Tagor Fashall “O Crime” (1ª Parte)

Na rua que um dia existiu,meninos brincavam. Corriam em suas bicicletas. Na praça brincavam, e pressa não tinha. O céu de nuvens chuvosas, dizendo cinza, e vinham. O que do alto estava prometido pra vir,decerto viria. E, os sonhostodos dos homens. Muitos deles, jamais se concretizariam.E quando as coisas não davam certo como haviam sido planejadas, outras metas eram traçadas. Debaixo do calçamento das ruas, nos recônditos dos becos escuros. Alegrias que um dia alguém sonhouse escondiam. Brincadeiras de crianças, que bem fundo o mundo sepultou. Muito baixo dos paralelepípedos jaziam. Lá aonde as cigarras dormiam seus sonos letárgicos, a esperarema outra estação, e só então cantariam.

A Taberna ficava de esquina. Pelo menos dois séculos de distância separava a aldeia dos meninos das bicicletas. O balcão de madeira escura, com o tempo daquele jeito,ainda mais escura se fazia. Afaca e o queijo branco no prato. Uma taça de vinho tinto, não deixava dúvida, tudo estava lá. O candelabro pendido do teto. Um par de olhos verdes conseguia sentir aquele cheiro. O estampido da rolha tirado do gargalo tinha solene importância. Pulmões inalando, cérebro incendiando, com a chegadado líquido de cor púrpuraao estômago. Na primeira porta que dá pra rua, o homem com vestes de alguém que viera das arábias, se havia. Um turbante escondia a cabeleira valorizando ainda mais o vasto bigode. Uma adaga na faixa de pano da cintura.TagorFashall tinha um cavalo chamado Pompadour. O havia deixado com um cuidador, no estaleiro do cais do porto. Olhava fixo. Fosse o que fosse, olhava fixo.Aquele era olhar, de quem procurava. A aldeia de ÉtoleChavalier amanhecera com um habitante vivo, a menos. O pai de Emile Passiono ferreiro da aldeia, tinha sido morto. Uma semana antes MorionLucindorecebera a visita de seu sobrinho Rafael Bertrand, que teria ido buscar um elmo, a muito encomendado. Conversaram sobre uma herança de família. O jovem como tio confabulou sobre os papeis de um lote de terraspertencente a seus pais já falecidos. Porem não teve resposta a contento. O tio apenas contou-lhe uma história,na verdade uma fábula. O rapaz teria ido embora, e no outro dia o ferreiro estava morto. A presença de Tagor na aldeia por ser estrangeiro, levantou suspeita. Ainda mais porque também ele tinha estado na estribaria de MorionLucindo.

A fábula que o velho ferrageiro contou foi esta:“Meu querido sobrinho, de longe tenho acompanhado a vida que tu tens levado desde nascido até agora. Muito triste fiquei ao saber que ao adquirir a juventude abandonastes a vida do campo, em que vivia com seus pais, e teus outros dois irmãos. Fostes habitar um principado onde o luxo, as posses e a riqueza acima dos valores morais sempre foram colocados. Ali nunca se dera o valor que um homem realmente tem, ainda mais se somente virtudespor possetivesse. O que tenho a dizer-te sobre as terras pertencentes a teu pai, é o que um nômade árabe certo dia contou-me bem aqui sentado nesse banco, disse-me: Um velho lavrador tinha três filhos. Após ficar gravemente enfermo e sentindo que iria morrer, chamou os dois filhos que nunca o abandonara a cabeceira de sua cama, assim lhes falou: -Meus queridos filhos, sinto a morte rondando os meus dias. Teu irmão vaidoso que um dia partiu, nunca voltou. Jamais mandou notícia alguma,nem sei do seu paradeiro. Quero dizer que toda fortuna que possuo e que deixarei por herança a ser repartida em parte iguais, são estas terras que herdei dos meus pais,e que, espero continuem a cultivá-las. Quando vocês eram pequenos de muito longe, veio a mim, um mago que atendia pelo nome de TagorFashall disse-me quecom essas terrasteve um sonho. No seu sonho via, a dois pés de profundidade, em algum lugar que não soube determinar onde, havia um tesouro enterrado. Desde então pus-me a procurar. Não tive a sorte de encontra-lo, porem espero que vocês continuem cultivando porque o tesouro é encantado. E poderá surgir num lugar onde eu mesmo já devo até ter cavado, sem lograr êxito.”

TagorFashall queria muito entender porque o fato de olhar pra aquela senhora da sombrinha causava-lhe certa comoção. Talvez lhe trouxesse muito fortes recordações. Issosentia que lhes vinha. Aquela mulher de vestido longo, passeando na praça. Um penteado suntuoso que lembrava Pompadur. Debaixo duma sobrinha branca de belos bordados, tão graciosa. Enquanto ia o calendário andando pelo menos dois séculos para trás. E aquela tarde que até então parecia desarmada de graça, vindoa moça da sombrinha, mudou tudo. Três meninosiam andando de bicicleta. JoanaAntonieta nascera menina pobre, num bairro afastado da cidade, perto da igreja de Santo Eustáquio. Vivia-se uma das maiores crise de recessão, os governos indo a banca rota. Quebrados literalmente aumentavam os impostos. Os campos rurais também enfrentava uma de suas maiores crises climáticas e de desabastecimento. Senhora Luiza Madalena mãe de Antonieta viuvara, pra não morrer de fome,fugira do campo indo viver de bicos na periferia da cidade. A língua da rua falava de sua modesta casa, que virara casa de prostituição. Muitos homens, alguns influentes outros nem tanto, estariam ligados ao seu nome. O estilo de vida da madame não condizia com a presença duma criança carecendo de ser criada e educada nos princípios da fé cristã. E Joana Antonieta foi mandada para um ambiente mais saudável. Foi enviada para um Internato das Irmãs Ursulinas, a pouco mais de seis quilômetros da capital tida e conhecida como “Terra das Águas”. A menina por toda sua infância permaneceu lá. Devido a doenças a que tivera na primeira infância, também o fato de não ter sido amamentada tinha saúde que inspirava cuidados. Quando completou quinze anos de idade teve uma pneumonia que quase lhe tirou a vida, passou seis semanas de cama. Quando se recuperou, por direito, foi visitar sua mãe. Sua mãe ficou encantada ao ver em que havia se transformada sua pequena Antonieta. Uma moça de muito encanto, dotada de beleza incomum para as moças de sua época. O olhar sagaz, inteligente de quem entendia a vida, de quem já sofrera. Alguém de coragem e ambição não se deixar abater com qualquer derrota,inteligente o suficiente pra não se deixar enganar facilmente. Alguém que entendia e encarava o mundo como algo imprevisível, e perigoso.

Três meninos de bonés bufante, em sóbrias bicicletas negras, pedalavam na praça. Sobre selins de couro, suplantados em molas. Enormes guidões niquelados, abruptamente arqueados, pneumáticos de aros enormes. TagorFashallnoutra dimensãobuscava uma propriedade pertencente a seu tio, na verdade uma ilha. Estivera na vila para adquirir mantimento, conversar com pessoas quem sabe fazer amizades. Joane Antonieta sobre si,sentia o olhar daquele homem, e indo graciosamente ia. O intendente deu ordem a um guarda que levou intimação para que o árabe imediatamente comparecesse a cadeia pública. Depois de interrogatório acabou preso, acusado de suspeito de matar o ferreiro. Fashall até entendia que o fato de ser estrangeiro, e ter estado na estrebaria do ferreiro mesmo à muito tempo, colocava-o na condição de suspeito de assassinato. Não achava justo, no entanto, ser acusado de matar um homem a quem jamais vira, além do que, motivo algum teria para cometer tal crime. Acontece que Rafael Bertrand teve a ideia dum álibi perfeito,ao perceber o quanto o forasteiro tinha de semelhança física com ele. Algumas pessoas viram quando entrou na estrebaria. Horas depois, o ferreiro fora encontrado morto. ÉmilePassion a filha do ferreiro foi chamada para depor, e no seu depoimento confirmou que seu pai tinha, no dia do sinistro, recebido a visita de um rapaz com as características daquele homem. Tudo estava levando para a incriminação do árabe.

Eis que chegou o dia de seu julgamento. Em praça pública ocorriam julgamentos, e em caso de condenação,execução na mesma hora por enforcamento. Nesse dia compareceram o juiz da comarca, o sacerdote, e o intendente. O algoz com sua carapuça. E os meninos brincavamalheios aquele acontecimento até mesmo porque distavamdaquela época. Joane Antonietapediu a palavra. Inquiriu ao juiz se olhando para a praça conseguia vertrês meninos de veste engraçadas, andando em suas geringonças de ferro. Como resposta ouviu uma negativa. Acontece que Antonieta sabia que o juiz, assim como todo o público ali presente tinha aquela visão. O magistradomantinha um caso com a mulher do intendente. Os meninos mesmos, certa vez, viram quando o juiz entrara pela janela do jardim na calada da noite. Cuja sacada era guarnecida por um parreiral.E Joanequestionou ao magistrado: -Àqueles meninos a quem o meritíssimo doutor juiz de Direito, diz não estar enxergando, podem eles serem acusados de roubar uvas do parreiral do jardim do intendente? Se alguém não tiver visto tal crime ser cometido? Todos os presentes ficaram admirados do que viam e ouviam. O juiz entendeu que acabara de cair numa cilada. E não viu alternativa outra a não ser inocentar TagorFashall.

Fabio Campos 26 de maio de 2014 (Na próxima semana continua…)

27 Maio

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FENIX TELÚRICAS

Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

Três meninas se haviam na praça da igrejinha. Amanda, Jéssica e Veridiana. A um só tempo falavam, falas de meninas tenras. Dos poucos mais de dois lustros de vida confabulavam. De como umas as outras, achavam que estavam ficando, feias, deformadas. E que logo, logo, de tanto caírem-lhes os cabelos ficariam carecas. Do ódio às espinhas que mesmo sem terem sido chamadas se lhes vinham. Dos esmaltes da mamãe que roídos descascavam. Do devotado amor ao chocolate. E de meninos chatos que só queriam saber de futebol. Tudo que emitisse algum reflexo, às suas voltas, acabava virando espelho. E o que mais entendiam era que todas as coisas do mundo deviam render graças as suas existências.

“Eu fui no Itororó beber água e não achei

Achei bela morena que no Itororó deixei”

Amanda tinha medo de borboletas. Melhor dizendo, verdadeira fobia a todo e qualquer isento alado. Outro dia, quer dizer, outra noite, em que faltou energia elétrica, quase provocou um incêndio em casa. Atraída pela luz duma vela, uma Betularia negra, uma bela duma mariposa, enfiou-se quarto à dentro. Foi um deus-nos-acuda. Ficou tudo revirado, lençol e colchão chamuscado, e o cheiro de pano queimado permaneceu por um bom tempo. Tinha mania de colecionar coisas, chaveiros, grampos de cabelo, fitinhas de pulso. No último aniversário ganhara um par de pantufas que imitava o rosto duma tartaruga, o que já rendera bela discussão com Jéssica que teimava que era o rosto dum sapo. Num diário escrevia coisas, que a ninguém mais além dela própria era capaz de revelar. De como queria que seu quarto tivesse uma janela enorme, que desse pra ver a rua. E quando viesse o inverno pudesse ver as nuvens despencando do céu. E como queria correr na chuva, só de calcinha. De como às vezes desejaria ser um daqueles meninos pobres, que ficavam o dia todo na rua, e quando chovia como naquele maio, ficavam brincando na sarjeta. Acompanhando a fantástica viajem de seus barquinhos de papel, vencendo o aguaceiro até a bueira no fim da ladeira. E doidos desembocavam no rio, dando adeus a seus donos. Pra debaixo das bicas corriam, a receberem o forte jato que lhes feriam a cabeça, quase a despi-los dos seus trapos. Ficava pensando quem cuidaria deles depois dali. Quem lhes enxugariam os corpinhos magros. Quem lhes envolveriam em lençóis, e lhes serviriam biscoito e uma xícara de leite quentinho. E já bastante fatigados deitariam numa cama conciliariam o sono e sonhariam sonhos onde podiam voar sobre um mar bonito. Voando rumo ao horizonte, a encontrar Peter Pan, na terra do nunca. Suas mães a beira do fogo de certo cantariam cantigas antigas, que falava de bois da cara preta, de pavão em cima do telhado, de ir à Espanha. Enquanto o bule fumegante deitaria um líquido aromático, numa xícara branquinha de dar dó.

