dona Milu, tinha como obrigação a compra de ração. Tratava aqueles bichanos melhor que seus filhos. E tinha esperança que um dia, voltassem os que se tinham ido.

Da janela do quarto de Francisco, o primogênito, tendo sido este o primeiro a ir embora, pro Paraná. Recordava. Prisioneira das coisas ligadas ao elemento terra. Pupilas retraídas pelo excesso de luz, a íris criando efeitos, nos reflexos do sol nos vidros da janela. Os cílios varriam tudo que estava ao alcance das vistas, inclusive a rua. Desenganava a mente que aparentemente não encontravas beleza em coisa alguma. O balaustre, um muro de tijolos, a montanha tão verdinha! Lá longe. Uma estrada, um caminho, era o chão, era a estrada, e era o sol. E viu um menino correndo, várias crianças correndo. E viu o tempo, inexorável sem dar trégua, sem parar, não parava nunca. E uma força estranha no ar. E a mulher que passava no caminho, preparando outra pessoa. Roberto Carlos vindo de um tempo tão longe, a estar ali. O carteiro procurando um destino se apoiando num corrimão, subiu uma escadaria carente de pintura. E os olhos finalmente foram lá pro alto. Arremessados pra mais um céu vespertino. E ficou refém dos azuis, que foram parar nas águas, saturadas de cloreto de sódio, dos olhos. Duas pequenas manchas de marrom bem a sua frente, num fio de alta tensão. Dois pardais conversavam com animosidade. Novamente se abaixaram as vistas, indo colherem rosas no jardim. Uma garça estática de dar dó, dizendo: sou apenas uma ave. Porem a imaginava uma graça, voando. E um sapo, tão à vontade, de pernas cruzadas, imitando os banhistas quando vão a praia e ficam embaixo de seus guardas sóis. A grama verdinha, calada, resignada, apenas dizendo: sou grama! O pintor porem diria: Ai das rosas se não fosse você! Sentiu que era observado. Um par de olhos de algum ponto, de algum lugar lhes olhava. E descobriu, lá estava ele. Um gato em cima do balaustre. Era um gato branco enorme. À quanto tempo estaria lá? A íris dos olhos dele viradas num fio, adaptadas a luminosidade, fitava-o. As patas dianteiras juntas faziam-lhe um monge, meditando. As orelhas apontadas pra cima diziam: estava em sinal de prontidão. Como se a qualquer momento partiria a caçar. Será que queria dizer-lhe algo mais?

Por uma dor ainda maior que a de dona Milu passara Zelito. Ao chegar a casa encontraria Rosalina, sua única filha, estuprada, e morta. O crime ocorreu no sitio Barra da Talhada, interior do município de Riacho Grande. Como era que uma desgraça desta foi acontecer. Logo com ele Zelito, que sempre fora um homem temente a Deus. Um seguidor da Lei de Crente. O objeto de mais valia na sua residência, era a bíblia sagrada. De todo lucro que obtinha dez por cento doava a igreja. Todo ano, era assim. Bastava vir as trovoadas de janeiro, azeitava as máquinas de plantar feijão. Tirava a ferrugem das pás do arado, untava as rodas com óleo queimado. Tudo pro preparo das terras a agricultar. Ele e a companheira, de sol a sol na lida. Tinha ano que dava parte da terra, pra homens cultivarem-na, acordando a divisão da safra. Naquele ano, um bando de homens viera arar parte de sua terra. Entre eles, Antonio um mancebo viril, apelidado Negro Gato. Num cair de tarde Zelito acabaria flagrando o negro a espreitar Rosalina nua, no banho de riacho. Pondo-se a um prazer mórbido, ao ver a menina de dez anos apenas a banhar-se.

Aquele fora realmente um ano ruim. As promissoras trovoadas, não vieram. As cabeçadas d’água que abasteciam os açudes falharam, os barreiros secaram. O gado pondo-se a mirrar. Sem pasto no cercado morrendo um a um, tudo tornado difícil. A silagem minguando. A água da mantença da casa escasseando. Zelito em tais ocasiões, punha uma pipa no carro de boi. E duas vezes por semana ia buscar água nos Poções, a mais de dez léguas de distância. Resumiam-se as refeições à fubá de milho, meio dia com um taco de charque, e a noite molhada com leite. Mas como desgraça na casa de pobre nunca vem solteira. A mulher de Zelito resolveu ir embora. A menina Rosalina, filha do casal, a altura dos seus doze anos, optara em ficar com o pai.

A história triste estava chegando ao fim. Ainda mais triste, por dois motivos: dona Milu jamais saberia que Damásio não morrera atropelado, e sim envenenado. Aturdido saíra de casa porque sabia que ia morrer. Comera uma isca. Uma bola, colocada, pra outro gato ladrão. O filho de Seu Antenor perdera um canário e ofertou a ermo, a refeição macabra, vitimando um inocente. Zelito também até hoje acredita que Negro Gato teria sido o autor do crime hediondo contra sua filha. Se ele tivesse o cuidado de observar minuciosamente o corpo da filha poderia ter chegado mais perto da verdade. Não seria comum um rapaz de vinte e poucos anos, largar pêlos grisalhos, na vítima. E embaixo das unhas da menina, resto de pele branca, de ranhuras que dera no assassino. Ora não era o rapaz um negro? Zelito alguns dias depois conversava com o velho Rosalvo Maragato, seu vizinho de propriedade. A prosa versava sobre colheita, gado e carestia.

E quando deitaram a falar dos males que o corpo, com o passar dos anos dava de apresentar, Zelito até brincou, duns arranhões que o vizinho apresentava no pescoço: -Oxente! E o compadre andou brigando com uma raposa choca? Do alpendre pitavam e contemplavam o plantio, o céu azul. A luz do sol intensa não vos permitia, verem uma menina de cabelos de ouro, brincando com um gato no meio do milharal.

Fabio Campos

15 Maio

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JURÁSSICO RENATO

Quando cheguei encontrei Thomas na sala. Dei-me conta que estava chorando. Era um choro desatado, incontido. Choro assim carregado de sentimento, de perda. Seu pequenino corpo tinha-o debruçado sobre o sofá. De joelhos, o rosto entre as mãos. Lápis de cor espalhados pelo chão. Uma folha de papel almaço, garatujada de traços e rabiscos. Ao perceber minha chegada, ainda chorando, virou o rosto e disse: “-Vô! Eu não consigo terminar meu Tiranossauro rex.” Quis saber, dentre tantas coisas que havia lá, qual era o dinossauro, que infelizmente não teria vindo ao mundo por completo. Por imaturidade do inventor, no seu gênesis jurássico.

O indicador da destra apontou um círculo pintado de verde, com outros círculos menores na parte de dentro. Prontificou se a explicar. “-Vô! Eu consegui fazer a cabeça. Isso aqui são os dentes. E aqui os olhos! Faltam ainda as patas! As patas não consigo!” Rebusquei meus arquivos memoriais, e a figura do rei dos dinossauros surgiu-me ameaçadora. Constatei que na hora de criar o monarca do período Triássico, da Era Mesozóica, Deus, assim como meu neto Thomas, caprichou nas arcadas dentária, porém suas patas dianteiras pareciam atrofiadas. Ainda uma lágrima descia, entre um e outro soluço. E de repente, um raio de luz entrou pela janela atingindo-nos em cheio. Tive a sensação de estar encolhendo. Infelizmente não era apenas pressentimento, realmente havíamos encolhidos. O feixe de luz nos fez deslizar, até a superfície de papel. E lá estávamos agarrados em galhos azuis, de uma árvore exótica, que liberava um cheiro forte. Eram galhos duma árvore pintada com tinta azul de metileno. E tinha a árvore frutos parecidos com maçãs, só que maiores, e blues. Olhando pro horizonte vi uma imensa bola cor de ouro. Dum amarelo intenso, cor de cádmio. Era um sol, cor e luz, porem não liberava calor. Um astro rei sem quentura. Fomos parar num mundo, onde as plantas não realizavam fotossíntese, nada era verde, não possuía clorofila. Thomas quis saber: “-Vô! Onde estamos?”

