FENIX TELÚRICAS
27 Maio 2015
Três meninas se haviam na praça da igrejinha. Amanda, Jéssica e Veridiana. A um só tempo falavam, falas de meninas tenras. Dos poucos mais de dois lustros de vida confabulavam. De como umas as outras, achavam que estavam ficando, feias, deformadas. E que logo, logo, de tanto caírem-lhes os cabelos ficariam carecas. Do ódio às espinhas que mesmo sem terem sido chamadas se lhes vinham. Dos esmaltes da mamãe que roídos descascavam. Do devotado amor ao chocolate. E de meninos chatos que só queriam saber de futebol. Tudo que emitisse algum reflexo, às suas voltas, acabava virando espelho. E o que mais entendiam era que todas as coisas do mundo deviam render graças as suas existências.
“Eu fui no Itororó beber água e não achei
Achei bela morena que no Itororó deixei”
Amanda tinha medo de borboletas. Melhor dizendo, verdadeira fobia a todo e qualquer isento alado. Outro dia, quer dizer, outra noite, em que faltou energia elétrica, quase provocou um incêndio em casa. Atraída pela luz duma vela, uma Betularia negra, uma bela duma mariposa, enfiou-se quarto à dentro. Foi um deus-nos-acuda. Ficou tudo revirado, lençol e colchão chamuscado, e o cheiro de pano queimado permaneceu por um bom tempo. Tinha mania de colecionar coisas, chaveiros, grampos de cabelo, fitinhas de pulso. No último aniversário ganhara um par de pantufas que imitava o rosto duma tartaruga, o que já rendera bela discussão com Jéssica que teimava que era o rosto dum sapo. Num diário escrevia coisas, que a ninguém mais além dela própria era capaz de revelar. De como queria que seu quarto tivesse uma janela enorme, que desse pra ver a rua. E quando viesse o inverno pudesse ver as nuvens despencando do céu. E como queria correr na chuva, só de calcinha. De como às vezes desejaria ser um daqueles meninos pobres, que ficavam o dia todo na rua, e quando chovia como naquele maio, ficavam brincando na sarjeta. Acompanhando a fantástica viajem de seus barquinhos de papel, vencendo o aguaceiro até a bueira no fim da ladeira. E doidos desembocavam no rio, dando adeus a seus donos. Pra debaixo das bicas corriam, a receberem o forte jato que lhes feriam a cabeça, quase a despi-los dos seus trapos. Ficava pensando quem cuidaria deles depois dali. Quem lhes enxugariam os corpinhos magros. Quem lhes envolveriam em lençóis, e lhes serviriam biscoito e uma xícara de leite quentinho. E já bastante fatigados deitariam numa cama conciliariam o sono e sonhariam sonhos onde podiam voar sobre um mar bonito. Voando rumo ao horizonte, a encontrar Peter Pan, na terra do nunca. Suas mães a beira do fogo de certo cantariam cantigas antigas, que falava de bois da cara preta, de pavão em cima do telhado, de ir à Espanha. Enquanto o bule fumegante deitaria um líquido aromático, numa xícara branquinha de dar dó.
“Fui à Espanha buscar meu Chapéu
Azul e branco da cor daquele Céu
Olha palma, palma, palma. Olha pé, pé, pé
Olha roda, roda, roda caranguejo Peixe é.”
Ana Jéssica gostava mesmo de ouvir música de rock’n roll. De ouvir coisas do passado, de fotos antigas. Influência do pai, que era fã dos Beatles, tinha uma guitarra e uma réplica duma Halley Davison. Nos finais de semana, ia a encontros de motoqueiros muito, muito longe, e nunca a levava. Sempre deixada na chácara do tio Armando, ou no sítio de vô Rosalvo e vó Isabel. Preferia a guarda dos avós, ali os abusos eram mais tolerados. Sempre voltava de lá com uma relíquia, tirada dum velho baú de maçaranduba, enlaçado por dois cintos de couro curtido e ensebado. Da última vez ganhou um broche dourado pertencente ao seu bisavô, condecorado por ocasião do sesquicentenário da independência em Brasília. Trazia as efígies, dum lado Bento Gonçalves do outro Anita Garibaldi. Com muito orgulho exibiria entre os colegas da escola, a honra ao mérito do pai de seu avô coronel Idelbrando Costa Rêgo que havia lutado na revolução Farroupilha. De tardinha dava sempre um jeito de assaltar a dispensa, com direito a rapadura batida, mel de mandaçaia, frutas cristalizadas. E tinham os passeios a cavalo quase sempre sem hora pra acabar. Dentre as três meninas, era ela a que mais se preocupava com a aparência. Ainda mais por ser rechonchuda. Brigava com a balança, com os meninos que lhe apelidavam, e com as roupas que iam cada vez mais ficando apertadas. Esse incômodo compensava sendo ainda mais extravagante. Caprichava na maquiagem, no uso de bolsas, colares, pulseiras, cílios postiços e penteados estrambólicos. Gostava do jeito escrachado de Elis Regina. Outro dia, ao sair da escola se inventou de passear na garupa da lambreta de seu primo Plínio, em plena rua acabaram caindo os dois. O que lhes renderia um braço quebrado uma perna luxada. Duas semanas encima duma cama, sem sair de casa. Vieram visitá-la os primos, tias, e a turma da escola. Todos assinariam os nomes no cano de gesso.