“Fui à Espanha buscar meu Chapéu

Azul e branco da cor daquele Céu

Olha palma, palma, palma. Olha pé, pé, pé

Olha roda, roda, roda caranguejo Peixe é.”

Ana Jéssica gostava mesmo de ouvir música de rock’n roll. De ouvir coisas do passado, de fotos antigas. Influência do pai, que era fã dos Beatles, tinha uma guitarra e uma réplica duma Halley Davison. Nos finais de semana, ia a encontros de motoqueiros muito, muito longe, e nunca a levava. Sempre deixada na chácara do tio Armando, ou no sítio de vô Rosalvo e vó Isabel. Preferia a guarda dos avós, ali os abusos eram mais tolerados. Sempre voltava de lá com uma relíquia, tirada dum velho baú de maçaranduba, enlaçado por dois cintos de couro curtido e ensebado. Da última vez ganhou um broche dourado pertencente ao seu bisavô, condecorado por ocasião do sesquicentenário da independência em Brasília. Trazia as efígies, dum lado Bento Gonçalves do outro Anita Garibaldi. Com muito orgulho exibiria entre os colegas da escola, a honra ao mérito do pai de seu avô coronel Idelbrando Costa Rêgo que havia lutado na revolução Farroupilha. De tardinha dava sempre um jeito de assaltar a dispensa, com direito a rapadura batida, mel de mandaçaia, frutas cristalizadas. E tinham os passeios a cavalo quase sempre sem hora pra acabar. Dentre as três meninas, era ela a que mais se preocupava com a aparência. Ainda mais por ser rechonchuda. Brigava com a balança, com os meninos que lhe apelidavam, e com as roupas que iam cada vez mais ficando apertadas. Esse incômodo compensava sendo ainda mais extravagante. Caprichava na maquiagem, no uso de bolsas, colares, pulseiras, cílios postiços e penteados estrambólicos. Gostava do jeito escrachado de Elis Regina. Outro dia, ao sair da escola se inventou de passear na garupa da lambreta de seu primo Plínio, em plena rua acabaram caindo os dois. O que lhes renderia um braço quebrado uma perna luxada. Duas semanas encima duma cama, sem sair de casa. Vieram visitá-la os primos, tias, e a turma da escola. Todos assinariam os nomes no cano de gesso.

“Passarás passarás um delas a de ficar

Se não for a da frente a de ser a de detrás

De detrás de detrás

Tenho dois filhos pequeninos

Não posso mais demorar, demorar, demorar”

Veridiana queria ser guerrilheira das tropas Somozista na Nicarágua. Um dia ainda conheceria aquele mundo mostrado na revista National Geographic. Desbravaria sertões, florestas. Escalaria montanhas, encontraria uma cachoeira, ou quem sabe uma caverna, nunca dantes visitada pela civilização, a qual daria seu nome. Apaixonada por tudo que lembrava natureza. A irmã mais velha Suzy Morgana sua fonte de inspiração era bióloga. Imitava-a nos modos de vestir e pentear-se. Até nos trejeitos das mãos, da entonação da voz. Vez outra levava uns sopapos, por pegar, sem autorização, coisas emprestado, sutiãs, batons, perfumes, aos quais jamais devolveria. Pela fresta da fechadura da porta contígua a sala de estar gostava de espionar o namoro da irmã. No espelho do toucador borrava todo de baton a ensaiar beijos que um dia daria no namorado que um dia teria. Várias vezes viu os namorados trocando carícias viu quando fumavam escondido, e abanavam a fumaça pra rua. Enchiam a boca de chicletes se percebiam que vinha alguém. As guimbas enfiavam na caqueira de samambaias e avencas. Veridiana guardaria ainda um trunfo que usaria para chantagear a irmã, viu-a livrar-se dum monte de comprimidos anticoncepcional enterrando-os no estrume dum pé de Crote. Dias depois sua mãe, elogiava de como vistosa e revigorada estava a planta.

“Minha gatinha parda

Com certeza que sumiu

Onde está minha gatinha

Você, sabe? Você sabe? Você viu?”

Três meninas, sentadas nas poltronas de veludo azul do salão paroquial. Cochilavam umas encostadas nas outras. A noite, haviam passado em claro. No velório do vô Rosalvo. Porque tivera que morrer justo na semana dos ensaios das apresentações, pelo dia das mães na escola. Amanda e Veridiana viram Jéssica voltar do banheiro chorando. Buscou o colo da mãe. Pensaram que era ainda comoção pelo avô, na verdade naquela manhã foi pro banheiro menina e voltou moça. As mãos alvas de sua mãe seguravam um buquê de flores, os dedos longos as unhas pareciam pétalas afagaram os cabelos da menina-moça. Arqueou a boca que dali a pouco beijaria o rosto gélido do pai. Boca com gosto de café requentado. Boca de toda manhãzinha mastigar pão de queijo antes de levar Jéssica a escola. Boca de gritar que meio dia não era hora de tomar sorvete, pois não teria fome pro almoço. Boca de rezar Ave-Marias apressadas para a filha e as amigas da sua filha. Nunca conseguindo terminar. As últimas palavras vindo morrer nos lábios quando já estava deitada. Antes de dormir Veridiana olhava fixo pra bailarina de porcelana sobre o criado mudo, sob a luz do abajur. Jéssica abraçada seu gatinho de pelúcia se sentia tão mais protegida. Amanda deitada, ainda de olhos aberto, olhava através de sua imensa janela imaginária e via um céu de maio. Repleto de nuvens carregadas, dali a pouco ia chover. E no meio da praça três meninos, andando de bicicleta.

Fabio Campos 18 de maio de 2015

20 Maio

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O ROUXINOL,A COTOVIA

Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

Três pés de coqueiros lá longe. Meio caminho andado do horizonte. Um cachorro beirando a estrada, vindo. Um cavalo comendo capim, tão próximo dava pra ouvir a respiração. “-Vô, cavalo é menino ou menina?” “-Este de cá é menino. Aquele é menina.” Um homem de chapéu de palha uma corda na mão. Alto, esguio,de tudo se apossou, da estrada, da história, do cavalo que comia.

No alto do morro um castelo todo branco,abrigava sonhos. A entrada ficava do outro lado. De cá dava somente pra ver as janelinhas, que olhavam. Um caminho velho de terra, antigachegava chorar de tristeza. Outro homem triste de longa barba e olhos de por medo, vinha. A muito tempo vinha, e ia. Já perdera a conta das vezes que vinha e ia. Uma vida inteira indo e vindo. Uma morte inteira, indo e vindo. Onde estaria Justino? Também um dia tornara-se dono daquela estrada, sendo parte da história daquele bairro afastado. Ninguém mais entre os viventes sabia disso. Muito tempo se passara.Meu Deus, e Firmino? Onde estaria? Os novos moradores jamais buscaram conhecer o que havia ocorrido, no passado. Sabiam apenas que Firmino era pai de Maria de Lourdes, que tinha vitiligo. E esta, era mãe de André, Andreia e Melissa que não tinham a doença. Noutro dia dois moleques acuaram Firmino no ermo da estrada, e roubaram-lhe os pertences, uma velha carteira de couro um canivete, cabo de madrepérola,de tanta estima. Carteira e documentos, jogados à beira da estradanoutro dia a neta Andreia encontraria.O canivete nunca mais. Tinha ido ao banco sacar o dinheiro mensal da aposentadoria. Venceram-se as contas de água e luz. Nada pode dar no mercado. Meu Deus que mês difícil de varar! Na rua dos homens,viera um que estava embriagado. Era sábado e vinha da feira, nada nas mãos. Ficou paradono meio da rua. Feito estátua balançando, preste a desabar, gesticulava,ao vento dizia. Como quem conversava a um interlocutor invisível, inexistente para quem apreciava. Na verdade um velho amigo. O vigilante noturno em plena tardeapareceu, na porta da casa do irmão. Chegou numa motocicleta vermelho cromada, afrontou o azul do céu, de nuvens brancas sucumbidas por outras cinzastúrgidas de água.A casa do irmão também vigilante.Havia sido morto num outro dia de sábado. Era noite, e vigiava o posto de gasolina. Recebeu dois tiros pelas costas. O sangue no calçamento da cor da luz da ambulância ainda que muda, gritava em vermelho. Nem tudo que estava lá era mentira. E se fosse, seria uma mentira diferente. Assim disse Thomas.

Pelo menos três crimes haviam ocorrido naquele mesmo lugar. O vigilante noturno, odono do posto de gasolina, um motorista de carro de aluguel. Infelizmente, nenhum dos três jamais fora justiçado. Na época, a lua ensanguentada disse lágrimas. Ficou querendo se esconder atrás dumaspoucasmanchas escuras, quando viu que não tinha jeito, se obrigou a assumir toda formosura.E vieram outras tardes. O homem da motocicleta ficou na varanda da casa do irmão, esperando que aparecesse alguém pra conversar. Toda tarde ia lá, desde quando ainda estava nesse mundo. Continuou indo depois do ocorrido. Queixo apoiado sobre os braços cruzados sobre o balaústre da casinha singela, esmeradamente pintada de verde. O próprio dono a pintara. Casa de uma única janela, como nos contos de conto de fadas. Pra varrer a poeira e as folhas secas trazidas pelo vento,aparecia a cunhada. Lenço amarrado na cabeça. Com a vassoura tangeu ciscos, e o espírito.

E tinha a louca. A mulher que perdera a lucidez. Em idade avançada à sensatez perdera. Alguns diziam que eram males de família, outros que estaria possuída. Na verdade talvez se sentisse perseguida, odiada, injustiçada. Por todos e por tudo era onde residia o incomum. Imprecações ditadas ao vento contra todos.O próprio vento inimigo mortal se tornaria. Tratamento a base de psicotrópicos, pouco adiantaria. Ao contrário piorara até. As cenas do rio com muita nitidezviriam, não sendo nada bom rever. O rio havia se tornandoameaça. Afilha do rio ameaça ainda mais forte se tornara. Eliminá-los tarefa nada fácil. A mãe, pobre mãe,sofria sem nada poder fazer, a não ser morrer.O que aos lunáticos estaria de bom tamanho. Os irmãos se vivos estivessem jamais podiam admitir aquilo. Nada, nem ninguém jamais poderia ser empecilho na vida de quem quer que fosse. Ninguém precisava morrer pra que todos fossem felizes. Que outros planos não revelados totalmente, ainda mais escusos haveriam por trás de tudo aquilo? Naqueles outros planos talvez não se admitisseretrocesso. Voltar a viver na casa paterna era retrocesso. O mundo crudelíssimo carecendo o tempo todo de significados plausíveis. Viver infelizmente era algo que necessitava de significados. Com mil diabos! Nada fazia sentido naquele momento! Deus devia ser um cara de muito péssimo humor. Era o que pensava naquele instante. Primeiro fazia as pessoas avançarem e depois tinham que recuar. Depois de tantos avanços! Voltar séculos de suas miseráveis vidas em torno de um alguém que evidentemente não mais fazia o menor sentido. Preciosíssimos momentos infelizmente seriamperdidos.