“-No seu desenho Thomas!” Com algum esforço descemos da árvore. O chão onde pisamos era macio, todo branquinho como neve, porem não havia frio, nem umidade. Uma neve que não era neve. Como de pipoca o chão, de uma superfície tão alva que doía. Iniciamos uma caminhada, sem ter a menor idéia pra que lado devêssemos ir. Ocorreu-me que a qualquer momento poderíamos encontrar um dos bichos desenhado por Thomas. Melhor seria não ter pensado em nada. Nem bem fechei o pensamento, e um carro surgiu no horizonte. Os faróis acessos o que primeiro vimos. E veio vindo, sem fazer o barulho característico dos carros, porque não tinha motor, portanto não liberava dióxido de carbono na natureza. Um menino cor de grafite, porque desse mineral era do que era feito, ao volante. O carro andava de modo desengonçado, como se fosse se desmontar a qualquer momento, porque os pneus eram círculos irregulares, imperfeitos. Feitos de caneta hidracor de cor lilás. Nesse momento Thomas sorriu, pois reconheceu o piloto. Disse-me que se tratava de “um velho” amigo, Diego. Na verdade, acabavam de encontrar-se criador e criatura. Um fraterno abraço selou o encontro dos dois. E como se pareciam!

De repente uma nuvem negra, cobriu nossas cabeças. Que nuvem que nada! Eram centenas de Pterodáctilos! Mais que depressa Diego nos fez entrar no seu carro, cuja lataria se constituía de riscos de caneta esferográfica! Era o que manteria nos protegidos dos pré-históricos pássaros carnívoros. Permanecemos ali até findar a revoada dos pterousauros gigantes. Uma vez que se foram, voltaram os amigos à conversa. Diego queria saber como Thomas tinha ido parar na “Terra do Onde-Tudo-Era-Possível”, assim chamada segundo ele, porque do branco tudo podia surgir. E disse mais: “-Naquele mundo, todos temiam o lápis preto. Tida como a cor símbolo das trevas, devorava tudo que era luz.” Todos seres daquele lugar fugiam do nanquim, como o diabo foge da cruz! Thomas disse-lhe apenas como tudo tinha ocorrido que estava na sala mais o avô, quando uma luz atingiu-os e eles encolheram. Diego disse não entender o que havia ocorrido, mas que na “Terra do Onde-Tudo-Era-Possível” lá para além da montanha Branca, morava o mestre dos Magos que com certeza sabia o que tinha acontecido. O problema era encontrar a montanha Branca, num mundo onde, até aonde a vista podia alcançar, tudo era branco.

De volta ao carro de Diego, iniciaram a jornada em busca da alba montanha onde morava o mestre dos Magos. Não andaram mais do que umas vinte jardas, vencendo a neblina da neve, que não era neve. E os faróis alumiaram uma imensa montanha verde. Ora! Se o sol não emitia calor como nascera planta ali? “-Cuidado vô! A montanha está se mexendo!” Que montanha que nada! Nossos incautos heróis tinham acabado de encontrar o Tiranossauro rex inacabado, de Thomas. Como não tinha as patas inferiores permanecia deitado, porém movimentava a cabeça para um lado e para o outro. Thomas aproximou-se. Desta feita foi a vez do avô cobrar-lhe cuidados. O menino de carne e osso, disse ao “vô” para não se preocupar, seu dinossauro não comia carne (pelo menos não a dele!). O dinossauro era amigo. Dócil, queria saber do seu criador, quando pretendia terminá-lo. Não via a hora de sair andando pela “Terra do Onde-Tudo-Era-Possível.” Assim que encontrasse um jeito de crescer, e voltar ao mundo dele, e do avô, respondeu-lhe Thomas. O Tiranossauro rex então disse: “Ora! Não é à toa que me chamam de rei!” E concluiu: “-Na ponta da minha cauda tem um osso pontiagudo, em forma de lápis. Tudo o que um menino traçar sobre o branco com ele, vira realidade.” Pegando a ponta da cauda do dinossauro Thomas desenhou no chão branquinho, um par de patas traseiras pro dinossauro. Disse-lhe o avô: “-Dê-lhe o nome de Renato, porque significa renascido.” Desenhou também um par de asas mecânicas gigantes e colocou-as no carro de Diego. E voaram até a montanha do Mago da “Terra do Onde-Tudo-Era-Possível”.

No terceiro dia de jornada encontram o castelo. O mago recebeu muito bem os estrangeiros em seu palácio. Depois de ouvir a história, explicou o que havia acontecido: “-Todo ano que termina com o número quatro; quatro planetas do sistema solar se alinham. Exatamente na metade do outono quando, faltam quarenta dias pro solstício de verão no hemisfério sul. Se no exato momento do alinhamento, um menino que tenha quatro anos, iniciar um choro, por um motivo muito necessário, em qualquer parte da terra, desencadeia-se um campo de energia cósmica, do espaço sideral que faz com que aquela criança, e quem dela estiver próximo encolha. O problema é o antídoto. É preciso que a bisavó da criança esteja pensando nela, no exato momento do realinhamento, quando a terra e os outros três planetas voltarão as suas órbitas de origem, o que acontecerá daqui a sete dias.”

Minha mãe estava só. Era noite. A luz fluorescente da cozinha derramava-se sobre seus cabelos brancos. Tornando assim, ainda mais brancos. Tomou café. Sentou-se a sua poltrona. Pôs-se a folhear o calendário: a folhinha do Coração de Jesus. Em que dia do mês estava? Perdera a conta. A velhice tem dessas coisas, a gente esquece o dia, o mês, e até em que ano se está. As horas passavam a passo de tartaruga. E vieram velhas recordações. O dia em que morrera seu pai. Veio o padre Moisés para as exéquias. Teria o sacerdote afirmado: “-Tomaz, morreu num grande dia: 25 de março dia da anunciação!” E lhe ocorreu um pensamento: “-Um de meus filhos tem um neto, com o nome de meu pai, só que ao invés de Tomaz chama-se Thomas.”

Fabio Campos

O BARÃO E O DISCO VOADOR

Naquela segunda-feira à tarde, resolvi ir à casa do visconde de Sinimbu. Sentia quão era bom, e como, fazia-me bem estar lá. Não exatamente pela companhia do Lorde. O que me fazia tanto bem era tão somente estar naquele lugar. A cada vez que ia mais e mais consolidava o que eu sentia.

Não me ocorria, ter estado lá alguma vez, pela manhã. Porém era muito provável, que algum dia, tenha ido, ao alvorecer. Muito embora a obrigação, o dever a cumprir, acabaria negando a oportunidade de contemplar a paisagem. De dar-me o direito de perder tempo admirando as coisas corriqueiras que se desfilavam a cada momento a minha frente. De modo que a manhã, jamais causaria a impressão que o vespertino imprimira. Como se nos fosse negado o prazer de gastar o horário da manhã com o descompromissado compromisso duma visita. Como se as primeiras horas cobrassem dos seres domésticos, preocupação com as coisas a serem feitas. Tinha o período matutino, essa capacidade incrível de furtivamente furtar a atenção pros afazeres. Em especial, no miolo da semana, os denominados dias brancos. Não permitia a um senhor de engenho tamanho desperdício, de contemplar a beleza dum amanhecer. Sendo dele próprio cobrado, inexorável acompanhamento dos trabalhos. Às ordens a serem dadas aos feitores que acompanhavam os escravos que iam pro desfrute dos coqueirais, era de muito mais importância. Ouvir dos capatazes que supervisionavam os trabalhadores no plantio de cana-de-açúcar que tantos negros haviam fugido. E de outros tantos safos dos trabalhos na olaria. E saber sobre quantos teriam morrido de maleita porque passavam dias a fio dentro da lama. As cantigas cantadas nas matinas vindas da senzala, carregadas de sortilégios de entidades da mãe África. Era o modo de despedir-se do preto velho, morto a mais de uma semana. Os negros andavam cheios de angústias. Arredios com seus mandantes. E a noite o baticum dos tambores ecoava na mata num choro, lamento.

