A MÃO E O MARTELO
3 março 2015
A quaresma havia chegado. Nuvens vinham, e se quisesse, falariam de esperança, de coisas novas e sentimentos dúbios: tristeza, melancolia. E se tudo parecia confuso pouco importava isso nada mudaria o rumo das coisas. Indiferente as nossas vontades as coisas iam acontecer exatamente daquele, ou de qualquer outro jeito. E o vento vinha e – felizmente – não viera pra ficar. Não iria, porém sem deixar sua marca. E dava pra ouvir sua voz. Com nitidez colossal falava a as coisas todas. Aquele a quem fora repreendido – e a aqu’Ele – a que devia obediência, trouxe. E Tômas, na sua inefável – leveza de ser e – inocência, queria saber por que as pessoas estavam com cara de tristes. Se agora a pouco, houvera os dias frívolos, e fora tanta a alegria reinante.
Ainda muitos ventos, muitas águas, de outros marços, iam passar pra que Tômas entendesse. Lá estavam todos na calçada esperando o táxi. Desarmados de espíritos, limpos de corpos, trajados e perfumados pra ir à missa das cinzas, e foram. Água de chuva, quem sabe, não tivesse cheiro de céu? Um cachorro todo molhado surgiu na rua, veio até a calçada. Sob o pelo do pescoço uma corrente prata, sendo um prateado tão sutil que sumia na pelagem alvíssima! E mesmo sem querer trouxe tristeza. Lágrimas de encher os olhos. E se rolassem pelo rosto, teriam somente gosto de sal? As coisas todas reveladas, mas só a alguns poucos a capacidade de entender. Aos comuns, permaneceriam ocultas. A praça tristemente silenciada. E ia a tristeza andando de mãos nos bolsos, deixando pra trás um rastro de fumo de cigarro, que punha cheiro, nas mãos, nos tocos de pelos da barba de três dias, dentro das ventas, na aba do chapéu. Mais adiante outras mãos, largadas, sem rumo certo procurando o nada. Muitos momentos daqueles um instante e uma vida inteira pra pensar. Os atos vertiginosos impulsivamente cometidos. Arrepender-se-ia? Pra que? Se já pensava no ano que viria, tentaria não agir mais daquele jeito? Com um pouco de sorte retomaria ao que era antes. Uma mão, suja de pó, segurando uma latinha de cerveja, se ia buscando ainda um pouco mais das delícias de momo, findadas. Cores tragicamente mortas jaziam no leito da rua. As cores vivas foram todas pra porta da igreja. Estavam todos lá, ouvindo a missa de tomar cinzas.
Voltar pra casa, às vezes era a melhor opção. Preferível o refúgio da casa a rudeza de debaixo do tempo. Abrigado das vistas do céu, dava pra se ser quem quisesse. Heróis e bandidos lutavam dentro do peito numa batalha sem trégua, sem derrotados, nem vencedores. E sonhos mornos na penumbra do quarto vinham lhe fazer companhia. Sentiam-se tão fracos e pesados que não conseguiam alçar vôo. Deitavam-se manhosos por baixo dos lençóis, entre corpos e espíritos aqueciam-se. A porta do quarto meio aberta dava pra ver as crianças brincando na sala. Não queria adormecer e ter aquele sonho horrível. Dizia, que estavam em Maceió, Juliana ia andando de bicicleta, o cabelo rabo de cavalo balançando. Iam por uma longa avenida, a calçada cheia de gente, a menina pedalava feliz, despreocupada. Pouco a pouco se distanciava, e se perdia de vista. Tômas foi incitado a alcançá-la, porém também não conseguia. E chorava muito por isso. Cadê ela Tômas? A menina simplesmente evaporara. Ó quão triste a dor da perda! Meu Deus como pode acontecer isso… Que coisa terrível! Acordou suado, o coração disparado, nunca mais queria ter aquele pesadelo. Sob o clarão que vinha da janela lá estavam. Como era bom a certeza de tê-los, de poder vê-los. Tômas de frente pra quatro homens anões fortemente armados, ao lado de quatro animais igualmente de plástico rijo, revestido, de placas ricamente pigmentadas, com seus olhares ameaçadores. Faziam-se perfilados no piso esmaltado da sala. E os instruía pra uma missão árdua das quais os incumbiria. Para tal empreendimento teriam que preparar-se. O de trajes azul e verde era chamado de Tiwar, tinha um capacete reluzente que provavelmente fosse supersônico, bem como botas especiais. Estranhamente no lugar da mão direita havia uma espécie de torquês com três garras de ouro. Sua missão era proteger – com a própria vida se preciso fosse – Odin, o de vermelho e branco, que tinha uma espada e um escudo com poderes inimagináveis. O homúnculo de cabeça e vestes de aracnídeo, em posição de ataque aguardava a ordem do comandante era Balder. Finalmente Loki cujos músculos, peitoral, abdômen, bíceps, costureiros e asas fortemente ampliados, sem necessidade de anabolizantes apenas polipropileno puro.