O anjo negro sempre presente. Não aparecia, ninguém via, mas estava lá. Aconselhando sempre pro mal, como se fosse pro bem. E os dias molhadostanta falta fazia. O outro avô de Thomas chamava-se Tomaz. Todo dia ia pra roça, um homem pacato, feliz pela vida que sempre vivera. Realizado pelo que construíra. Filhos, roça, a barbearia,a gaita no cair da tarde. Um cigarro pitadodepois das refeições. O que mais poderia almejar. A outra vó na sua altivez nunca se escusava de dizer o que não lhe agradava. Sempre sublinhava: “-Pra mim, isso não se cria.”também “-Não vejo graça nisso.”Tantas vezes ouvira dizê-las. Não concordava com o jogo de baralho detodas as noites que vô Tomaz inventava. Mais ainda nos finais de semana. Sempre na casa das meninas. Das bandas de Pernambuco vindas. Na língua da ruatão faladas coitadas. Final de rua, donde a lua sorridente, no começo da noite vinha. Alta madrugada retornava a casa. Por outro lado, não concordava elecom o compadre, que toda noite pra cozinha da comadreindo, prosear até altas horas.Pouco se importando com a ausência do compadre.Naturalmente discutiriam a respeito. No calor da discussão foi chamado de idiota. Questionou que ninguém merecia por tal nome ser chamado. A própriabíblia condenava. Quando isso acontecia ia dormir numa camarinha de vara, coberta com um tecido de linho que pegara seu cheiro. Outro ia deitar alipra sentir sua presença. Coisas de muitos anos passados, vindo. Ditados que nunca mais ouvira repetir: “-Meu Deus do céu, quem morre deixa o chapéu.” E realmente deixou. De massa, era preto. Todo domingo levava pra missa. As enormes pilastras laterais da nave central,coalhadas ficavam de chapéus. Todos já se foram. Os chapéus ficaram.

A Cotovia. A avó que Thomas jamais conhecera todas as manhãs lhes vinha. Do mesmo jeito que ia pra roça, na estrada que era dela. Estrada que ia construindo todo dia. Cantando cantiga de lembrar passado. No limiar de cada manhã vinha. Ainda Thomas se preparava pra ir pra escola. E lhes vinha a Cotovia. Através da janela Thomas via a ave cantando, sobre um dos fios de telefone cantando. Juliana lhe dando banho, perfumando, colocando-lhe a farda.Ao descer as escadas do apartamento dizia: “-Mãe aquela passarinha gosta muito de mim.” Juliana concordava “-Está bem Thomas ele gosta.” “-Não é ele mãe é ela! Éum passarinho menina!”

O Rouxinol. O avô que Thomas nuncaconhecera, embora todas as noites lheviessem. Na antiga fotografia jubilada, que pena alguns daqueles se tornarammaus. Do mesmo jeito que ia, no meio da rua dos homens vinha. Pra casa de jogo das meninas,vindas das bandas de Pernambuco. E punha a cantar seu canto que ia até a janela do seu quarto. E era um canto que desejava que ele fosse muito feliz. Não era pra ser um canto triste, mas acabava sendo.Três pés de coqueiros que de noite dava pra ver só a silhueta. Estavam lá ornando o imenso jardim da universidade. Até vir o raiar do dia e o canto da cotovia permaneceria lá.

Fabio Campos, 11 de maio de 2015

08 Maio

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A CORUJA, O CONDOR

Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

As coisas todas do mundorevolveram a maio de 1976. Em recordações viera quase tudo daquele tempo. Ainda que já houvesseDeus concedido às cores as coisas todas. Relembrar o passado, mecanicamente, só se podia em preto e branco. Apenas a natureza,e os olhos, conseguiam perceber tudo como realmente era. Sonhar, as noivas podiam. Inclusive com buquês de flores, de rosas vermelhas que levariam consigo. Talvez com os dias contados estivesse otão esperado dia de casar. Feijão e milho na roça, se acordando. Debaixo do sol, se espreguiçando. Se preparando pra abençoada colheita. Aos trabalhadores, o primeiro dia daquele mêsdedicado garantindo-lhes o sábado de descanso. Também os negros, no décimo terceiro dia, uma quinta-feira, outra vez eram libertos. As mães, no domingo, ganhariam presentes. O calendário sorria. A folhinha do coração de Jesus falaria de sabiás, de beija-flores,de bem-ti-vis, da Santíssima Virgem e a aparição de Fátima. Dúvida não havia, era maio. Mesmo que tudo estivesse em preto e branco, era maio de 76.

“Ao ver passar no céu as andorinhas

Eu sinto saudade do meu bem

Que talvez me espera

E também desespera”

A manhãzinha vinha que vinha, rodeada de mato. Permeada de veredas, e estrada,enquanto aguardava o sol, que ao chegar tudo expondo a se esquentar. Bem devagarinhoafastaria o terral, e o céu noturno. Fazendo ir-se embora negro frio,da cor de escuro. Tonico era apenas um menino, ao pé da estrada. Se tivesseno que pensar pensaria num céuazul e branco,da cor de sua farda. E no seu céu particular poria umpomar, uma jaqueira, pião, estilingue, passarinho voando pro mato, açude com água por cima. Eo campinho da propriedade de Seu Doroteu, onde mais tarde se encontraria com os amigos, jogaria bola. Roncando na estrada de barro, a camioneta de Seu Antônio vinha que era vindo. Do sítio pra Vila todo dia, ia e vinha. Mansamente desencostando-se da estaca Tonico esticava o braço. Solícito o automóvel parava. A carona detodos os dias, na idapra escola rural do Sítio Santo Amaro, de manhã. Manhãs de estudo. Mais tarde, tarde de trabalho os campos lhe aguardavam. Seolhasse pra casa de Rute, encontraria Seu Irineu sentado no alpendre, olhando com olhar de quem pensa, bem lá no ponto exato onde o mundo aqui do chão, se encontrava com as nuvens lá do céu.E o canto de estalo do pintassilgo, iaque ia longe. Vadiando pelo oitão da tapera, indo amarelar o gomoso cheiro do fruto da carambola, admoestados pelas melipondias. Aquela altura Seu Irineujá havia trazido água pros cochos do curral. Água sofrida, água chorada, água de canto, de carro de boi cantador. Benfazeja colhidados tanques do lajedo chamados de caldeirões. Cedo ainda ia o dia, e tudo já estava quente pegando fogo. O gado, cabisbaixomansamente catando verde verdinhomato, relva de maio. A menina na janela, da casinha velha encostada ao pé do lajedo, era Elisabete. Olhava o que já estava enfastiada de ver, céu bonito, mato, roça e serra. Farta daquela voz fazia de conta que não ouvia dona Gersina lá na cozinha. Falando do que as meninas de sua época brincavam antigamente. A dizerque seu pai costumava, ir lá nomato, tirava uns galhos de catingueira. E fazia móveis pra ela brincar, cadeirinhas, mesinha, uma caminha. Os pratinhos, os talheres e a chaleira, de barro de louça. Essesela mesma fazia. A boneca uma calunga de pano. E sempre ao cair da tarde, depois de lavado os pratos, estendidaasroupas no varal e varrida a casa. Com as amigas, ia pra debaixo duma baraúna,brincar de boneca. Hoje em dia o que pensam essas meninas, em namorar e se formar nas escolas da cidade.

“Passarás passarás/ uma delas há de ficar

Se não for a da frente/ há de ser a de detrás

De detrás, de detrás.

Tenho meus filhos pequeninos/ não posso mais demorar

Demorar, demorar”

Eo que parecianormal, já não o era tanto assim. Talvez maio já não fosse mais. O estado de guerra vivido no Vietnã em nada, ou quase nadainterferia paraos que viviam no sertão. Em nada influindo para que se tornasse nem mais, nem menos triste. Continuava a mesma vida, entre os de cá, ou ao menos uma perspicaz tentativapela permanência do que havia. Enquanto isso o agricultor pensava: “-Quem será que inventoua ‘tá’Festa do Feijão?”E lá do outro lado do mundo a OPEP, a OLP de Yasser Arafat, o estado islâmico de Aiatollah Khomeini,longe estavam de por fim a crise noOriente Médio. E o sertão ainda era o mesmo,silencioso, macambúzio. De que modo coisas outras que ocorriam mundo a fora poderia nos afetar? Explicar isso era tarefa para o professor lá na sala de aula. Papa Pio VI, semblante sereno no jornalestampado, de lá da janela do Vaticano pedindo paz ao mundo! Na cozinha dona Boninha, com um lenço amarado na cabeça, a beira do fogo, punha vigília ao bule que dali a poucoliquidamente verteria seu conteúdo negro no oco branquinho duma xícara em cima da mesa, forrada com forro de xadrez e franja verde esmeradamente bordada. A porção Gaseificada da infusão indo,a excitar narinas e cérebros, evocar outros desejos. E dona Quitéria, irmã de dona Boninha escutava o rádio de móvel. Emesmo sem olhar pro louro atrepado no poleiro perguntava: “-Tu sabe o que é bomba atômica “meu” louro?”Esticandoe encolhendo o pescoço várias vezes, o papagaio respondia: “-Avé, Avé, Avé Maria!” E os meninos instigavam “meu” louro a dizer a reza inteirinha e sorriam dele. Depois corriam lá pro terreiro a brincar. E pediam pra Seu Severino destampar o enorme tacho de fazer sabão, fervendo, fumegante. E queriam saber porque de vez em quandoera destampado e mexido com uma enorme colher de pau, que mais parecia um remo. Dona Berenice a vizinha chegava trazendo massa puba e nostalgia. E dizia que não lhe perguntassem porque, mas toda vez que comia tapioca com coco bem quentinha, se lembrava do presidente Jango,de sua morte inesperada. E repartia a dúvida: Como teria sido o enterro? Certeza que teria sido muito bonito. Dona Quitéria emendaria que a ela, era o cuscuz amarelinho, cheirando no cuscuzeiro que lembrava-lhe Juscelino Kubstchek. Ó tãotrágico acidente que lhe tirara a vida!Teria sido um atentado? Quem porventura desejaria ver morto um homem tão bom? O acender ocachimbo lembrava a Seu Severino, Getúlio Vargas. E jamais esqueceria que durante o estado novo mandara queimar sacas e mais sacas de café, somente pro “pretinhoabençoado”, das mesas do povo brasileiro, subisse de preço.

“Como poderei viver/ como poderei viver

Como pode um peixe vivo/ viver fora d’água fria

Como poderei viver/ como poderei viver

Sem a sua sem a sua/ sem a sua companhia

Dona Tereza a mãe de Tonico dizia em tom de seriedade que aqueles meninos não tinham ideia do valor que era abrir a torneira e ver a água jorrando da mangueira no capim verdinho do jardim. E o sol brincado com as gotas flutuantes daria de fazer um arco-íris particular pros netos de Seu Libônio. Algumas vezes era vista chorando realizando o simples gesto de lavar as mãos. Seu Fernando já morrera, na verdade todas as pessoas daquele maio já morreram. Ainda que vivessem eram outras pessoas agora. Com outros pensamentos, valorando outras coisas que nem existiam mais naquele maio. Bom seria se tivessem vivido o suficiente pra dizer como era. Quem sabe onde estaria o ator daquele velho filme, tão jovem na trama? Já envelhecido em 76. Os filhos se envolveram com drogas, casaram e agora eram avós. Usara tanta LSD porque na Califórnia era liberado até 1977. O vô de Tonico Seu Guilherme, era de maio. No seu aniversário gostava de tomar um bom uísque ouvindo Elvis, e fazia o Long Play repetir várias vezes a música “It’sNoworNever”. Ao cair da tarde, Tonico e Elizabete no domingo iam à matinê. O filme estava tão sem graça que acabaria adormecendo. Depois iam tomar sorvete na sorveteria Maringá. Punha um pouco de guaraná no creme e ficava olhando a taça quase com a sublimação transbordar. Cadeiras e mesas de fórmica com madeira e ferro, o piso num mosaico estampado formado figuras geométricas, na propaganda de Coca-Cola a garotinha loira sorria um sorriso efusivamente americano.