A casa dava o lado direito pro mar, muito lá adiante. De onde nascia, o rei de luz e calor. Ao realizar sua parabólica, tocava os gradis do jardim, os oitões. O esplendor de construção erguido num platô cujas portas e janelas frontais, olhavam pra um chapadão, emaranha de tantos tons de verde. Donde um dia braços humanos de negros e brancos abriram picada com característica de vala, e varou toda gleba. E sobre ela assentaram bitolas e grampos que sustinham vergalhões e deu-se estrada de ferro. O trem passava, as janelas olhavam: do trem pra casa, da casa pro trem. A construção de dois pavimentos tinha escadaria frontal que acessava um vão, circundo de parapeito. Três magníficas janelas de lado a lado ornavam o frontispício. Iam lá em cima, e desciam em portões de ferros em estilo gótico. Duas letras: “V.S.” uma na folha esquerda e outra na folha direita do portão, lá adiante do pomar amelhado de frutíferas. A porta central acessava a sala de estar. O piso de madeira untado de azeite, jamais permitindo, ao andar, que o peso do corpo fizesse ranger o lastro.

O visconde fora pra Europa, ter aulas de baruel e orfila. Dom João Lins Vieira Cansanção, apesar do nome, e dos pomposos títulos, era um homem novo, nem trinta anos tinha ainda. Desta última viagem a Paris e Alemanha voltaria à terra natal com o título de barão. O filho do capitão Manuel Vieira, formado em Direito pela Academia Jurídica de Olinda, gostava da vida na província. Das noitadas de festas que seus pais promoviam toda vez que volta de férias dos estudos nos estrangeiros. À noite, de sua casa dava pra ver as luzes dos lampiões do cais do porto de Jaraguá, lá na vila de Maceió. No pavimento inferior da casa ficavam os aposentos da criadagem, a dispensa, e a cozinha que tomava toda a extensão do lado leste do sobrado. A boquinha da noite farta refeição era providenciada para os convivas do barão, que estava pra chegar. A preta velha estava apreensiva, ficara sabendo que seu filho havia fugido. Não entendia o que se passava na cabeça daquele moleque. O boato da proclamação da libertação dos escravos, pela princesa Isabel, já se espalhara feito rastro de pólvora. Era só ter um pouco mais de paciência. Afinal o visconde era simpático a abolição. O capitão do mato saiu no encalço do negro, por conta própria, por puro ódio aos daquela raça.

Bela noite vaporosa e quente se havia. Uma chuva leve tinha molhado o mato ao cair da tarde liberando um cheiro bom de capim fresco. Um enfileirado de tochas acesas alumiava o terraço desde o portão de entrada até a escadaria que acessava o frontispício do imponente casarão colonial. Os pirilampos faziam a festa. Tudo ali, naquele momento, em muito, lembrava um ritual de casamento havaiano. Muito embora nenhum cerimonial de núpcias estivesse pra acontecer, tão somente aguardava-se a chegada do visconde, que chegaria ainda naquela noite. Na companhia de lindas donzelas, os convidados bebiam vinho no terraço. Deles preferiam passear pelo jardim. Ao som de um quarteto de músicos, que tornava tudo ainda mais alegre. Os mais velhos preferiam jogar gamão e pôquer na ante sala. Donde se ouvia leves estalos de língua ao deguste de modestas doses de uísque, vinte anos envelhecido. Fios de fumaça azulada saiam dos charutos subiam, e subiam. Indo impregnar de fumo e nicotina o lustre de cristal pendido do teto. Uma pintura, a óleo, de busto do barão olhava sereno pra outro quadro, duma gravura náutica na parede do lado oposto. Numa mesa enorme com forro branco, requintados petiscos. Um leitão jamais tocado parecia dormir sobre a bandeja, ornado de frutas e legumes. O capitão providenciara para a chegada do visconde barão a queima de fogos de artifício. Porém nada daquilo aconteceria. Ao aproximasse dali, o barão liberou o cocheiro. Passou a conduzir a carruagem e na companhia de algumas meretrizes trazidas de Paris, ganhara o caminho da praia. Amanheceram bêbados e nus. Aos gritos, recitavam poesias em francês. Os nativos que a tudo presenciara batizariam o local de praia do francês.

A igreja do Santo Rosário estava lotada. Naquela ensolarada manhã de domingo celebrava-se a missa da páscoa. Quinze dias, exatamente duas semanas, separava aquela cerimônia clerical, do episódio a beira mar. O solene som do órgão solfejava cânticos, o santo ofício. Padres, bispos e presbíteros em seus paramentos. Sentados diante do altar, distribuíam-se em meia lua, conforme a hierarquia, do centro para as pontas. O tilintar do castelo batendo nas correntes do turíbulo, o cheiro de incenso perfumando toda a nave, a assembléia. O coroinha segurando a franja do véu umeral, a reta guarda do sacerdote, enquanto era incensado o altar. A mitra apontando pra cúpula eclesiástica. O recital, os cânticos tudo em latim pronunciado. De repente, lá na porta da igreja, uma figura grotesca surgiu. Era o capitão do mato.

Aos gritos de “-Senhor Barão!” entrou na igreja. Em vão tentaram interpô-lo, porém pararia somente aos pés do barão. Lívido de espanto, assim como toda a igreja, Dom João viu o terror nos olhos daquele seu empregado. O rosto crispado de medo, relatou-lhe o seguinte: “-Meu senhor! Estive no encalço dum negro fujão. A dois dias atrás, o encontrei. Era por volta das três da tarde quando o coloquei sob a mira da minha espingarda. Eu ia atirar, quando do céu apareceu uma grande carruagem de ferro, sem cavalos, nem cavaleiro. De lá, saiu um facho de luz que desceu até o negro, e sugou-o pra lá dentro. E A imensa nave sem vela que flutuava no ar, se foi!” Dito isso desmaiou.

Duzentos anos se passaram, e a nave espacial voltou. Mansamente veio vindo, veio vindo, e pousou ao lado da casa do Barão de Sinimbu. A aprazível casa do primeiro ministro da justiça, pioneiro em defesa do ensino primário e secundário patrocinado pelo governo. Depois de sua morte foi cedida como espaço para os professores se reunirem.

Fabio Campos

OS QUINTAIS E AS LUAS

Em meados da década de quarenta, meus pais mudaram-se, do início da Rua Barão do Rio Branco, foram morar no Largo do Monumento, numa casa, defronte a capela de Senhora Assunção. Naquela ocasião eles eram o casal, e um filho. O primogênito, e que não era eu. Contava-me minha mãe, que a partir de então, os compadres passariam a afirmar: “-Vocês agora estão morando em bairro de burguês!”

Naquela época a Quinta do Monumento, nem tinha calçamento, somente a igrejinha ao centro, o quartel da Brigada Militar, sob o comando do Coronel Lucena Maranhão, que teria vindo da capital alagoana pro sertão, pra combater e acabar com o cangaço. Anos mais tarde, o quartel viria a ser a Escola do curso de Comércio, Santo Tomaz de Aquino, e depois o Ginásio Santana. Era tão somente isso o que existia por ali, naquele tempo. A casa dos meus pais e mais algumas poucas moradias. Um dia, minha mãe se punha sentada a porta, e observou o intendente Firmino Falcão, munido de uma fita métrica, e um ajudante, a medir uma área na frente das residências. Não demoraria e surgiria o “Pinguim”, graciosa lanchonete, alpendrada e lajeada que tinha uma espécie de coreto na parte de cima.