“Passarás passarás um delas a de ficar
Se não for a da frente a de ser a de detrás
De detrás de detrás
Tenho dois filhos pequeninos
Não posso mais demorar, demorar, demorar”
Veridiana queria ser guerrilheira das tropas Somozista na Nicarágua. Um dia ainda conheceria aquele mundo mostrado na revista National Geographic. Desbravaria sertões, florestas. Escalaria montanhas, encontraria uma cachoeira, ou quem sabe uma caverna, nunca dantes visitada pela civilização, a qual daria seu nome. Apaixonada por tudo que lembrava natureza. A irmã mais velha Suzy Morgana sua fonte de inspiração era bióloga. Imitava-a nos modos de vestir e pentear-se. Até nos trejeitos das mãos, da entonação da voz. Vez outra levava uns sopapos, por pegar, sem autorização, coisas emprestado, sutiãs, batons, perfumes, aos quais jamais devolveria. Pela fresta da fechadura da porta contígua a sala de estar gostava de espionar o namoro da irmã. No espelho do toucador borrava todo de baton a ensaiar beijos que um dia daria no namorado que um dia teria. Várias vezes viu os namorados trocando carícias viu quando fumavam escondido, e abanavam a fumaça pra rua. Enchiam a boca de chicletes se percebiam que vinha alguém. As guimbas enfiavam na caqueira de samambaias e avencas. Veridiana guardaria ainda um trunfo que usaria para chantagear a irmã, viu-a livrar-se dum monte de comprimidos anticoncepcional enterrando-os no estrume dum pé de Crote. Dias depois sua mãe, elogiava de como vistosa e revigorada estava a planta.
“Minha gatinha parda
Com certeza que sumiu
Onde está minha gatinha
Você, sabe? Você sabe? Você viu?”
Três meninas, sentadas nas poltronas de veludo azul do salão paroquial. Cochilavam umas encostadas nas outras. A noite, haviam passado em claro. No velório do vô Rosalvo. Porque tivera que morrer justo na semana dos ensaios das apresentações, pelo dia das mães na escola. Amanda e Veridiana viram Jéssica voltar do banheiro chorando. Buscou o colo da mãe. Pensaram que era ainda comoção pelo avô, na verdade naquela manhã foi pro banheiro menina e voltou moça. As mãos alvas de sua mãe seguravam um buquê de flores, os dedos longos as unhas pareciam pétalas afagaram os cabelos da menina-moça. Arqueou a boca que dali a pouco beijaria o rosto gélido do pai. Boca com gosto de café requentado. Boca de toda manhãzinha mastigar pão de queijo antes de levar Jéssica a escola. Boca de gritar que meio dia não era hora de tomar sorvete, pois não teria fome pro almoço. Boca de rezar Ave-Marias apressadas para a filha e as amigas da sua filha. Nunca conseguindo terminar. As últimas palavras vindo morrer nos lábios quando já estava deitada. Antes de dormir Veridiana olhava fixo pra bailarina de porcelana sobre o criado mudo, sob a luz do abajur. Jéssica abraçada seu gatinho de pelúcia se sentia tão mais protegida. Amanda deitada, ainda de olhos aberto, olhava através de sua imensa janela imaginária e via um céu de maio. Repleto de nuvens carregadas, dali a pouco ia chover. E no meio da praça três meninos, andando de bicicleta.
Fabio Campos 18 de maio de 2015