“It’s now or never

Come hold me tight

Kiss me my Darling

Be mine tonight

Tomorrow will be too late,

It’s now or never

My love won’t wait”

Era uma vez uma coruja, e um condor. Não simples aves, como já as concebemos. Muito menos protagonistas de fábula de Cristian Hansen. A coruja de que falamos veio vindo sorrateira pousar sobre a bandeira dos “Iluminados”. Uma ordem fundada em Baviera,no dia primeiro de maio de 1776. Isso aconteceu na famosa noite de Santa Valburga. Um grupo de jovens de idade semelhante a de Tonico e Elisabete inflamados por um ideal revolucionário pretenderam mostrar ao mundo que pela forçaduma ideologia poderiam mudar o destino da humanidade. Dois séculos depoisTal sociedade secreta aportouno Brasil. Nestas paragens seria representado pela figura doutro pássaro, o Condor. As asas do tempo recrudesceram. Jango, J.K. eCarlos Lacerda, três ferrenhos oposicionista ao regime militar intrigantemente em menos de um anomorreriam de forma trágica. Sendo o último, justo no mês de maio. Em 21 de maio de 1977 para ser mais exato.

Fabio Campos 05 de maio de 2015

Juvenal e Soberano

Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

Juvenal era assim, um homem montado a cavalo. Porque tem pessoas, que nos vem. E lembramos pelo que faziam no mais da vida. Deles que nem sabemos se entre os viventes ainda habita. Outras coisas mais acabam vindo, de como se trajava, os ambientes que gostava de frequentar. Chegam-nos por fim, o caráter, a personalidade, os trejeitos. Se a muito não vemos, remetemo-nos irremediável, a uma imagem concebida. Nosso personagem era assim por se dizer, uma pessoa difícil. Nesse lastro de mundo, que Deus fez pra ajuntar miséria, chamado de sertão, quando se falava duma pessoa feito Juvenal, não raro, as pessoas se benziam. E com os nós dos dedos batiam na madeira, volvendo ao santo de devoção, um pedido, para que longe de si mantivesse o que tinha vindo em pensamento.

Quando isso, porém não era possível, então diriam: “Quanto mais eu rezo mais assombração me aparece.” E lá estava Juvenal montado no seu cavalo. Certeza tinham os que viam, não se tratava de nenhuma visão do outro mundo. Cavalo e cavaleiro, tudo muito real. Aliás, real demais. O bodum exalado, a capa de poeira volvida sobre si, o toque-toque dos cascos do equino, arrancando lascas do terreno de cascalho. Por mais que nunca tenham consciência disso, o que estar montado exerce empatia de imponência, de respeito, sobre os que não montam. Sendo que animais e seus donos possuem certa simbiose. Como se um ao outro entendessem o pensamento. Rastros de identidade no caráter e mesmo de semelhanças físicas se percebia. Nas crinas longa e negra, nas canelas finas, ao tempo, rijos músculos, bronzeados de sol. Suor e urina acidificando o couro, os pelos, os apetrechos de um, as vestimentas do outro. Num trote preguiçoso porque não havia necessidade de marcha mais desarnada, não naquele momento. Se lhes perguntasse não saberia dizer, de certeza, porque seguia. Acompanhava o cortejo da via sacra, em plena sexta-feira santa. A encenação da paixão de Cristo. Numa frieza quase desumana, como um ser doutro planeta. Como se os passos sofrido de Jesus, ainda que numa encenação, causasse a menor estranheza. Um dos centuriões de Pilatos que ia de largo, evitando que o cavalo pisasse alguém da multidão sequer lembrava. Aqueles ao menos demonstravam ira, escarneciam. Não era apenas a certeza de que tudo era de mentira, que um nada de sentimento esboçava. Interessava-lhe entender porque as pessoas faziam caras de pena, diante daquelas cenas sabidamente simuladas. Se não sofria de verdade, não entendia. Uma coisa ninguém sabia, Juvenal tinha visões.

Dom Quixote de La Mancha. Era isso! Talvez estivéssemos ali, em pleno sertão nordestino, diante do herói, anti-herói de Cervantes. Dom Quixote e seu cavalo Rocinante, vivendo suas peripécias em plena selva branca. Seu fiel escudeiro Sancho Pança, não sendo de carne e osso, um fantasma, com quem conversava a todo tempo. O homúnculo do burrico, na verdade seu subconsciente, a que suas atitudes, ora aconselhava, ora recriminava. Não saber ler Juvenal, compensava com uma memória prodigiosa. Se ia pra feira da Vila, ficava horas a ouvir os vendedores de livretos de cordel, e as incríveis narrativas das aventuras, de Davi e Golias, Sansão e Dalila. Do príncipe Romuldo, a loba Rosadina, e a princesa Teodora. Ouvia e memorizava verso por verso, uma vez retornado pra sua casinha nuns cafundós onde Judas esquecera as botas. Ao cair da noite, hora de namorar a lua, de tomar banho de estrelas, coroava tais momentos repetindo com precisão fidedigna para os seus, as histórias ouvida dos mercadores de palavras cantadas. Aragão e Catalunha, pra nós, eram os povoados de Piau e Caboclo. As incursões do nosso personagem tinham por cenário o vaso da Catarina, as margens do “velho Chico” na parte cheia de “Canyos”. Juvenal dedicava particular atenção aos modos das pessoas, interessava-lhe o comportamento humano. Fascinava entender particularmente, a raiva, o rancor, o ódio. Que dor doía mais, a dor física ou a do coração? Curiava saber por que ele nunca sentira tais coisas? Não porque não quisesse, queria até mesmo um dia sentir. Já se envolvera em brigas. Acabaria tornando-se assassino por conta de uma. Num dia de feira que tirou pra beber, dentro do cabaré de Zuleide e Gracinha. Se encontrou com Mauro que tinha o apelido de Lobinho, e um fez companhia ao outro. Exaltados os ânimos começaram a se estranhar. De verdade estavam com o cão no couro, perdeu as estribeiras Lobinho e atacou com uma faca o companheiro de mesa de bar. Defendendo-se Juvenal, com a mesma faca matou o cabra. Mas esse nem fora o primeiro, nem seu último crime.

Napoleão e seu cavalo Le Visir! De fato era com quem Juvenal e Soberano pareciam. Além de gostar de cavalos, outras semelhanças mais, vamos encontrar entre o imperador Francês e nosso camponês. Na estatura, na cor da pele, no cabelo revolto. De certo que o de cá, não nascera em família nobre, no entanto como aquele, fora o segundo dentre os oito filhos que seus pais, José Maria e dona Otília da Conceição teria posto no mundo. Com muito sacrifício criaram: José, Juvenal, Luciene, Elisa, Luiz, Pauliano, Carolina e Jerônimo. O caráter rebelde e indisciplinado rendeu-lhes castigos severos, Por desobediência a ordens paternas, amargaria noites e dias trancado num quarto sem comer. Assim como o monarca, nascera no dia 21 de julho, duzentos anos apenas separava os nascedouros 1971. Mania tinha de andar com a mão sobre o abdômen, sem com isso tivesse, como aquele, problemas de úlcera estomacal, mas unicamente para manter contato com seu segundo maior amigo, o revólver calibre 38, carregado de balas. Com a máquina de fazer buraco em gente, mandou uns tantos de almas sebosas pra “Terra dos Pés juntos”. Encabeçou esse rosário macabro um preto velho, metido a curador. Foi assim, um dia dona Otília foi tirar barro de louça pra fazer umas panelas e acabou mordida por uma cobra venenosa. O tornozelo inchou na mesma hora, ficou preto da cor de carvão. Uma vez em casa, colocou encima do ferimento seiva das folhas de barbatimão e a gosma da Babosa. Tonta e muito fraca, prostrada ficou numa cama. Deram-lhe de beber um chá de jalapa, que de nada adiantou. Se queimando em febre, trouxeram um rezador que atendia na feira do povoado Caboclo. O preto velho aprontou um remédio que incluía óleo de baleia, pó da canela seca de Siriema, espinhas do peixe Cará, pena de papagaio novo que nunca falou. Tudo isso tinha o benzedor. Já fedida estava a ferida, deu gangrena. Então colocou raspa do entre casca do mulungu e enrolou com um pedaço de pano branco contendo maniva da mandioca brava. Depois de três dias delirando dona Otília morreu. Juvenal simplesmente esperou o sábado. Assim que o negro chegou pra começar o dia, nem bem armou a barraca, recebeu inteirinha a descarga do revólver. Seis tiros na caixa dos peitos. Juvenal tranquilamente saiu caminhando, montou Soberano e se foi. O que sentia era satisfação do dever cumprido. Certo de ter praticado justiça.

Alexandre “O Grande”, mais que a uma mulher formosa, amava Bucéfalo seu cavalo. Igual sentimento devotava Juvenal por Soberano. Eram reflexos um do outro, simplesmente extensão e reflexos. Dizem que Alexandre tanta paixão sentiu ao ver o cavalo pela primeira vez, ainda selvagem cavalgando nos prados no meio de um tropel, que passou três dias seguindo-o e apenas observando-o. Uma vez capturado preferiu ele mesmo domar. Sofreu ao tentar montá-lo descobriria tempos depois que se assustava com a própria sombra. Entre Juvenal e Soberano ocorreu exatamente o contrário, o cavalo que era de outro dono ao vê-lo cismou de segui-lo. Juvenal era desses matutos arredios que se espantava com qualquer coisa. Achou que aquele cavalo estava possuído e que tivesse parte com o tinhoso.

Um dia estava tudo muito tranquilo, uma paz que aqueles que já cometeram coisas graves ficam assim muito ressabiados, preparado pro pior. E sempre acaba acontecendo. Mataram Seu Adonias pai de Juvenal. Pensou logo nos seus desafetos. Mas havia sido por questões de demarcação de terras, Juvenal ficou muito triste. Durante o sepultamento jurou vingança. Antes de descer o caixão à sepultura colocou uma moeda na boca do finado Malaquias. O próprio demônio lhe contara, numa das vezes que se viram, que antes das portas do inferno e do purgatório existia o rio do Limbo. As margens haviam dois barqueiros, irmãos gêmeos, Caronte e Corante esperando os espíritos desencarnados pra fazer a travessia. Juvenal recomendou: “-Vai meu pai na frente. Não tarda irei eu também.” Uma rabeca gemeu em duas notas que lamentava a morte e convidava ao choro. E concluiu: “-Peço que quando eu morrer matem meu cavalo. Pras terras dos mortos, pra onde irei, quero ir montado em Soberano.”

Fabio Campos 16 de Abril de 2015

SOL E LUA DE BETÂNIA

Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

Lá estava o aglomerado de casas, quase rústicas. Vistas de longe assim, falava duma nesga de cores pálidas. Os tons de branco destacavam-se formidavelmente. Nas fachadas de tijolos rebocados e caiados. Donde alguns quantos se destacavam. A torre da igrejinha. O balaústre do mirante do açude. O muro do cemitério. Ecomo querendo também compor excepcional quadrante, flutuantes nuvens destacavam-se lá no céu azul de anil de Betânia.

O tudo que se via, o olho do condor era que via. E os que lá embaixoviviam,ainda estes, e àqueles pormenores não viam. Talvez soubessem, ou tivessem ideia ao menos,que existiam. Duas mil e poucas almas habitavam corpos, que habitavam casas, que compunham paisagens. Sem se darem conta que o eram mesmo sendo. Obcecados na tarefa de gastarem vidas viviam. Laboriosos na mais relevante das ocupações, a de viver viviam. O carreiro carreava o carro. O menino brincava de ser ele mesmo. O mercador mercantilizando palavras. O cachorro deu com o rabo no ar, vã tentativa de espantar o tédio, de ser cachorro. Todos protagonistas de si mesmos. Mas se encenavam suas próprias histórias, aquele eratempo de viver outra encenação. A da Paixão. Teve início num pedregulho que tinha ao lado do campo de futebol. Abandonado naquele momento porque era sábado de aleluia. E como era semana santa ninguém queria jogar bola pra não ser taxado de Judas. O lajedo excelente lugar para a cena do sermão da montanha. O que recebeu o nome de Jesus seguiu andando, acompanhado dos doze. Na casa de Seu Zacarias o burrico atado, que foi requisitado por dois discípulos para que se cumprisse a palavra. “Alegre-se muito, cidade de Sião! Exulte Jerusalém! Eis que o rei vem a você, justo e vitorioso, humilde e montado num jumento, um jumentinho, cria de jumenta. Zacarias -9.”