A casa. De fachada simples, quase sem eiras e beiras. Tinha janela e uma porta, e três cômodos: sala de estar, um quarto e a cozinha. Aos poucos meu pai foi aumentando, pois o quintal era tão grande que ia até o Largo São Francisco, que mais tarde viria a ser a Rua Marinita Peixoto Nóya. Dali avistava-se perfeitamente a Quinta do Maracanã, e a ladeira que subia até o cemitério Santa Sofia. Assim, quando morria alguém, dos fundos da minha casa, dava pra ver o cortejo subindo, subindo, até chegar ao Quinto das Tabuletas. A cisterna que tomava parte do nosso quintal foi demolida, pra dar lugar a mais três cômodos. A cozinha remodelada e ampliada. Outros dois cômodos eram quartos dos meninos e das meninas. Entre a nova cozinha e o quarto dos meus pais, acabaria ficando uma espécie de clarabóia que anos depois mudaria numa área verde. Antes disso ocorreu o episódio do furto.

A história do tal ladrão, contaremos com brevidade porque não é as desventuras de um reles larápio o ponto de convergência da nossa história. Foi num dia que Francisco, o primogênito, que embora já houvesse casado, naquela noite resolveu dormir em casa dos pais. Já ia alta a madrugada quando pelo quintal do vizinho, o gatuno, sem dificuldade alcançou a clarabóia. Entrou pela escadinha que Severino e Seu Zé Benjamin usavam para encher a caixa d’água do banheiro com água do Panema, trazida em ancoretas no lombo de jumento. Andou pela casa toda, no entanto levaria consigo, o relógio, uma corrente de pescoço banhada a ouro, a carteira, a calça e os sapatos do meu irmão. Já ia indo embora, e desistiu de levar a calça, deixou-a na escada. Largou também a carteira somente com os documentos.

A casa da minha mãe por esses dias teria passado por uma reforma. Já estava mais do que na hora de uma recuperação na sua infra-estrutura. A última que lembro, tinha ocorrido a cerca de quarenta anos. Foi próximo da revolução de 64. Naquela época notícias a uma cidade como Santana do Ipanema, encravada no sertão nordestino, chegavam através do telégrafo. A agência dos Correios, naquele 21 de março, recebera a notícia que os paulistanos tinham realizado na metrópole brasileira, a grande “Marcha da Família com Deus”, que reuniria cerca de quinhentos mil pessoas, manifestavam pela lei e pela ordem, e contra a transformação do Brasil numa república comunista do tipo adotada pelo ditador da ilha de Cuba, Fidel Castro. As Forças Armadas, Exército, Marinha e Aeronáutica, foram para as ruas, invadiram palácios de governos estaduais, marcharam contra as universidades e reprimiram com vigor e veemência os dissidentes políticos, taxados de golpistas e comunistas. Muita gente foi presa: intelectuais, escritores, artistas e políticos da linha dita de esquerda. Muitos deles foram deportados, outros conseguiram asilo político em países vizinhos, outros foram encontrar guarida em países da Europa e na América.

Em Santana do Ipanema, a revolução não passaria em brancas nuvens, também tivemos manifestantes nas ruas. Assim que a notícia da revolução se espalhou os estudantes foram pras ruas. O jeep da polícia realizou várias batidas, prendeu alguns boêmios, vários estudantes, e um professor. Alguns prédios públicos foram depredados e pichados. O prédio da perfuratriz ganhou um símbolo nazi-facista a suástica alemã, uma mão com o dedo polegar içado, e os dizeres: “Fora Comunistas!” Manifestantes haviam invadido o posto da Coletoria Estadual, móveis foram atirados no leito da rua, e queimados, juntamente com diversas pastas e documentos. Ainda naquele dia, da capital chegou um pelotão da Infantaria Motorizada, soldados do exército que teriam feito uma batida na cidade sitiada. Composta de dez homens, a guarnição trajava farda de cor cáqui, coturnos de cano longo, fuzis com baionetas e capacetes em forma de bola, o que possibilitaria o pejorativo apelido de “soldadinhos de cuia”. A varredura incluía revista a prédios públicos, escolas, estabelecimentos comerciais e mesmo algumas residências. Ao se negar ser revistado pelos soldados, no cassino A Lira d’Ouro meu pai foi preso.. Nesse tempo era banqueiro de jogos de azar, vivia do carteado. O farmacêutico Seu Carola, compadre de meu pai, não fazia muito, havia sido nomeado delegado. Teria conseguido um salvo conduto, para que fosse posto em liberdade, ficando sob sua custódia. Mas só depois de ter ficado preso por uma noite na Cadeia Pública.

Quando entrei percebi que minha mãe não estava só. Era sempre assim, sempre que ia lá eu a encontrava na presença de alguma visita, comadres, amigas do coral da igreja, amigas do grupo da “melhor idade”. Saboreavam café com torradas, ou comiam pipoca quentinha, a tevê ligada, porém ninguém assistia. Naquele dia não era nenhuma dessas companhias. Junto com ela havia duas pessoas. Conversavam com certa animosidade, riam. Aproximei-me. Sentada na sua poltrona, minha mãe olhou-me sorrindo. Pedi-lhe a benção. Abençoou-me. Noutras cadeiras de frente a dela, um chinês e um índio. Cumprimentaram-me com um cordial “Boa tarde.” Ressabiado retribui o cumprimento. Cuidaram em se apresentar.

Feng Shui e Aruwana. E tinham uma história pra contar. Pra tentar descontrair e possibilitar amabilidade, perguntei o que significavam seus nomes. O “Clamor do Vento e da Água” disse o chinês. “O que tem a “Língua-Dura-como-Osso” falou o índio. O chinês se iniciou no que tinha a dizer; “Amigo, somos viajantes, andarilhos pelo mundo. Viemos aqui trazer uma revelação: todo lugar no planeta tem uma vibração, libera uma energia positiva ou negativa. Se uma edificação é erguida próximo ao sopé duma montanha a energia se acumula, numa construção próxima de um rio haverá energia em constante movimento. No caso desta casa, construída próximo a um templo de oração as vibrações positivas se expandem num raio de cem metros. Todos os que nascem ou nasceram neste local estão ou foram revestidos desta energia. No entanto caso se afaste, ou vão pra longe precisam voltar com certa frequência aqui, para renovarem esta energia, que vai se gastando ao longo do tempo, até se acabar e passa a acumular no corpo a energia contrária, a negativa. Dessa energia divina é que dependem as suas, as nossas realizações pessoais, o encontro consigo mesmo, a paz e tranquilidade interior.

E chegou a vez do índio falar. “Amigo, venho de uma tribo politeísta. Meu povo acreditava em Cinco deuses: Hotí deus do fogo; Hatí deus da terra; Watí deus da água, Hér deus do Ar. Certo dia chegou na nossa aldeia, um homem de longas vestes pretas, chapéu preto, uma cruz pendurada no pescoço. Ele falou de um único Deus em quem devíamos acrditar. Falou da importância do jejum e da oração. Não dei valor a nada do que ele disse, além do mais disse-lhe palavras duras, daí ganhei o apelido de “Língua-Dura-Como-Osso”. E por castigo fiquei mudo. Num sonho fui visitado por um profeta que me perguntou: “Aruwana! Que rei tem quinhentos no começo e cinco no meio? Tens até a quinta lua pra responder. Passei quatro luas tentando encontrar a resposta. Quando clamei a Deus, Ele me respondeu, Aruwana, o rei que tem quinhentos no começo e cinco no meio é o rei Davi. E minha língua se soltou. E até hoje sou o que sou.”

Fabio Campos

DÁ-ME DE BEBER!

Igreja matriz de Senhora Santana. Dali a alguns dias viveria a páscoa. Um pequeno andaime no interior indicava algum tipo de reforma. Diversas latas de tintas, esmaltes, pincéis num copo. Um pintor sentado sobre um tablado. De costas para a nave, concentrado no seu trabalho, pintava. Um céu intenso de luz, de um sol cádmio. Palmeiras, damascos, pinheirais diziam até onde iam os horizontes. Um lajedo compunha o relevo. Ciprestes afloravam do chão, somente aonde permitiam as pedras do solo. Os olhos do observador requisitados pelas duas figuras humana da cena, Jesus ao lado de uma mulher. Semblante sereno, sentado numa pedra. O filho de Deus tinha a face voltada para a madona, que se encontrava sentada no chão, apoiada numa cânfora. O epicentro da paisagem, um poço que havia ali.

