Áurea e adamantina
12 novembro 2013
Áurea e Adamantina, duas mulheres que conheci e de que vamos contar. É preciso que se diga, ambas jamais se conheceram. Contemporâneas, tendo uma, já vivido mais que a outra. Muito mais, que apenas átomos de carbono possam mudar, e separar elementos. Tornando-as tão distintas. Uma, suave, tenra, macia, candura em flor de idade. A outra já avançada em idade, porém inexorável, pétrea, feito Bruce Lee. Ao menos um fato as unia, foram as duas, estudantes da Escola Municipal Senhora Santana. Tomado fui, de forte comoção ao ver dona Adamantina pela primeira vez. Ao entrar na sala de aula, lá estava. Destacava-se frente à algazarra de trinta e poucas cabecinhas irrequietas dos seus colegas de classe. Deslocada, intrusa Adamantina. Naquela época, com seus setenta e poucos anos. Incólume, misturava-se a uma turma de meninas e meninos, com idade de serem seus netos. Doía-me perceber que em meio à bagunça reinante, pouco se fazia conta de sua presença. Ao entrar percebi-a dedicada a extraordinária tarefa de domar as mãos cascudas. Tentava, a muito custo, a façanha de manter firme o lápis entre os dedos. Apertava tanto que lhes fugia o sangue das falanges. E as letras do seu nome, iam surgindo uma a uma. Garatujadas ora sobre, ora sob, a linha da folha de papel branquinha do caderno.
Quase um decano havia se passado até nos encontramos outra vez. Num velório de uma amiga minha e dela, o reencontro. No silêncio daquele ambiente onde as pessoas velavam e oravam o esquife, tive a oportunidade de observá-la melhor. Ali se mostrou muito mais serena que antes havia concebido. Quase dez anos, e praticamente nada havia mudado em si. Algo que sequer a denotasse mais velha. O tempo tem desses artifícios, de moldar as pessoas, dando-lhes a aparência que lhe aprouvesse. Somos obras originais e sem retoques, de extraordinário artista, senhor tempo. Dona Adamantina, em tudo lembrava uma velha índia, da cordilheira andina, boliviana. Seu surrado e negro chapéu coco, em sinal de respeito ao evento ali ocorrendo, trazia-o à mão. O que indubitavelmente punha a mostra sua luzidia cabeleira negra derramada duramente até a altura dos ombros. Sobre o porquê de ter parado de estudar, tinha uma história pra contar.
Contou coisas de sua infância. De quando completou nove anos de idade, obrigada a trabalhar na roça. Seu pai o senhor Manoel Brasiliano, era homem bruto, de poucas palavras. Sua mãe, dona Rosário da Divina Pastora, no mundo colocou dezenove divinas criaturas, ao mesmo tempo humanas. Pelo menos seis deles não vingaram. Adamantina estava entre os sobreviventes. E todo ano, quando Deus punha no céu seus sinais de que próximas estavam as chuvas, início da invernada. A família toda era obrigada a ir pra roça. E disse categórica: “-Amigo! Enxada é fruto que nunca amadurece!” O sol ainda era só promessa de clarear as veredas, e na casa todos já estavam acordados. A mãe na beira do fogo preparava uma refeição a base de feijão, arroz e carne seca com farinha de mandioca, que era levada pro roçado, num saco, que tinha um cordão franzido na boca. Os pequenos ajudavam levando apetrechos, facão, foice, cabaças d’água, enxadas. Tomavam café de caco, sem coar, com pedaços de rapadura pra adoçar. E duma cuia, iam tirando com a mão, fubá de milho, untado com leite, e ovo frito. Com aquele desjejum puxavam pra meio dia. Aprendera a manejar o arado. Dizia que mesmo com aquela idade, se entregasse a ela uma pareia de bois, num arado, garantia que sozinha daria conta de um lote de vinte tarefas de terra, ao cabo de um dia de serviço. E achava aquele trabalho muito mais maneiro, que a difícil empreitada de escrevinhar seu nome numa linha de papel. E que aquele toquinho de lápis, pra ela, era muito mais complicado de domar do que uma canga de bois emparelhados no arado.