Uma pequena multidão seguia. O público quis também participava de cada cena. Na hora de acenar com os ramos de palmeira acenaram. Acompanhavam e gritavam junto com os atores: “-Salve o filho de Davi! Hosana! Hosana!” A Betânia verdadeira ficava a milhares de quilômetros dali, do outro lado do Atlântico. Tão distante do sertão e da caatinga. Betânia ficava só a três quilômetros da cidade velha de Jerusalém e do Monte das Oliveiras. Bethania em grego, Bét-nyyah em hebraico, “casa de Ananias”, “casa dos figos verdes”. A cena da última ceia do Senhor ocorreu no patamar defronte a igreja. O Jesus adolescente de barba rala, cabelos revoltos, e pele morenada pelo sol do sertão, partiu o pão e distribuiu entre os doze. Elevou o cálice a cima da cabeça e compartilhou. Seu Luizão sapateiro quis fazer o papel de Judas. Uma cena das mais difíceis, o pobre discípulo condenado a ser o traidor, em desespero perfeito na arte do fingimento. Com força atirou contra os paralelepípedos,o saquinho com as moedas que barganhou com Caifás pela traição do mestre. Quem terá sido os que pegaram as moedas? Haveria quem dissesse que cada um dos que pegou sofreu um mau presságio. As moedas que custou o sangue precioso de Cristo encerrariam maus desígnios para quem delas se apossaram. Um pastor de ovelhas depois de se apossar de uma daquelas moedas de ouro, numa tempestade repentina teria perdido parte das ovelhas do seu rebanho. Um agricultor, dizem que porque pegou uma daquelas moedas, amargou a ruina de ver sua lavoura toda perdidacom uma enchente que destruiu tudo.

“Mazurca velha mazurca/Dança grossa do meu sertão/ Quando toca uma mazurca véio macho cai no salão/ Dança duro batendo o pé balança a casa, balança o chão.” Assim dizia no rádio a canção de Luiz Gonzaga. Na vilaCandunda havia a tradição de se dançar mazurca. Por ocasião dos festejos juninos se dançava mazurca na praça. Desde a quaresma começavam os ensaios. Um grupo de meninos e meninas, outro de jovens: moças e rapazes. E outro de adultos e idosos. Todos participavam do folguedo. Trajados em vestes de poloneses os homens, de polacas as mulheres. Representavam agricultores da região de Cracóvia. A tradição chegou a vila trazida por um padre polonês. O padre chegou a vila no tempo da segunda Guerra Mundial, quando Hitler quis dizimar da face da terra, o povo Judeu.A igreja do povoado desenhada pelo padre tinha os traços arquitetônicos do Santuário da Divina Misericórdia, da capital polonesa, conhecido devido às aparições e revelações de Jesus, reconhecidas pela Igreja Católica, a Santa Faustina Kowalska. Os homens com seus chapéus verdes com uma faixa branca e preta ornada com uma pena vermelha. As mulheres tinham aventais com franjas e lenços coloridos na cabeça, toda vestimenta predominava as cores vermelho e branco da bandeira da Polônia. Era engraçado,pra quem jamais vira, os passos da dança. Uma fila de homens, outra de mulheres, realizava bela coreografia. Inicialmente soltos, cujos passos, cujo ponto forteera o bater dos pés, como um sapateado. Depois as duas filas se aproximavam e dançavam aos pares. A um toque diferenciado dos músicos e todos largavam seus pares e trocavam de parceiros. O fole, e a zabumba eram os instrumentos predominantes, o triangulo, o pandeiro e o pífano eram alternativos.

Betânia não vingou no sertão. O nome sugerido pelo padre polonês, foi aceito e bem acolhido somente pelos habitantes mais jovens. Entre os antigos moradores porém, Betânia jamais deixaria de ser Candunda. Os mais antigos, jamais se acostumaram com o novo nome sugerido pelo pároco. Canduda era espécie de peixe de pequenas dimensões, alimentavam-se basicamente de microrganismo disperso na água, que filtram à medida que sugam a água pelas minúsculas guelras, com a ajuda de branquispinhas, que são excrescências ósseas dos arcos branquiais (a estrutura que segura às brânquias ou guelras).O peixe candunda não vive em cardume e se reproduzem pouco com alternância da fase da lua entre a minguante e crescente. Faz do fundo dos açudes seu nicho, tem preferência pela profundidade onde possam estar livre dos predadores, os peixes maiores as tarrafas e as puçás dos pescadores. Ao atingirem a idade adulta não passam de 3 a 6 centímetros de envergadura. Na quaresma devido a época favorável a pesca, tornava-se presa do homem.Candunda dava uma prato típico do povoado a fritada.

Existia uma lenda sobre a chegada do peixecandunda na região. Dizia que os colonizadores desbravando os sertões chegaram à região montado em mulas e jumentos. Cansados de tanto andar debaixo do sol quente, a caravana resolveu descansar. Ao se aproximarem dum pé de uma clareira perceberam um grupo de mulheres morenas lavando roupa as margens dum lago no sopé duma montanha. Aproximaram e perguntaram se podiam pegar um pouco de água, as mulheres permitiram, desde que algo lhes fosse dado em troca. Com uma exigência especial: tinha que ser algo vivo que nunca tivessem visto. Não aceitavam as mulas pois já conheciam, nem carneiro pelo mesmo motivo. Entre os colonizadores havia um negro escravo com uma moringa de couro de carneiro, na qual disse que trazia uns peixinhos que pegara no rio Jordão. Pois diziam que quem carregasse daqueles peixinhos na moringa jamais morreriam de sede, nem nunca lhes faltaria água. Eles colocaram alguns dos peixes no lago depois se abasteceram da água de que necessitavam. O escravo disse as mulheres que era da aldeia de Candundo em Angola na África. O povo do sertão aportuguesou Candudo, pracandunda. Pondo estenome no peixe, por soar melhor. O negro se estabeleceu naquela aldeia. Constituiu família com uma daquelas mulheres. Teve um sonho em que seus antepassados teriam dito que se trocaram candudo pra candunda três outras palavras o povo devia também substituir dali por diante: Aldeia chamariam de Povoado, Lago seria Açude e Montanha sempre chamariam de Serra.

Sol e Lua eram duas meninas. Nascidas gêmeas. Filhas de Maria Lúcia e José Francisco. As meninas não eram idênticas. Uma tinha a pele morena como o pôr-do-sol. A outra tinha a pele alva como uma lua cheia à meia noite.Sol era franzina e de cabelo castanho encaracolado. Lua de mais estatura tinha cabelo preto escorrido. Sol, como o astro que lhe inspirou o nome era extrovertida, pra não dizer supervitada, que o matuto apelidara de “esprevitada”. Lua era a personificação da palavra recatada, tímida.

Um dia, as duas meninas juntamente com Júlio irmão mais velho se inventaram desubir a serra do Candunda. Naquele dia voltaram da escola mais cedo porque houvera festa pelo dia das crianças. Quando os pais descobriram o desaparecimento ficaram desesperados. Todo o povoado se mobilizou na busca. Logo a noite caiu. O céu negro-azul chuviscado de estrelas piscou-piscou pra o sertão se regozijar de encanto. Os aldeões vasculharam pelas cercanias em bandos, abriram picadas na mata com fações e tochas, e nada.De repente alguém notou um imenso clarão vindo do alto da serra. Todos se dirigiram para lá. E qual não foi o espanto de todos, encontraram as três crianças de joelhos adoravam a virgem Maria aparecida sobre uma rocha. De um lado da virgem santa era dia, do outro era noite.O padre polonês ao ver a aparição entendeu sua missão e disse aos que ali se encontravam de hoje em diante, a padroeira de nossa aldeia será Nossa Senhora da Conceição porque apareceu aquelas três crianças. E era o dia delas.

Fabio Campos 10 de Abril de 2015.

AGOUREIRO (Sangue no Chão)

Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

O que daremos de contar. Pra alguns teria se passado, a quatro, cinco décadas talvez. Pra outros, mais de dois mil anos já se foram desde então. De um tempo em que as famílias fundamentadamente patriarcais, sustinham os pais a herdade. Educava-a dentro de princípios, morais e religiosos, passados de geração a geração. As mulheres tinham seus bebês em casa. Enquanto os maridos iam buscar uma parteira pra ajudá-las no serviço de parto. E os homens ficavam sentados à porta brindando a chegada de mais um herdeiro. Entre taças de vinho e sorrisos de júbilo, discutiriam um nome cristão pro novo membro que chegava àquela família. Teria que ter afinidade com os demais nomes da sua ancestralidade. E comentariam com qual parente aquele pequeno ser, fisicamente, se parecia. Quem seriam os padrinhos, a data do batizado. Dona Maria do Leite, dona Maria da Pedra, dona Maria do Ouro iam a visitar a que dera a luz. E levariam seus filhos, que olhariam pro menino no berço, ririam dele. Depois corriam lá pro quintal. Sapecariam pedras nos frutos do trapiazeiro, derramariam o leite do gato, jogariam barcos de papel dentro da cisterna. A empregada traria pras visitas bolinhos de bacalhau e uma taça de vinho tinto. Pois se aproximava o domingo de páscoa.

Eram sete horas da manhã, do dia 31 de março de 1964 quando nasceu José Antero dos Reis da Costa. Sete da matina, quando sua mãe o concebeu. No exato instante em que caminhões do exército paravam na porta da prefeitura, da Cadeia Pública e do Tribunal do Júri. Faziam manobras militares revistavam indiscriminadamente os passantes. Prendiam gente do povo, bem como, gente de nome. Uma montanha de papéis virou fogueira na porta da Coletoria. Estudantes deixaram as escolas nas ruas, carregavam faixas e pichações que citavam o governo Jango. Gritavam palavras de ordem. Se corria alguém, era perseguido pelos policiais. Dava pra se ouvir o baque surdo dos coturnos no calçamento, os capacetes redondos só não caiam porque eram atados por baixo do queixo. As cabeças raspadas. Os nomes de guerra tinham-nos com tinta negra, afixadas com formas de metal, que cortava as letras ao meio. Sibilavam seus cassetetes, empunhavam metralhadoras. E atiravam medo, e olhares furtivos pra todo lado. Um professor foi preso, acusado de incitação a violência e desordem pública. O prefeito teve que entregar sua arma, um revólver calibre 38. Por ordens do comandante do exército da capital, foi detido, ficaria incomunicável na sala do delegado, enquanto durasse a operação militar. Um jipe camuflado levando seis soldados avançou pro interior do município. Pras bandas das Várzea de Dona Joana, a ordem era que deviam voltar trazendo: Valderedo, Zé “Gago” e Zé Crispim. Disparos de metralhadora encheram o muro da delegacia de pequenas barrocas vermelhas. Era o “El Paredon” cubano em pleno sertão. Não se sabe quantos tombaram sem vida ali. Os olhos eram vendados, atavam-se as mãos e os pés. Como se defunto pinicado de bala pudesse correr. Na verdade as amarrações eram pra facilitar no momento de colocar no lastro da pick-up. Destino: Paulo Afonso, a ponte de aço os aguardava pro último e único voo, depois de morto. As cápsulas dos projéteis, os meninos depois pegariam, e usariam como apitos. Bombas de efeito moral lembravam, nos estouros e no cheiro, os rojões do tempo das festas juninas. O barulho fez com que levassem o bebê do berço, pro colo da mãe, terno colo materno: aquecido, porem no peito que amamentava um coração acelerado, batia descompassado. Nunca na vida descobriria o menino porque tanto medo teria de estouro de bomba e foguetes depois de grande.