Voltando no tempo, pelo menos umas duas décadas. Recordei que antes havia uma pia batismal naquele lugar. A paisagem, de antes, naquela parede representava o batismo de Jesus. João Batista, as margens do Jordão, de pé, muito sério, com cara de dissidente político, cabelo grande, barba cerrada, escura, trajado em peles de animais. Uma das mãos segurava um cajado, e com a outra despejava a água contida numa concha, sobre a cabeça de Jesus. Cabelos e barba castanha, envolto num manto, cor púrpura, a cabeça quase abaixada, os olhos serrados. Enquanto isso lá no céu azul claro, ornado de nuvens estufadas, uma pomba pairada no ar. De suas asas, o espírito santo descia sob a forma de luz. Aquela imagem, retida na mente desde a infância. Jamais esqueceria.

Jerusalém era aqui. Em Santana do Ipanema, tudo se parecia com a terra santa. Nas suas ruas estreitas, no sobe e desce dos becos escuros. Na tendas dos mercadores. Nos trajes coloridos, no sol, no clima semi-árido. Na escassez de chuva, na vegetação rústica, adaptada a esta temperatura. Nos chamados dias grandes, os sertanejos seguiam em romaria, pelos sertões. Em penitência por expiação dos pecados, peregrinavam a lugares altos, aonde houvesse um cruzeiro, iam rezando a ladainha, o santo ofício, a via sacra. A cada estação, as súplicas por misericórdia. Pedidos de perdão a Deus pelas atrocidades da humanidade inteira. Deles que carregam ex-votos, e deixavam-nos na primeira capela que encontrassem. Haveria quem carregasse por todo o percurso uma pesada pedra na cabeça, isso porque um dia uma graça teria sido alcançada, ou um pedido havia sido feito e esperava-se o benefício divino. Mães que vestiam seus filhos pequenos com trajes de frade franciscano. Imagens do padre Cícero Romão Batista, e do Frei Damião de Bozzano conduzidas sob sobrinhas coloridas. Um homem que padecera de um mal por muito tempo, uma vez curado, cumpria sua promessa, uma cruz de tamanho e peso da de Cristo carregaria até o Juazeiro do Cariri. Cheia de fitinhas coloridas presas ao madeiro, por aqueles que almejavam alcançar graças, por aonde o cortejo ia passando.

Verão bravo e ia o vento assobiando na caatinga, imitando o canto da fogo-apagô. Lá no alto o Cruzeiro, remetendo-nos ao Gólgota, lugar da caveira, ali ocorreria à encenação do calvário. Os vendilhões na porta da igreja e do mercado comercializavam os produtos mais procurados na época da quaresma. As iguarias para o feitio da ceia de páscoa, expostos no leito da rua. Coco seco pro preparo do peixe. Os compradores experientes com uma moeda batiam na casca dura, no tilintar do metal, descobriam se o produto estaria saudável. Rosários de coco ouriciri, umbu pra fazer a umbuzada. O olfato ofendido, e a presença de muitos cachorros vira-latas acusavam a proximidade das barracas de peixes. A balbúrdia, a barganha, os ânimos exaltados. O facão, a peixeira toque-toque aparando barbatanas extirpando vísceras. Pilhas de jacas e de melancias, frutas fartas de polpa pra depois do almoço da semana santa. O homem do campo sabedor da necessidade do jejum se abastecia de frutos e iguarias típicos da quaresma. Quem não observasse os preceitos religiosos, amplamente arraigados, eram taxados de Judas. Nos chamados dias grandes, vivenciam-se os preceitos do Livro de Levítico. A mulher deveria evitar as relações sexuais, antes, durante, e depois da menstruação. O homem que deitasse com meretriz, ou que houvesse contraído gonorréia seria considerado impuro, e jamais deveria aproximar-se do altar, até que estivesse limpo. As crianças de até um ano deveriam ser levadas pra serem circuncidadas. As meninas em idade púbere, mantidas dentro de casa. Não podiam banhar os cabelos, nem aparar os pêlos. Ou ainda usar cosméticos, nos lábios e unhas, nem ornar a cabeça com diademas, nem usar colares e brincos nas orelhas. Afazeres domésticos só depois do por do sol, a portas fechadas. A poeira do piso deveria ser varrida para detrás da porta, nunca jogada fora. Os animais não exerceriam serviço algum no campo. O leite ordenhado da vacaria deveria ser distribuído entre os pobres da vizinhança. O cavalo, considerado um animal impuro, podia ser usado como transporte, apenas em caso de necessidade.

“Por volta de 1000 a.C. os israelitas viviam nas terras altas situadas a oeste do rio Jordão. Onde atualmente fica o território da Jordânia. Segundo os Livros Sagrados os israelitas dividiam-se em doze tribos, que viviam em constante rivalidade umas com as outras. Estas tribos teriam sido unificadas pelo rei Saul, que foi sucedido pelo rei Davi, que por sua vez foi sucedido pelo seu filho Salomão. Depois da morte de Salomão, dez tribos do norte se separaram e formaram o reino de Israel, também conhecido como reino da Samaria. A principal festa dos samaritanos é a páscoa, como manda a tradição, o sacrifício do cordeiro, seguindo as normas consignadas no capítulo 12 do Livro do Êxodo, são seguidores até hoje, do Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia.”

Santana do Ipanema, assim como a Samaria nasceu de doze tribos, que se desenvolveram a partir de três necessidades básicas: os mananciais de água, o cultivo da terra e a atividade pastoril. Seis delas: Pão de Açúcar, Olho d’Água das Flores, Poço das Trincheiras, Riacho Grande, Dois Riachos e Santana do Ipanema, se iniciariam às margens de cursos d’água. São José da Tapera, Olivença e Ouro Branco, a partir do cultivo de feijão, milho e algodão. Carneiros, Maravilha e Palestina, da criação de gado bovino, muares e caprinos. Apesar de unificadas, acabariam um dia tendo que se separar. Dentre as 12, Três dessas tribos, possuem evidências de serem herança da tribo de Judá(a.C.): A cidade surgida as margens do rio Ipanema, sobre a égide de Senhora Santa Ana, avó de Jesus Cristo, a cidade de Tapera, seria do pai terreno do Filho de Deus, São José. E Dois Riachos, ainda hoje sob o auspício da sua Santíssima Mãe, Nossa Senhora da Saúde. A presença de Jesus, por estas paragens, estaria evidenciada nesta narrativa.

“Assim, chegou a uma cidade de Samaria, chamada Sicar, perto das terras que Jacó dera a seu filho José. Havia ali o poço de Jacó. Jesus, cansado da viagem, sentou-se à beira do poço. Isto se deu por volta do meio-dia. Nisso veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: “Dê-me um pouco de água”. (Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida.) A mulher samaritana lhe perguntou: “Como o senhor, sendo judeu, pede a mim, uma samaritana, água para beber?” (Pois os judeus não se dão bem com os samaritanos.) Jesus lhe respondeu: “Se você conhecesse o dom de Deus e quem está pedindo água, você lhe teria pedido e dele receberia água viva”. Disse a mulher: “O senhor não tem com que tirar água, e o poço é fundo. Onde pode conseguir essa água viva? Acaso o senhor é maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, do qual ele mesmo bebeu, bem como seus filhos e seu gado?” Jesus respondeu: “Quem beber desta água terá sede outra vez, mas quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Ao contrário a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna”. A mulher lhe disse: “Senhor, dê-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem precise voltar aqui para tirar água”. Jo 4, 5-15.”

Fabio Campos

ANÁSTACIA

Nem seria preciso dizer, o quanto é bom ouvir história contada pela mãe da gente. Lá na infância, ao pé da cama antes de dormir. Aquela época já o era. O tempo passou, eis que sentados lado a lado. Adulto no limiar da senilidade com muita serenidade. Outras histórias vir contar, não mais de trancoso, agora reais. Ainda mais prazerosas de ouvir. Olhando pra uma nesga de céu azul, através de uma área verde, que alumiava a sala de janta. Ela quis saber se já estávamos na quaresma. Confirmamos.