Pois bem, a história ia de vento em popa. Dando a ideia de ser só dele, do menino Tômas. Ora, meu caro, felizmente as coisas nunca são como queremos. Nem mesmo quando o que escreve tendenciosamente procura beneficiar a apenas um protagonista. A campainha tocou. E Aika estranhou que à hora terceira da tarde já viesse o vendedor de pão! Porem não era. Olhando através do gradil da porta, Tômas viu um menino no portão. Vestia uma camisa de meia, surrada, um calção de tecido. Na cabeça um boné com a estampada de Thor. Pelo tamanho viu que aquele era mais velho que ele. De fato devia ter uns nove anos. Perguntou-lhe como se chamava, respondeu que seu nome era Luan. O que queria? Disse que vendia cofres feitos de barro, que podia até brincar com eles, mas que servia mesmo era pra guardar moedas. Pediu-lhe que fosse chamar seu pai pra comprar um. Tômas preferia prolongar a conversa. Conversar com o estrangeiro era mais emocionante que adquirir um mero cofre.
-Quem é este no seu boné? “-É Thor deus dos trovões, relâmpagos e tempestades, as árvores de carvalho, força, e proteção de todos os meninos, e dos fazendeiros. Sua arma é um martelo de guerra mágico chamado de Jolnir que ele atira contra os inimigos, nunca erra o alvo e sempre volta pra suas mãos. Percorre o mundo numa carruagem puxada por dois bodes pretos chamados de Tangrisnir e Tangrisnor. As rodas da carruagem ao rodarem nas nuvens provocavam os trovões nos céus. No castelo onde habita chamado de Thrudvang recebe todos pobres, depois que morrem aqui na terra. Considerada a mais bela das construções com mais de 1.500 acomodações, é pra onde irei um dia. Thor é respeitado na Germânia, na Escandinávia e por todas as tribos e povos viking. O deus Júpiter o homenageou dando seu nome a um dia da semana Dia de Thor, Thor’s Day ou Thursday, quinta-feira em inglês.”
Luan devolveu a pergunta: -E esse aí na sua mão, quem é? “-É Tiwar também chamado de Tyr. O meu herói preferido, o deus das guerras. Ele participou das muitas lutas e batalhas entre os deuses nórdicos, e venceu todas. Numa delas perdeu uma das mãos. Foi assim, Loki irmão de Tyr criava um lobo chamado Fenrir que vivia solto no reinado de Asgard. Esse lobo começou a crescer e ficar tão grande que Loki temeu que viesse um dia a devorar Odin seu pai. Os deuses decidiram que Fenrir devia dali por diante viver acorrentado. Acontece que Fenrir quebrava todas as amarras com lhe eram atadas. No longínquo reinado de Vartalfein, viviam os anões ferreiros, os melhores do mundo. Com a promessa de ouro e riquezas eles concordaram em fazer uma corrente pra prender Fenrir. Ao concluir os grilhões Odin curioso quis saber de que eram feitos. De seis coisas, responderam os homenzinhos: do som que um gato faz quando caminha, da barba de uma mulher, das raízes de uma montanha, dos tendões de um urso, do hálito de um peixe e do cuspe de um pássaro. Não sendo fácil persuadir Fenrir a deixar-se amarrar um acordo foi firmado. Se ele não conseguisse se soltar, eles o soltariam. Fenrir por garantia exigiu que um deles, como prova da sinceridade, colocasse uma das mãos dentro de sua boca. O único que aceitou colocar foi Tyr. O lobo lutou ferozmente sem conseguir libertar-se. Lutou muito sem conseguir furioso decepou a mão de Tyr. O deus Urano, consagrou esse trágico dia com o Dia de Tyr, “ Tyr Day” Tuesday em inglês.”
Outra quarta-feira de cinzas como aquela na vida daqueles, talvez nunca mais houvesse, nunca mais. Só Odin pai de Thor e Tyr o deus da quarta-feira, podia dizer pois neste dia podia interferir nos destinos. Mesmo que tudo parecesse confuso pouco importava, nada daquilo mudaria o rumo das coisas. Indiferente as nossas vontades as coisas tinham de acontecer daquele, ou de outro jeito. Luan desistiu de vender um cofre a Tômas. Virou a aba do boné pra trás. Dum puxão pra cima juntou o calção ao corpo franzino. Pegou nos braços do carrinho de mão. E seguiu rua adiante. Não sem antes, chamar um cachorro branco que estivera o tempo todo na calçada, esperando:
“-Vamos Fenin.”
Fabio Campos 24 de Fevereiro de 2015.
*A Gravura que ilustra este conto, parte dele, foi feita por Tômas Kael (5 anos) neto do autor.