E viria a festa da padroeira que propiciaria o batismo. Muita gente na cidade, burburinho da criançada nos corrupios. A jogatina dos brincantes adultos, a angariarem um monte de quinquilharia. A festa concomitantemente profana e religiosa. A charola riquissimamente adornada com muitas flores. E a santa de pio olhar volvido pra Deus. Muita gente rodeando os degraus do santuário. A difusora melodiava com exclusividade pros namorados. O padre ladainhava missa, o coral sacrossanto, o turíbulo produzindo seu som e aroma característicos que atravessaria os anos incensando as palavras de Cristo, em latim, em português. Meninas de boinas brancas, luvas brancas, ramalhetes de flores, sapatos com meias três quarto, igualmente brancas. E suas saias, ora comportadas ora sumaríssimas, expunham pernas, adolescentemente longilíneas. Os lábios cobertos de batom evitariam o ressecamento dos lábios. E suas gargantas engoliam em seco, em úmido. Entoariam com muita ênfase os cânticos da missa. Ato litúrgico findo, agradecimentos aos que ensejaram o evento. O doutor juiz de Direito discursaria e comoveria a muitos. E suas feições ficariam para sempre na mente de alguns dos meninos que haviam sido obrigados a ficarem perfilados num pelotão feito soldados mirins. E diriam para si que um dia quereria ser juiz de Direito pra ter o respeito de uma multidão. O militarismo impunha seus ditames, para aquém, e além dos muros escolares.

Rural era nome de carro, concebido para o campo, porem em nada ficava devendo ao status dos carros da cidade. Diferente dos outros. Pelo porte alto. De parecer com a americanizada Veraneio, parente próximo da Caravan. José Antero teve um dia a oportunidade de entrar num daqueles carros. A estatura de criança fazia assimilar como bastante espaçoso. As imensas janelas remetiam aos ônibus da empresa Progresso o até então, único automóvel que havia experimentado. Dentro dum carro de passeio, propriamente dito, pela primeira vez lá se foi José, a fazenda Boa Vista, com o dono, e o filho do dono, seu amigo. Tudo era novidade, e explorou ao máximo. Andou pelo curral. Já ia o sol desabando pra ficar de coito com a montanha. Revigorado, retornaria dia seguinte, no lado oposto, pra disfarçar. Uma pequena aglomeração chamou atenção lá pro grotão. Dirigiram-se todos pra lá: Uma vaca estava parindo. Seu Dominício apreensivo pedia que não se aproximassem muito. E que fizessem o máximo de silêncio. O cachorro Maranhão não colaborava, latia e avançava, pondo quase tudo a perder. Seu Dominício um caseiro pau pra toda obra. Cuidava do gado, da roça, da cerca de arame, da ordenha, da casa grande, da sua casinha na encosta do morro, da mulher e dos filhos. E naquele momento, do parto duma vaca. Nos dias de sábado ia pra rua, fazer a feira, comprar meia dúzia de cacarecos. A melhor parte era passar na barbearia de Firmino os apetrechos iam pra junto do pote, e ia tomar cachaça até de tardinha. A primeira dose era na tolda de Zé Ciço, uma beberagem composta de limão, tempero, sal, um dente de alho triturado com um copo e um pouco de café pra espantar o caboclo. Na feira do rato trocou uma gaiola e um alçapão, com dois coleirinhas e um soldadinho, por um rádio de pilhas. Era a única vez que um matuto via um soldadinho preso.

Já se havia a semana santa. Naquele tempo, os sertanejos saiam do seu sítio e iam bater no sertão do Pajeú pra se confessar com frei Damião. O missionário capuchinho severo com os que cometiam o pecado da fornicação, fora do casamento. Pregava que Satanás, o próprio de chifre e rabo, viria buscar o maldito pecador montando-o como se monta a um jumento. Largando-lhe esporas desceriam pras profundas do inferno. E nem adiantava mentir pro frei de Bozanno. Conhecia quando o cabra estava mentindo. Por isso alguns preferiam ir do sertão de Alagoas pro Juazeiro do Norte a pé. Pra confessar-se com “padrinho” padre Ciço que era mais maleável, tinha dó do matuto em falta com Deus. A romaria saía no domingo de Ramos e a chegada era na quarta-feira maior. O sertanejo chamava a semana Santa de “Os dias grandes” Nos dias maiores usavam roupas de saco, um embornal contendo carne seca, farinha e uma rapadura. Uma moringa d’água, um par de alpercatas “Xô Boi” nos pés, e um chapéu de abas larga na cabeça. Entre os que iam tinha que levar uma imagem do santo do Juazeiro. Tinha uma romaria pra pedra do Urubu, município de Dois Riachos, mas era coisa de menino, mulher e velhos que não aguentavam rojão de puxar na perna, até o vale do Cariri.

José Antero naquele ano, foi a Juazeiro. Quando o sol no céu disse: meio-dia, pararam pra descanso. Urubus voavam em busca do que comer. José Antero e Otacílio puxaram conversa sobre as agoureiras aves negras. O primeiro comentou: -Urubu não é ruim, o único bicho considerado impuro pelo povo judeu, era o porco. E buscando a bíblia leu: “Fareis pois diferença entre os animais limpos e imundos, e entre as aves imundas e as limpas; e as vossas almas não farei abomináveis por causa dos animais, ou das aves, ou de tudo que se arrasta sobre a terra: as quais coisas apartei de vós, para tê-las por imundas. Levítico 20:25”

José sabia que entre os homens e alguns animais existiam suas diferenças. Não raros são os que têm aversão de corujas rasgas mortalha, morcegos, borboletas pretas, sapos e cobras. Noutro momento o livro sagrado diria que todos os animais de casco bipartido: o boi, a cabra, o bode e mesmo o porco eram animais puros. O próprio Deus tinha posto inimizade entre o homem e a serpente com vê-se no livro de Gênesis. Matutava sobre outra passagem no Evangelho: “Ouvi-me vós todos e entendei; o que vem de fora e entra numa pessoa, não a torna impura; as coisas que saem de dentro da pessoa é que a torna impura. Quem tem ouvidos ouça. O que sai do homem é que o contamina. Pois é do interior, do coração dos homens, que procedem as más intenções, como a imoralidade, roubos, crimes, adultérios, a cobiça, as maldades, malícia, a libertinagem, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a insensatez; todas essas coisas mais saem de dentro da pessoa, e são elas que a tornam impura. (Marcos 7-14-23-4).

Será que nada era falado sobre os abutres? José não acreditava que urubus fossem aves maus agourentas. Sabia da árdua função de limpar as carniças do mundo. A história de que aquelas aves não comiam carne humana foi desmistificada. Seu Otacílio contaria que esteve na emboscada de Angicos e os corpos dos cangaceiros ficaram expostos por dois dias. O cheiro forte de carne exposta, sangue no chão acabaria atraindo urubus, e se não fosse a intervenção da polícia as aves teriam os devorados mesmo sem cabeça.”

Fabio Campos 31 de março de 2015

CAVALO MARINHO

Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

Era o ano de 1986. Os dias falavam de quaresma. Na estação rodoviária de Maceió, exatas 14 horas, um ônibus, da Auto Viação Nossa Senhora da Piedade, acabara de deixar a plataforma A-4. A bandeira indicava o destino, a cidade de Porto de Pedras, litoral norte do estado. Os que permaneciam ali. Sentados nos bancos de concreto, ou debruçados no parapeito do amplo salão de espera. Acabaram assistindo a uma cena comum, pra aquela ocasião. Um rapaz, camiseta preta, calça jeans, tênis branco, uma bolsa camuflada às costas. Corria e acenava, mas infelizmente não deu. Vã tentativa, de alcançar o coletivo.

Rui Junior era de Palmeira dos Índios. No entanto, desde a infância vivera e crescera, no bairro do Prado, se considerava um maceionse. Jovem universitário do curso de Química da Ufal. Óculos de grau de aro leve, livros, revistas, walkman, fones de ouvido. Na camiseta preta estampado o símbolo dos Rolling Stones, a escrota língua da banda de rock americana. Na cidade praieira, do norte do estado, pra onde pretendia ir, assumiria a cadeira de professor de Química, de alunos do antigo Colegial, na Escola Nossa Senhora da Glória. Ainda ouvindo música, buscou o guichê da empresa para remarcar o embarque. A viajem acabou ficando para às 17 horas. No lanche do quiosque acabou conhecendo Farnel Cabús, outro professor que por vias do acaso, ia pro mesmo destino, ensinar Ciências, na mesma escola. Foi só o ônibus deixar a capital, e o céu desabou. Chuva torrencial, impetuosa veio, cravejando de relâmpagos e trovões o anuviado pano negro da noite, avizinhada. Os faróis dos carros, luzes refratárias, na pista molhada. Determinados trechos totalmente alagado, muita cautela exigia dos motoristas. Um caminhão tombado, vinha em sentido contrário. Viaturas piscando, luzes cor de sangue, policiais tentavam, a quase impossível tarefa de, manter o tráfego fluindo. Histórias vinham contadas pelas imagens que passava como filme, através da janela do automóvel comunitário. Um grupo de homens e mulheres seguiam pelo acostamento. Donde viriam? Pra onde iriam? Pelos trajes, de certo do corte da cana. Chapéu na cabeça, lenço amarrado em baixo do queixo, botas sete-léguas. Nas mãos, marmitas, moringas d’água, foice.

A estrada, os carros, gente correndo, ou simplesmente, caminhando na chuva. Movimento intenso, iminência de novos acidentes. O professor de química pegara no sono. O de ciências rememorava uma dinâmica, que utilizaria com os alunos, pra quebrar o gelo do primeiro contato. Falaria de como o mundo, vive cobrando-nos posturas, comportamentos. Sendo ideal que estejamos prontos para toda e qualquer situação. Diante disso: “Imaginemos que vocês se submeteram a um teste para uma vaga de um emprego, qualquer. Ao término da correção da prova escrita, concluiu-se que todos vocês se saíram muito bem. Então o gerente diante desse impasse encarregaria o psicólogo de resolver tal situação. Aquele profissional faria a seguinte proposta: Façamos o seguinte, eu vou contar uma história a vocês, ao final, faço uma pergunta, quem responder corretamente fica com a vaga do emprego! Topam? Todos concordaram: Um rapaz muito rico vinha numa auto-pista, num dos seus possantes carros de corrida. Neste, cabia apenas o motorista e apenas mais um passageiro. De repente ele avista um abrigo desses que as pessoas ficam esperando carros, e o que vê: uma velhinha (tremendo de frio), um médico (que reconheceu, um dia salvou-lhe a vida), e uma garota linda (perfeita, a ‘mina’ dos seus sonhos!). E a pergunta: A quem o rapaz daria carona?” E claro, depois de ouvir as diversas opiniões, somente ganharia a suposta vaga de emprego, quem dissesse que o rapaz cederia o carro ao médico, que iria embora com a velhinha. E o moço ficaria conquistando o grande amor de seus sonhos.

De repente o ônibus parou. Homens trajando coletes pretos, bastante nervosos, escopetas em punho entraram impetuosamente, revistando passageiros. Exigindo, um a um, documentos de identificação. Sem entender patavina, foram todos, forçosamente, obrigados a apresentar àqueles, algo que permitisse serem identificados. O professor de química foi acordado, sendo cutucado no ombro pelo cano de uma espingarda calibre doze. Achando que ainda sonhava, sorriu pro incauto policial, sem saber que espécie de brincadeira era aquela. Não gostando da forma como o pobre rapaz reagira à abordagem, o agente civil colocando o dedo no gatilho e apontando-lhe a arma, esbravejou que lhe apresentasse documentos, sob pena de ser detido se a ordem não fosse imediatamente obedecida. Pior pra Rui, o documento que portava naquele momento, era nenhum. Acostumara-se a sair de casa, sem lenço nem documento. Pra ele isso era estilo de vida, do tipo que achava que até um relógio de pulso aprisionava, tirava-lhe a liberdade. Por isso se desvencilhava de tudo que significasse limites. Era dos que acreditava na tão utópica “sociedade alternativa” propalada pelo filósofo de vanguarda, Raul Seixas. Pra desespero de todos, teve que descer do ônibus. Estarrecidos ficaram todos, sem nada poder fazer. O agente policial sequer esclareceu aos que continuaram no ônibus, de que àquela blitz era uma tentativa de capturar uns bandidos que acabara de assaltar um banco na capital, os envolvidos no crime evadiram para aquelas imediações. E pra polícia, qualquer indivíduo sem documento, passava da condição de suspeito, pra um criminoso em potencial. Rui passaria quase toda a noite no Distrito Policial do Jacintinho, tentando provar sua inocência. Somente depois de conseguir um contato telefônico, o mal-entendido foi desfeito. Por volta das 3 da manhã seu pai foi buscá-lo.