E passou a relatar o que contamos. Quando era menina, minha mãe sempre ia passar a quaresma no sítio. Alguns gêneros de primeira necessidade eram providenciados. Por volta de quarenta dias, a família ia pra velha casinha do Sítio Capim. Longe da cidade, iam pro retiro até que viesse a páscoa. Retornariam na semana Santa para acompanhar os ritos litúrgicos da igreja, a procissão do Senhor Morto, o santo Ofício com a Ladainha, a Missa do Lava-pés, a Via Sacra, a vigília do sábado da Aleluia. Os fiéis vivenciariam os sacramentos da Confissão, e da Penitência: do jejum, da oração, da caridade. A cor roxa no altar, nos paramentos do sacerdote, as imagens cobertas, tudo para lembrar o luto. Padre Moisés nos seus sermões lembraria aos fiéis que era tempo de renunciar a velhos hábitos. Diria pro sertanejo que a paixão, de nosso Senhor Jesus Cristo, significava tempo de renúncia. Tempo de pensar no sofrimento do redentor. Que tudo fez por nossa causa.

Meu avô Tomaz, era agricultor, pra complementar a renda, exercia a profissão de barbeiro. No verão, no meio da feira armava uma tolda, cortava cabelo, fazia barba, a maior parte da sua freguesia os matutos. No inverno ia pro sítio botar roça. No entanto, de inverno a verão, a vida era uma só, de tardezinha, depois da janta, ia pra porta de casa, pitava um cigarro de fumo picado. Depois, descia a rua, e na Pensão das Irmãs Ferreira, ia jogar baralho, até altas horas da madrugada. As irmãs Ferreira vieram de Pernambuco, tentar a sorte em Alagoas. Tinha freguesia seleta: a guarnição da polícia, o delegado, Seu Moreninho, o farmacêutico, os mascates vendedores de artefatos de couro, de calçados, e corda de caruá. Pela devoção que tinha ao padre Cícero do Juazeiro e a Frei Damião, na quaresma meu avô, suspendia o jogo de baralho, o aperitivo de antes das refeições. E não cortava cabelo, nem fazia barba pra ganho. Reduzir até que reduzia, porém não conseguia evitar o tabagismo. Sobre a confissão era radical, preferia ir até debaixo de um pé de juazeiro. Aonde ia confessar-se diretamente com Deus. Dizia que não precisava de intermediário pra confessar-se com Nosso Senhor.

Com o passar do tempo, meu avô resolveu abrir uma barbearia. Aproveitou um pequeno salão, anexo à casa de morada – bem ali, na Rua da Assembléia. Porque naquela Rua funcionava a Câmara Municipal – dividiu o espaço com outro barbeiro, chamado de Tibúrcio. Desde menina, e mesmo na juventude, minha mãe ostentava vastíssima cabeleira negra. Admirada pelas colegas e pela vizinhança. Diziam que tinha cabelo de índia, ainda mais pelo corte que meu avô lhe fazia. E proibiria severamente de cortá-lo, somente ele poderia, quando lhe aprouvesse aparar as pontas. Cortar jamais. Por essa época, aparava porque acreditava que a força da lua depois da páscoa faria aumentar de volume. Entre os dois amigos barbeiros, algumas coincidências minha mãe observou. Tibúrcio e Tomaz, os nomes dos dois começavam com “T”. Nas duas famílias haviam nascido inicialmente duas mulheres. Osvalinda e Aucantina, apelidada de “Tinô” na casa de Seu Tibúrcio. Dineusa e Maura na casa de Seu Tomaz. As esposas dos dois barbeiros ficariam grávidas, e tiveram ambas, filhos meninos. Rubens na casa de Seu Tibúrcio, e Dorival na casa de Seu Tomaz. Antes de partirem pro exílio quaresmal, algumas coisas iriam acontecer. Umas sérias, outras pitorescas.

Um dia antes de partirem, minha mãe foi encarregada de ir comprar pães. Afoita saiu de pés descalços, em desabalada carreira. Lá ia, pulando, dinheiro na mão. Como gostava de pão. Ao passar num imenso lajedo, no início da rua que ainda não tinha calçamento, teve a certeza de ter pisado numa cobra. De volta, buscou outro caminho temendo um reencontro com o réptil ofídio. Outro susto de idêntica monta, passaria ainda naquela mesma tarde. Ao chegar à porta de casa, meu avô vinha saindo com um sapo cururu na mão. Ora minha mãe sempre teve medo de sapos. Brincando, fez menção de atirar-lhe o batráquio. Não teve jeito, um grito horrendo estrondou pela rua, acabando por chamar a atenção de todos. Os policiais apreensivos saíram da delegacia. Dona Amância, minha avó, detestava escândalos, e reprovaria seriamente tal atitude de Seu Tomaz.

Na manhã do dia de partir pro sítio, por acaso Dona Amância descobriria que Seu Tomaz, andava de coito com uma quenga. Como descobriu? Foi assim: Dias antes, lá vinha minha vó, da roça, na cabeça um balaio, cheio de capucho de algodão e umas abóboras. A rameira, uma negra chamada de Anastácia, que morava naquela mesma rua. A sem-vergonha teve o atrevimento de pedir uma abóbora a minha vó. Sem saber do que ocorria lhe deu. De boca em boca o fuxico correu solto. Até chegar aos ouvidos de minha vó. A discussão foi feia. Nas raras ocasiões de desentendimento entre seus pais, minha mãe confidenciou que ficava muito triste. Seu Tomaz nada dizia, calava-lhe a consciência por estar errado. E dona Amância acabaria por cobrar-lhe: ”-O senhor trate de procurar o padre Moisés, se confesse de verdade! Pé de pau não perdoa pecado! Não quero um Judas dentro de casa.”

No exílio, minha vó revirando uma velha bolsa de tiracolo. Lá no fundo encontrou esta oração:

“Vemos que algum algoz fez da tua vida um martírio, violou tiranicamente a tua mocidade, vemos também no teu semblante macio, no teu rosto suave, tranquilo, a paz que os sofrimentos não conseguiram perturbar. Querida Anastácia: Eras pura, superior, tanto assim que Deus levou-te para as planuras do céu e deu-te o poder de fazeres curas, graças e milagres. Amada Anastácia, pedimos por…(aqui faz o pedido), roga por nós, proteja-nos, envolva-nos no teu manto de graça e com teu olhar bondoso, firme, penetrante, afasta de nós os males do mundo. Tudo que pedimos, pedimos por Nosso Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém.”

No verso da oração uma gravura com o rosto de Anastácia amordaçada, e uma breve biografia da mártir dos negros afro-descendentes. Considerada santa: “Da tribo dos Bantus, na longínqua África, foi trazida escrava. Por não possuir documento ganhou o nome de Anastácia. Negra, tão bela. Sua beleza causaria inveja as donzelas da corte. Quis saber que gosto tinha um torrão de açúcar, vista por um malvado feitor, que acusaria de ladra. Colocaram-lhe uma mordaça de couro que cobria a boca e parte do rosto. O filho de um fazendeiro caiu doente, e não tendo mais a quem recorrer, socorreu-lhe Anastácia, suas rezas e benzeduras, fez o rapaz ficar curado. Pelos castigos que sofria, nos ferimentos contraiu gangrena. Vindo a falecer desse mal. Teve direito a enterro de escravo alforriado.”

Aquele folheto estava agora em minhas mãos. Um dia fora da minha avó, que mal sabia ler. No entanto no fundo do coração, pediu a Deus, e a aquela santa que lhe desse paciência, e tirasse a aflição do seu coração, para que pudesse viver naquele ano, uma boa páscoa.