Um dia Adamantina, viu crianças indo pra escola. Achou interessante. E como iam felizes, brincando contentes. Daí concluiu que a escola devia ser um lugar bom, e teve o desejo de ir também. Ao chegar a casa, depois de mais um dia de trabalho, fatigada do serviço duro. Dirigindo-se ao pai pediu: -“Pai! O senhor deixa eu ir pra escola?”. O homem rude rebateu sua proposta, dizendo que o serviço no campo era mais importante. Adamantina já esperava tal reprovação, e contra argumentou garantindo que, o tempo supostamente perdido na escola recuperaria com o trabalho de arado. Mas o homem estava irredutível. E pra colocar ponto final naquela história, disse que moça que queria aprender a ler, o interesse era tão somente pra escrever carta pros namorados. E isso pra ele já era em si uma grande desfeita. Adamantina não dada por satisfeita, tomada de coragem, disse que ele, seu pai, era um homem ignorante. E só porque não tivera tido oportunidade, não devia privar os filhos de estudar. Disse isso de uma só vez. E correu a se trancar no quarto. O pai a seguiu, e fê-la abrir a porta. Se dizendo espantado com o que acabara de presenciar, não admitindo tal afronta, aplicou-lhe uma surra tão severa com o relho de bater nos animais, que no outro dia não teve condições de ir pro campo trabalhar, tal fora o estrago, nas costas, nos braços e nas pernas.
Áurea a outra menina, continuava menina ainda. Apenas dezena e meia de anos tinha, desde a última vez que a vi. Filha de camponeses, também viera do campo. Cabelos encaracolados, derramado até o colo, traziam a cor da avelã, de adocicado perfumo nos cachos. O que mais atraía em seu rosto fino, eram os olhos amendoados, e íris cor grafite. Perspicaz, nas aulas de ciências queria saber o porquê de certas coisas. Se dizia apaixonada pelas palavras e coisas abstratas. A matéria lhe punha certo receio, pelo caráter transitório, porque tudo lhe parecia tão volúvel talvez. O que tanto a gente desejava num dia, noutro poderia não mais querer. Teria um dia, desejado ser menino, só pra ter mais liberdade. Tomar banho na chuva sem blusa, sem a preocupação de cobrir os seios. Queria não ter o desconforto do fluxo de sangue, a cada mês. Achava chato ter que se depilar. Queria saber tin-tin por tin-tin a história do hímen elástico, e se os meninos conseguiam saber se uma menina não era mais virgem só pelo andar. Queria mesmo era jogar bola no campinho, ficar na rua até tarde como seus irmãos podiam. Só porque eram meninos, achava injusto isso. Por outro lado gostava de ser menina. De sentir-se feminina, vaidosa, de se olhar no espelho, fazer maquiagem, usar brincos, pulseiras, coisas que estavam na moda. Queria ter um bumbum maior, pra não ter vergonha de vestir biquíni, por se achar muito magra. E que às vezes, só às vezes, achava meninos tão bobos. Deles que zombavam, e ralhavam ao folhearem, sem autorização. seu caderno. E se encontravam poesias feitas por ela, recitavam em alta voz só para colocá-la em situação vexatória.
Disse-me um dia: “-Áurea Cândida! Acho meu nome horrível!” Tentei persuadi-la do contrário, dizendo-lhe que nomes possuem significados interessantes. E importava buscar a essência das palavras. Por exemplo, áurea significava algo feito de ouro, grafita era um mineral, aquele da ponta de seu lápis, precioso tanto quanto o diamante, e o que separava um do outro em grau de dureza, era apenas um rearranjo nos átomos de carbono que cada um possuía. Cândida vinha de candura, pureza. E que a palavra candidato vem de cândido. Lá na Grécia antiga, os senadores vestiam-se de branco para representar a pureza, de seus atos, na tomada das decisões em favor do povo. Ouviu atentamente a explicação. Para em seguida começar a escrever, creio que mais uma de suas poesias. Quanto ao seu nome, estava lá no meu diário de classe: Áurea Cândida Grafitas de Matos.
Fabio Campos