Muitas coisas, ainda mais intrigantes, estavam para acontecer. O ônibus que Rui perdera na estação rodoviária, caiu no rio. Pensou: antes ser preso que morrer afogado. No percurso havia a travessia de balsa pelo rio Santo Antonio Grande, na Barra de Santo Antonio. A tempestade, o mal tempo, tanto balançou a embarcação, o coletivo cheio de passageiro rebentou as correntes que o segurava, e acabou caindo dentro do rio. Gritos de desespero se ouviram naquele prelúdio de noite. Desesperada tentativa de resgate, aflição, demora pra chegar o guindaste, pescadores mergulhando no fundo, botes salva-vidas, homens rãs, médicos legistas, peritos. Corpos sem vida, molhados, iam sendo alinhados no cais. Tenebrosa noite, pedidos de socorro sufocados pelo ribombar dos trovões, entre o aguaceiro diluviano se fizera ouvir.

Enfim vieram dias de sol. Paz sobre as telhas das casas, diziam mais que simplesmente telhares. Aqueles beirais, suntuosos ou singelos, contavam histórias. Histórias de para sempre, ou de nunca mais. De nunca mais voltar os tempos dantes, de para sempre ficarem na memória. Velhos conhecidos de uns para os outros. Seu Belo na porta da bodega, de batentes altos. O velho General conversando com Seu Djalma, oficial de justiça. Os olhares convergiam todos, ora pro mar, ora pra porta da Barbearia de Rubens. A pequenina igreja de Nossa Senhora da Piedade, branca e azul claro, muda, conversava com o mar. A ladeira antiga, ia subindo e não tinha volta pra quem ia dentro do caixão, a caminho do cemitério. Dona Íris de cabelos loiros, sentada a porta de casa na cadeira de balanço, quando fosse mais tarde iria comprar pão na padaria de Amaro. Professor Sérgio, tinha pranchas de surf, um bugue, e no seu aquário, tinha cavalos marinho. Quando um deles morreu resolveu pesquisar. “Hippocampus gênero de peixe das águas marinhas temperadas e tropicais pertencentes à família Syngnathidae. Caracterizam-se por possuírem uma cabeça alongada, com filamentos que lembram a crina dum cavalo. Possuem mimetismo igual ao camaleão. Eles conseguem mexer os olhos independentemente um do outro. Nadam com o corpo na vertical, movimentando as barbatanas. Crescem até no máximo 15 cm e pesam entre 50 e 100 gramas. Vivem em regiões de clima temperado e tropical. Os machos são os responsáveis pela reprodução, que só ocorre na natureza. Conseguem viver em aquários, contanto que seja abastecido de água marinha e receba cuidados especiais, de alguém que os ame.”

Tão bom ir a Praia do Patacho, caminhar na areia, catar conchinhas. Coisas instigantes restavam ainda para serem esclarecidas. Os nomes de pontos estratégicos da cidade, certa inquietude causaria nos professores estrangeiros: Curtumes, Laje, Tatuamunha, Salinas, Ilha da Croa. Patacho era barco à vela equipado de dois mastros, do período seiscentista. Sempre que tinham oportunidade conversavam com os pescadores. Na tempestuosa noite do dia 17 de março de 1788. Vindo de Natal, terra dos índios Potiguares, indo pra Nova Cabrália, atual Porto Seguro na Bahia. Depois de colidir nos arrecifes, bem ali, naufragara o patacho St. Clement. Levava uma carga de sal, toras de madeira, e um canhão do forte dos Reis Magos. Havia quatro tripulantes, e seis passageiros, escravos. Gritos de desespero se ouviram naquele prelúdio de noite. Tenebrosa noite. Pedidos de socorro sufocados pelo ribombar dos trovões, e clarear dos relâmpagos. E o aguaceiro semelhava o diluviano. Ainda agora se fizera ver e ouvir. Tudo como antes, se fizera.

Fabio Campos 17 de Março de 2015

*Lage e Patacho, são praias no município de Porto de Pedras. As duas de areias claras, águas translúcidas e coqueiro vistoso ao fundo. Quase desertas e perfeitas para um dia de sossego. É só andar uma centena de metros até chegar às piscinas naturais. ( www.viajeaqui.abril.com.br)

CAVALO DO CÃO

Ilustração: Fábio Campos

Ilustração: Fábio Campos

Everaldo nasceu no sítio Mulungu. Os verdes anos, os melhores de sua vida, viveram-nos lá. Ao lado dos pais, e seis irmãos. Muitos anos depois, casou e teve que partir. A tapera onde morava levou, consigo, dentro dos olhos levou. E quando lhe invadia a saudade, as lágrimas vinham – com gosto de barro vinha – da velha casinha de taipa onde nascera. O cheiro de catingueira engendrou na pele. Tanto, que quando realizava trabalho pesado, suava suor com cheiro de mato. O sertão, pra onde quer que fosse levava no corpo, nos momos, trejeitos. Permaneceram-lhe pra sempre, as manias dum sertanejo legítimo. Da mãe caatinga às manhas, eternamente parte de si. Se dependesse dele nunca sairia. Transmitiria por herança, pros filhos, assim esperava. Uma folha de juá mastigava de manhãzinha. Depois do café um talo de capim entre os dentes. Dum canivete jamais se apartava.

A vida na cidade não tinha graça nenhuma. À tardinha, de cócoras na porta de casa. Iam às vistas em busca do pôr-do-sol. Desmanchava um cigarro manufaturado, só pra ter o prazer de refazê-lo, num pedaço de palha de milho sequinho. Era uma das formas de voltar aos bons tempos da roça. Estudos fora segundo plano, sequer terminaria o fundamental. A leitura pouca, dera ainda pra conseguir a carteira de habilitação. Um emprego de motorista da prefeitura veio através do padrinho, o vice-prefeito. Os tempos de roceiro foram ficando cada vez mais distante. Terno passado de infância e juventude, que jamais esqueceria. Conheceu Ana Lúcia brava sertaneja com quem casaria. Três filhos machos Vandeilson, Vanderlanio e Vadiclebson. A depender dela, mais um filho viria. No caso uma menina, pra encerrar a carreira. E veio a gravidez desejada, mas no quinto mês de gestação acontecimentos estranhos passaram a ocorrer dentro de casa. A caixa d’água do banheiro rachou e desabou causando alvoroço. Nesse dia, Ana foi parar no hospital, mas foi só um susto. Exatamente um mês depois um curto-circuito na tomada do ventilador dentro quarto, provocou um incêndio, e queimou todo o enxoval do bebê que ainda estava pra vir ao mundo. Já ia o sétimo mês da gestação, e um estouro da válvula de segurança duma panela de pressão, causou-lhe mais um susto grande. Dessa vez foi forte demais, e Ana acabou perdendo a que seria a única filha mulher.

As coisas aos poucos foram tomando seu rumo. Determinados acontecimentos são como um puxão no freio de mão, nas estribeiras do mundo. Mas não demorava muito, e a bola azul de carregar gente nas costas, continuava sua alucinada viagem. Vagabunda, a dar voltas, e mais voltas, em torno do sol, enquanto redemoinhava sobre si mesmo lentamente. Os filhos de Everaldo reféns do processo evolutivo da espécie, pouco a pouco iam definindo a estatura dos seus corpos. Ia o ciclo da vida cumprindo seu papel. Uma coisa dava pra perceber nenhum dos três puxara ao pai. Era de se esperar que filhos de sertanejo viessem a gostar de passarinho cantador, na gaiola. Pegar alçapão e alpiste e ir lá pra várzea do riacho. Petecar ave de arribação com balas de barro de louça, endurecidas, quaradas ao sol no paredão do açude. Armar aratacas e arapucas pra pegar preá e mocó. Nas noites de lua fachear codorna e nambu. Gostar de ouvir história de Pedro Malazarte, Cacão-de-fogo, Mata-Sete e Camões. História do compadre e da comadre que traíram seus parceiros e viraram fogo corredor. Àqueles meninos se quer se animavam correr vaquejada, correr numa corrida de argola, ou na corrida de mourão, uma pega de boi no mato nem pensar. Sentir prazer de paramentar-se com as vestes próprias do vaqueiro: perneiras, peitoral, botas guarnecidas de esporas. Ostentar vistoso chapéu de couro, jibão, chicote e luvas de couro cru. Montar um belo quarto-de-milha. Se posicionar na portinhola do jiquí ladeado dum bom bate-esteira. Correr a derrubar o boi na faixa, e ouvir o locutor anunciar “-Valeu boi!”. Tirar um som dum berrante, aboiar, tirar um verso, ao badalar dum chocalho. Tirar umbu, na semana santa. Assar milho na fogueira do São João. Tirar maturi de caju, quando vinha o fim do ano. Nenhum dos três teria dado ao pai, o prazer de gostar das coisas do mato.

É certo que Everaldo e Ana queriam mesmo que os meninos estudassem, e se formassem. Pra não suceder com eles o que lhes ocorrera, emprego a custa de favores. Da promessa dum político Ana tornou-se serviçal do Tribunal de Justiça. Vandeilson o mais velho, conseguiu um emprego de técnico de informática no município, aproveitou o embalo e casou. Os outros dois em casa dos pais continuavam. Como não tiveram o mesmo tipo de criação, fora de suas presenças costumavam caçoar o jeito caipira dos pais. Pior, davam-se o direito de ralhar palavras que eles pronunciavam ao jeito simples do linguajar matuto. Vanderlanio chegou um dia dizendo que ia fazer uma tatuagem dum unicórnio alado no braço. O pai ao ver o rascunho do desenho escandalizado disse: “-Prefiro te ver morto! A ver um filho meu virado num cavalo do cão!” O rapaz não se conteve, caiu na gargalhada ali mesmo, na frente dele. Levou uma tapa por cima do toitiço que precisaria de compressa pra aliviar a luxação. Naquela noite, mais calmo Everaldo, chamou Vanderlanio, e foi ter uma conversa com ele. Disse-lhe que quando tinha a idade dele filho respeitava o pai. E falou de alguns episódios que lhe ocorreu quando rapaz. “-Uma terça-feira de carnaval, seu avô soube, lá no sítio Mulungu, que eu estava na vila bêbado, todo melado de pó ‘parecendo um macaco’. Foi me buscar. Voltei amarrado, atravessado na garupa do cavalo. Levei uma surra de urtiga. De outra vez, foi bater na escola porque soube que eu tinha brigado com um menino. Nesse dia, fui amarrado no tronco daquele pé de mulungu que tem até hoje atrás de casa, apanhei com o relho de amansar os bois de arado, cada lapada voava uma tira de couro das costas.