Fabio Campos

CAUPOLICAN – 1974

O menino estava dormindo, abriu os olhos. Nove letras pretas, do tipo bastão, sob um fundo branco. A palavra na lombada do livro: Geografia. Já conhecidas dele, outra vez apresentava-se pra sua retina. Deu-se conta que estava na sala de aula. Permaneceu com a cabeça apoiada na carteira. Um fio de baba escorrera molhando-lhe a bochecha. A professora continuava a aula. O ventilador de teto, preguiçosamente girava a hélice. Duas moscas sobre as cabeças esvoaçavam traçando parábolas no ar. Verão de 1972.

Apoiou a cabeça pondo o queixo por cima das mãos sobrepostas. No alto da parede, próximo a campainha, o quadro com o retrato do general Emílio Garrastazu Médici. A faixa presidencial, o brasão da república sobre o peito. E tudo ficou preto e branco. Terno preto, rosto branco. Moldura negra, fundo branco. Lousa negra, gizes brancos. Birô negro, relógio de parede branco. Blusa da farda e meias brancas. Sapatos e bolsa escolar pretos. O cabelo, todos da sala tinham-nos bem penteados. Untados e cortados ao estilo militar. Por que o chefe da nação brasileira se mostrava tão sério? Seu olhar inquiridor, como se perguntasse: o que mais vocês querem que de mim? Já criei o PIS, o BNH. Estamos construindo a hidrelétrica de Itaipu. Em breve entregarei a ponte Rio-Niterói. Já está em andamento os serviços de construção da rodovia Transamazônica que ligará Santarém a Cuiabá. Pra acabar com o analfabetismo criei o MOBRAL. Os universitários terão oportunidade de explorar o país através do Projeto Rondon.

Ah! Já sei o motivo da insatisfação, talvez seja porque coibi veementemente as manifestações nas universidades. Dissidentes políticos e guerrilhas, reprimidas com mão de ferro. Não me diga que é o Ato Institucional número 05, o motivo da insatisfação? Aceito qualquer crítica, podem dizer que sou radical, em não reconhecer a UNE, e o MST. Porém não me compare a governos extremamente ditadores, como o de meu colega Fidel, ou de meu amigo Pinochet. Muito menos com o que faz Anástasio Somoza na Nicarágua. Quero que saibam duma coisa, todo povo tem o governo que merece. Denúncia de torturas, morte e desaparecimento de presos políticos atribuídos ao nosso governo. Sobre isso, o que tenho a dizer: que, muito do que andam dizendo não é verdade. Assim como Pilatos dou-me o direito de perguntar: mas o que é a verdade?

Monocromática sala de aula. Sentados dois a dois permaneciam os meninos. O silêncio quebrado unicamente pela voz suavemente melodiosa da professora. Ah! Dona Vanda, tão bonita! Como se fora uma fada com sua varinha de condão, o cabelo num rabo de cavalo gracioso, balançava pra um lado e pro outro, toda vez que ela gesticulava, ou apontava a anotação na lousa. Espádua alvíssima, ornada por belo colar de contas brilhantes. Mesmo que não quisesse, confiscava os olhos dos infantes. Ó quão cheiroso colo, de inebriar pobres coraçõezinhos, toda vez que se debruçava para verificar as lições nos cadernos. Vestida num gracioso tubinho que lhe desenhava as curvas. Cruelmente acabava a alguns centímetros a cima dos joelhos. O costureiro, músculo da coxa, sempre requisitado. Flexionava-se retesando o direito, ao tempo que relaxava o esquerdo. Aquela boca, aqueles lábios, aqueles dentes. De repente só havia aquela boca. Os incisivos alvos, cintilantes, como tabletes de chicletes prontos para serem degustados. Indo preencher pupilas intumescidas. Cílios molhados como de alguém que acabara de chorar. A língua sorrateira deslizando por entre duas palavras, indo tocar o lábio superior, tornando discretamente umedecidos… Ai que boca! Que boca professora! Os lábios de baton vermelho carmim. E falava e falava, sobre astros, estrelas, satélites, os nove planetas que compunham o sistema solar. E do céu daquela boca, luas alvíssimas. Lindas e nuas. E o sol? Por que a professora tinha que trazer uma estrela de quinta grandeza pra sala de aula? Ofuscou, esbaforiu, com seu calor sufocante fazendo transpirar por todos os poros. E veio a sede, e a vontade de urinar, tudo ao mesmo tempo. Um jato de adrenalina irrigando entranhas, estonteante doçura. Sonolência.

Dona Vanda continuava e sua aula espacial foi atingida por um asteróide. Caupolican – 1974 teria sido descoberto em 1968, pelo astrônomo Carlos Torres. Achou por bem passar a falar de História: Quem teria sido Caupolican? Perguntou em voz alta. Abrindo um livro amarelado. respondeu ela mesma: “- Caupolican foi um líder indígena chileno, que lutou contra as invasões espanholas, de depois do descobrimento. Após grandes feitos foi preso. Em 1558, foi executado em praça pública por empolamento. Um tipo de morte cruenta onde o condenado era obrigado a sentar-se numa estaca. E sofrer hemorragia pelo reto até morrer.”

Através da janela o menino olhou pra lá fora, um mundo pavorosamente ameaçador se havia. Um céu grotesco. Donde um sol quase apagado, tingia as nuvens de Lilás. E aviões de guerra sobrevoavam, bombardeando as casas. Soldados corriam para se abrigar em trincheiras e barricadas. Não entendia porque a professora, diante de uma situação tão caótica ocorrendo lá fora, permanecia passivamente ministrando sua aula. Como se nada, absolutamente nada estivesse ocorrendo. Isso talvez porque, de lá fora, nada se ouvia. Nenhum som vinha de lá fora, apenas imagens. O que estaria acontecendo?

De repente Aldo, o menino, se deu conta que a professora não mais estava lá. Distraído, em olhar lá pra fora, nem percebeu que toda a turma evadira. Não havia mais professora, nem seus colegas, só ele. Apreensivamente só. Enquanto lá fora, a guerra. Não podia continuar ali, precisava saber pra onde todos tinham ido. E tinha só nove anos. O que um menino como ele poderia fazer em meio a uma guerra. Ao sair pro pátio, encontrou alguns dos seus colegas. Indiferentes a hecatombe ocorrendo logo ali brincavam, de bola de gude, pega-pega, nos balanços. Nem um pouco preocupados, com as bombas, e mísseis que caiam. E provocavam imensa destruição, pavor e morte. Só a alguns metros dali. Os meninos sorriam. E se movimentavam com em câmara lenta. Tudo parecia muito real, exceto por um motivo, não havia som, estrondo das bombas, nada. Só a imagem, desesperadamente lenta.

Outra vez, Aldo Felix acordou. Estava noutra sala de aula, havia penumbra, um data-show, exibia um vídeo. Em questão de segundos, quatro décadas haviam ficado para trás. Instintivamente tocou-se. Temeu se encontrar no corpo de um menino de nove anos, indefeso, assustado diante duma guerra. Professor Aldo, talvez vivesse realmente aquele conflito internamente, lá no fundo no mais íntimo do seu ser. Permanecia tomado de tão forte emoção, de tão presentes recordações. O vídeo que passava pra seus alunos, referia-se ao discurso de uma chefa de estado, cujo partido teria sofrido repressão no período ditatorial do regime militar. Uma presidenta, em cujo país em breve ia ocorrer uma Copa do Mundo. Dizia: “-O que querem que eu faça? Por favor! Não aceito, que venham comparar nosso governo, ao do meu amigo lá da ilha de Cuba.” Sonhos, todos eles devem ter um significado. Por Deus, também este haveria de ter.

O TESOURO PERDIDO

História de tesouro tem suas vantagens. A gente sempre vai quer saber, de onde vem, e no que vai dar. Pra isso, tivemos que ir a Porto da Rua, uma vila praieira, fundada na época do descobrimento. O vilarejo como que parado no tempo, tinha sua vida e história atrelada ao município de São Miguel dos Milagres, a quem sempre pertenceu. Acintosas construções seculares, sobre as placas sedimentares erguidas, dividiam espaço com rudimentares cabanas de pescadores. Tudo, tudo, que nos vinha naquele instante, irremediavelmente impregnado do cheiro de mar. E pra aonde quer que fosse a vista, os olhos haveriam de esbarrar no coqueiral. Com seus canelões encimados de buquês de palhas verdejantes. Sacudindo, pra lá e pra cá, maresia. Enquanto acenava pras espumas das ondas, que antes de morrer, beijavam com sofreguidão a areia da praia, do magnífico mar Atlântico.

São duas as versões de nossa história sobre o tesouro sumido. A primeira chegou-nos através da saudosa professora Durvalina Cunha Lima. Filha de família tradicional da cidade de Porto de Pedras, morava numa das casas mais bela da Rua Coronel Avelino Cunha. Nome de seu avô, um dos fundadores daquele lugar. A fachada era revestida de azulejos e cerâmicas em estilo lusitano. Um enorme portão de ferro pintado de branco acessava um pomar, com toda sorte de arbustiva. Cujos galhos mais audaciosos, debruçavam-se por cima do muro. De inverno a verão, a calçada ficava tinta de vermelho rubro, das pétalas de Acácias. E as carambolas maduras aguçavam os olfatos e paladares dos saguis, e dos meninos quando saía da Escola Municipal Professora Leonila Cunha Lima, logo ali.

Dona Durvalina, possibilitou dois locais para nossa conversa, no alpendre que ficava virado pro pomar, ou numa ante-sala. Donde dava pra ver, esplendor de decoração, diversos objetos antigos: armas, brasões de família, quadros, etc. no interior da casa. Optamos por este de cá. Naquela tarde prazerosa, ensolarada. Regada a chá verde e sequilhos fresquinhos, ouvimos atentamente a professora contar que, no ano de 1633, a Vila de Águas Belas, como então era chamada Porto de Pedras, era ocupada pelos portugueses. De onde provinha sua família, o que era evidente nas suas feições, na tez alvíssima, no sorriso largo, no jeito esmerado de falar, na entonação da voz. Tudo nela evidenciava sua origem luso-brasileira. Dizia que, no mês de maio daquele ano, a vila foi invadida pelos holandeses. A artilharia da esquadra, composta de dez naus, fez fogo sobre o povoado e conseguiu destruir diversas embarcações portuguesas ancoradas a lagamar. Os portugueses mantinham na foz do rio, quatro navios de defesa. Na desembocadura do rio Manguaba que acessava ao forte de Santo Antonio de Quatro Rios, a doze quilômetros dali. Hoje em dia chamada de cidade de Porto Calvo.

A população da vila tentou resistir com barricadas, sacos de areia na entrada do cais. Respondendo ao ataque com tiros de bacamartes bombardeio de canhões de médio porte. Porem o poder de fogo dos invasores era maior. Ao perceber que estavam perdidos, os moradores da vila atearam fogo nas próprias casas, e fugiram mata adentro. Um desses moradores, o bisavô de dona Durvalina, o senhor Joaquim Ferraz de Lima, era dono do engenho de cana, Mata Redonda. Conseguiu fugir com a família, mulher e três filhos pequenos. Com a ajuda de dois escravos, três mulas, e um cavalo, levou o que pode: arcas cheias de dobrões de ouro, muito dinheiro, e diamantes. Ao chegar à base de um rochedo banhado por um Arroio chamado de Patacho, se abrigaram. Afastando-se donde tinham se arranchado, Senhor Joaquim foi até a um local onde só ele ficou sabendo, enterrou os baús com os diamantes e os dobrões de ouro. De volta ao local onde deixou a família e os escravos, levantou acampamento, e partiram dali pro engenho. Muitos anos depois, Senhor Joaquim retornaria para resgatar seu valioso despojo. Acontece que já muito velho, e desorientado, o usineiro não conseguiu mais localizar os recursos enterrados. Vindo a falecer sem conseguir recuperar o tesouro. A família teria feito muitas expedições e escavações, porém sem nenhum sucesso.

A outra versão, também foi contada por outra professora, Dona Belmira Conceição Lins. Na verdade esta, foi a primeira história que ouvi sobre o tesouro perdido. Recordo de quando cheguei a Porto de Pedras para lecionar a alunos do ensino fundamental, no Grupo Escolar Ciridião Durval. À época, a escola era um prédio velho, carecido urgente duma reforma. Cheguei de ônibus vindo de Maceió. Por volta das três das tarde, desci bem em frente ao educandário. Trajado em calça jeans, camisa de meia, dirigi-me a Diretoria. Um crucifixo pendurado no pescoço, mochila às costas, e alpercatas de franciscano nos pés. Isso faria com que comentassem que um novo padre havia chegado à cidade. Dona Belmira era a solicitude em pessoa. Uma velha senhora negra. Pra mim, era como se materializasse ali na minha frente, uma personagem de um filme americano do Alabama ou Mississipi, dos anos 60. Depois de alguns meses já éramos tão amigos, que sempre que eu tinha um tempo disponível, ia até sua modesta casa na Avenida da Praia, em frente ao campinho de futebol. Sentados à porta olhando pro mar, conversávamos sobre tudo na vida. Dona Belmira tinha uma pequena biblioteca. Donde tive a oportunidade de ler toda a obra de Graciliano Ramos, pegando emprestado de seu acervo. Um dia, Dona Belmira deu-me de presente uma bíblia.

Era toda grande, de capa dura, de letras grandes. Com um detalhe, não era nova. Confidenciou-me que havia adquirido numa feira de livros, promovida pela escola. Não por acaso, encontrei no início do livro de Eclesiastes, um quadrado de folha de caderno. No pedaço de papel amarelado, de tão velho, tinha umas anotações escrita a bico de pena com tinta nanquim: “Cap. 01” vs, 04’-08’; Cap. 05” vs, 09’ – 14’ Joaquim Leão de Vasconcelos – 04 de maio de 1634. Engenho de Dentro.”

Dona Belmira relatou sua versão do tesouro escondido na floresta, nunca encontrado. Os fatos, apenas pareciam. Os usineiros homônimos possibilitava a confusão. No entanto os acontecimentos eram distintos, bem como os tesouros extraviados. Senhor Joaquim Leão, fugiu com a família, do vilarejo de Santo Antonio de Quatro Rios, que ficava ao lado do forte de igual nome. E foi se instalar com a família, nas imediações de Porto da Rua, fundou a usina do Engenho de Dentro. Com medo de ser pego pelos batavos, enterrou seu tesouro numa catacumba do cemitério da Vila de Nossa Senhora Mãe do Povo. Voltando muitos anos depois pra desenterrar. Porem tantos túmulos novos haviam, e os que já existiam, tinham passado por tantas reformas, que se tronou praticamente impossível encontrar o local exato. Dali por diante tornou-se comum, encontrar o velho Joaquim, altas horas da noite, andando a cavalo totalmente bêbado, despido. Indo pela estrada que levava ao cemitério da vila de Porto da Rua. Pra finalmente encontrarem seu corpo nu, jazido em decúbito dorsal sobre o túmulo do vigário Belo, no alto do Cruzeiro. Há quem diga que tinha visões com o padre que prometia lhe indicar onde o tesouro se encontrava, caso se arrependesse dos pecados. Segundo Dona Belmira aquela bíblia pertencera ao senhor Joaquim Leão.

E só por acaso, imaginei que aqueles capítulos e versículos do livro do Eclesiastes, poderiam ser algum tipo de coordenadas, que pudesse indicar onde estaria o tesouro perdido. Tantas covas contando do primeiro quadrante, na fileira número quatro, a oitava catacumba. Ou talvez dissesse apenas o que está lá no livro sagrado: “Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade!” “A vista não se farta de ver, o ouvido não se sacia de ouvir.” “Quem ama o dinheiro nunca se fartará. Quem ama a riqueza não tira dela proveito.” Ecl. 1-4; 5-9.

Fabio Campos