“-Sua avó, era uma mulher muito sabida. Gostava de ler, e lia muitos livros. Chegou a trabalhar como professora pra Delmiro Gouveia, o homem mais rico do sertão na época. Naquele tempo já se falava duma seita chamada Nova Era, que seria combatida pela Ordem dos Cavaleiros de Cristo, também chamados de Cavaleiros Templários. A Nova Era, que pregava a anarquia, o comunismo, a heresia e praticavam sodomia. Tudo coisa do demônio. Seus seguidores defendiam a negação de Cristo, dos Evangelhos, da bíblia, dos sacramentos da igreja. A favor do enriquecimento a qualquer custo, mesmo de vida inocentes, em rituais satânicos. E se reconheciam uns aos outros, por tatuagens no corpo, justo figuras como esta. Eles estão presentes em grandes empresas, em bancos internacionais, partidos políticos, emissoras de tevê. As cores, sempre o preto e o branco. Outro dia fui um aniversário do filho de um amigo meu, e fiquei chocado, ao ver que ao invés de cores alegres, de desenhos animados. Toda decoração eram imagens macabras: cabeças de caveiras, cobras, aranhas, esqueletos. Deram de presente ao filho, de apenas oito anos, o direito de fazer uma tatuagem quando completasse onze, que já havia até escolhido o que tatuar. Não se passaram mais de seis meses depois da tatuagem, e a criança contraiu uma doença que nenhum médico descobria o que era. Em menos de um ano morreu. Depois o pai caiu em depressão, matou a mãe e se matou. O demônio teria vindo buscar, mais dos seus cavalos. Precisava para cavalgá-los nas profundas do inferno. Viu aquelas execuções que apareceram na televisão como estavam vestidos os executores? É no Islã que fica a sede da seita. Pode pesquisar “Cavalo do Cão” e você mesmo vai descobrir.”

Vanderlanio pesquisou sim senhor. Mas o que encontrou foi: “Cavalo do Cão, nome científico “Pepsis ruficornis” da família dos pompilídeos é um inseto da classe das vespas. Locomove-se tanto no ar, como na terra. Sua picada é bastante dolorida, a peçonha age em questão de milésimos de segundo. Chega a causar paralisia do membro atingido. É predador natural da aranha. Ataca o inseto inimigo, com sua picada paralisa-o. Sua presa serve como alimento dele e de suas larvas.”

De nada serviram os conselhos de Everaldo. Primeiro Vanderlanio, depois os outros dois irmãos. Pois acharam legal, e cada um fez, nos braços, pescoço e costas, pelo menos três tatuagens. Cobras, raios, feras e monstros que eles mesmos não tiveram o menor interesse de saber o que simbolizavam. Um domingo desses duas Vans foram contratadas, pra irem ver o time do Canarinho, o de maior destaque no sertão, jogar com o alvinegro, maior da região fumajeira, no agreste. Os dois transportes alternativos acabaram se envolvendo num grave acidente. Cinco pessoas morreram. Três deles os filhos de Everaldo. Os outros dois também tinham tatuagens.

Fabio Campos 02 de Março de 2015

A MÃO E O MARTELO

Foto: Fábio Campos e Tômas Kael

Foto: Fábio Campos e Tômas Kael

A quaresma havia chegado. Nuvens vinham, e se quisesse, falariam de esperança, de coisas novas e sentimentos dúbios: tristeza, melancolia. E se tudo parecia confuso pouco importava isso nada mudaria o rumo das coisas. Indiferente as nossas vontades as coisas iam acontecer exatamente daquele, ou de qualquer outro jeito. E o vento vinha e – felizmente – não viera pra ficar. Não iria, porém sem deixar sua marca. E dava pra ouvir sua voz. Com nitidez colossal falava a as coisas todas. Aquele a quem fora repreendido – e a aqu’Ele – a que devia obediência, trouxe. E Tômas, na sua inefável – leveza de ser e – inocência, queria saber por que as pessoas estavam com cara de tristes. Se agora a pouco, houvera os dias frívolos, e fora tanta a alegria reinante.

Ainda muitos ventos, muitas águas, de outros marços, iam passar pra que Tômas entendesse. Lá estavam todos na calçada esperando o táxi. Desarmados de espíritos, limpos de corpos, trajados e perfumados pra ir à missa das cinzas, e foram. Água de chuva, quem sabe, não tivesse cheiro de céu? Um cachorro todo molhado surgiu na rua, veio até a calçada. Sob o pelo do pescoço uma corrente prata, sendo um prateado tão sutil que sumia na pelagem alvíssima! E mesmo sem querer trouxe tristeza. Lágrimas de encher os olhos. E se rolassem pelo rosto, teriam somente gosto de sal? As coisas todas reveladas, mas só a alguns poucos a capacidade de entender. Aos comuns, permaneceriam ocultas. A praça tristemente silenciada. E ia a tristeza andando de mãos nos bolsos, deixando pra trás um rastro de fumo de cigarro, que punha cheiro, nas mãos, nos tocos de pelos da barba de três dias, dentro das ventas, na aba do chapéu. Mais adiante outras mãos, largadas, sem rumo certo procurando o nada. Muitos momentos daqueles um instante e uma vida inteira pra pensar. Os atos vertiginosos impulsivamente cometidos. Arrepender-se-ia? Pra que? Se já pensava no ano que viria, tentaria não agir mais daquele jeito? Com um pouco de sorte retomaria ao que era antes. Uma mão, suja de pó, segurando uma latinha de cerveja, se ia buscando ainda um pouco mais das delícias de momo, findadas. Cores tragicamente mortas jaziam no leito da rua. As cores vivas foram todas pra porta da igreja. Estavam todos lá, ouvindo a missa de tomar cinzas.

Voltar pra casa, às vezes era a melhor opção. Preferível o refúgio da casa a rudeza de debaixo do tempo. Abrigado das vistas do céu, dava pra se ser quem quisesse. Heróis e bandidos lutavam dentro do peito numa batalha sem trégua, sem derrotados, nem vencedores. E sonhos mornos na penumbra do quarto vinham lhe fazer companhia. Sentiam-se tão fracos e pesados que não conseguiam alçar vôo. Deitavam-se manhosos por baixo dos lençóis, entre corpos e espíritos aqueciam-se. A porta do quarto meio aberta dava pra ver as crianças brincando na sala. Não queria adormecer e ter aquele sonho horrível. Dizia, que estavam em Maceió, Juliana ia andando de bicicleta, o cabelo rabo de cavalo balançando. Iam por uma longa avenida, a calçada cheia de gente, a menina pedalava feliz, despreocupada. Pouco a pouco se distanciava, e se perdia de vista. Tômas foi incitado a alcançá-la, porém também não conseguia. E chorava muito por isso. Cadê ela Tômas? A menina simplesmente evaporara. Ó quão triste a dor da perda! Meu Deus como pode acontecer isso… Que coisa terrível! Acordou suado, o coração disparado, nunca mais queria ter aquele pesadelo. Sob o clarão que vinha da janela lá estavam. Como era bom a certeza de tê-los, de poder vê-los. Tômas de frente pra quatro homens anões fortemente armados, ao lado de quatro animais igualmente de plástico rijo, revestido, de placas ricamente pigmentadas, com seus olhares ameaçadores. Faziam-se perfilados no piso esmaltado da sala. E os instruía pra uma missão árdua das quais os incumbiria. Para tal empreendimento teriam que preparar-se. O de trajes azul e verde era chamado de Tiwar, tinha um capacete reluzente que provavelmente fosse supersônico, bem como botas especiais. Estranhamente no lugar da mão direita havia uma espécie de torquês com três garras de ouro. Sua missão era proteger – com a própria vida se preciso fosse – Odin, o de vermelho e branco, que tinha uma espada e um escudo com poderes inimagináveis. O homúnculo de cabeça e vestes de aracnídeo, em posição de ataque aguardava a ordem do comandante era Balder. Finalmente Loki cujos músculos, peitoral, abdômen, bíceps, costureiros e asas fortemente ampliados, sem necessidade de anabolizantes apenas polipropileno puro.

Pois bem, a história ia de vento em popa. Dando a ideia de ser só dele, do menino Tômas. Ora, meu caro, felizmente as coisas nunca são como queremos. Nem mesmo quando o que escreve tendenciosamente procura beneficiar a apenas um protagonista. A campainha tocou. E Aika estranhou que à hora terceira da tarde já viesse o vendedor de pão! Porem não era. Olhando através do gradil da porta, Tômas viu um menino no portão. Vestia uma camisa de meia, surrada, um calção de tecido. Na cabeça um boné com a estampada de Thor. Pelo tamanho viu que aquele era mais velho que ele. De fato devia ter uns nove anos. Perguntou-lhe como se chamava, respondeu que seu nome era Luan. O que queria? Disse que vendia cofres feitos de barro, que podia até brincar com eles, mas que servia mesmo era pra guardar moedas. Pediu-lhe que fosse chamar seu pai pra comprar um. Tômas preferia prolongar a conversa. Conversar com o estrangeiro era mais emocionante que adquirir um mero cofre.

-Quem é este no seu boné? “-É Thor deus dos trovões, relâmpagos e tempestades, as árvores de carvalho, força, e proteção de todos os meninos, e dos fazendeiros. Sua arma é um martelo de guerra mágico chamado de Jolnir que ele atira contra os inimigos, nunca erra o alvo e sempre volta pra suas mãos. Percorre o mundo numa carruagem puxada por dois bodes pretos chamados de Tangrisnir e Tangrisnor. As rodas da carruagem ao rodarem nas nuvens provocavam os trovões nos céus. No castelo onde habita chamado de Thrudvang recebe todos pobres, depois que morrem aqui na terra. Considerada a mais bela das construções com mais de 1.500 acomodações, é pra onde irei um dia. Thor é respeitado na Germânia, na Escandinávia e por todas as tribos e povos viking. O deus Júpiter o homenageou dando seu nome a um dia da semana Dia de Thor, Thor’s Day ou Thursday, quinta-feira em inglês.”

Luan devolveu a pergunta: -E esse aí na sua mão, quem é? “-É Tiwar também chamado de Tyr. O meu herói preferido, o deus das guerras. Ele participou das muitas lutas e batalhas entre os deuses nórdicos, e venceu todas. Numa delas perdeu uma das mãos. Foi assim, Loki irmão de Tyr criava um lobo chamado Fenrir que vivia solto no reinado de Asgard. Esse lobo começou a crescer e ficar tão grande que Loki temeu que viesse um dia a devorar Odin seu pai. Os deuses decidiram que Fenrir devia dali por diante viver acorrentado. Acontece que Fenrir quebrava todas as amarras com lhe eram atadas. No longínquo reinado de Vartalfein, viviam os anões ferreiros, os melhores do mundo. Com a promessa de ouro e riquezas eles concordaram em fazer uma corrente pra prender Fenrir. Ao concluir os grilhões Odin curioso quis saber de que eram feitos. De seis coisas, responderam os homenzinhos: do som que um gato faz quando caminha, da barba de uma mulher, das raízes de uma montanha, dos tendões de um urso, do hálito de um peixe e do cuspe de um pássaro. Não sendo fácil persuadir Fenrir a deixar-se amarrar um acordo foi firmado. Se ele não conseguisse se soltar, eles o soltariam. Fenrir por garantia exigiu que um deles, como prova da sinceridade, colocasse uma das mãos dentro de sua boca. O único que aceitou colocar foi Tyr. O lobo lutou ferozmente sem conseguir libertar-se. Lutou muito sem conseguir furioso decepou a mão de Tyr. O deus Urano, consagrou esse trágico dia com o Dia de Tyr, “ Tyr Day” Tuesday em inglês.”

Outra quarta-feira de cinzas como aquela na vida daqueles, talvez nunca mais houvesse, nunca mais. Só Odin pai de Thor e Tyr o deus da quarta-feira, podia dizer pois neste dia podia interferir nos destinos. Mesmo que tudo parecesse confuso pouco importava, nada daquilo mudaria o rumo das coisas. Indiferente as nossas vontades as coisas tinham de acontecer daquele, ou de outro jeito. Luan desistiu de vender um cofre a Tômas. Virou a aba do boné pra trás. Dum puxão pra cima juntou o calção ao corpo franzino. Pegou nos braços do carrinho de mão. E seguiu rua adiante. Não sem antes, chamar um cachorro branco que estivera o tempo todo na calçada, esperando:

“-Vamos Fenin.”

Fabio Campos 24 de Fevereiro de 2015.

*A Gravura que ilustra este conto, parte dele, foi feita por Tômas Kael (5 anos) neto do autor.