A USINA (Parte I)

1 julho 2014


Zefinha era prima de Valdemar, por parte de pai. Valdemar era irmão de Paulo, que era irmão de Manoel, que eram sobrinhos de João Doroteu. E eram primos de Casteado, por parte de mãe, que era sobrinho de Antonio Tenório, que tinha outro irmão, que não recordo o nome agora, mas que era casado com uma irmã de Osvalinda, que era casada com Seu Tibúrcio, que eram compadres de Enéas e Terezinha. E se a gente não der um basta nisso tudo, vai ficar falando somente de quem era parente de quem, e eticétera e coisa e tal. Mas isso tudo é só pra dizer que Zefinha casou com Paulo, e que na verdade eram primos, e tiveram dez filhos. Mas no falar do matuto, só “vingaram” seis. O que queria dizer que apenas seis deles sobreviveram.

Isso porque o matuto tem um jeito de dizer as coisas, que só eles entendem. E tem uns cabras que apesar de ser matuto, sabe cantar umas coisas bonitas por aí. Mas quem é que não acha bonito? Quando o peste diz que pro cabra nascer homem de verdade tem que nascer no sertão. A parteira “Mãe Dedé” quando aparava um cabra macho, não dizia “É menino!” dizia “É homem!” Isso pro cabra já ir se acostumando. E danava um sopro nas ventas pra desentupir o resto de parto. E mandava que o pai fosse enterrar o umbigo, na frente duma igreja ou duma escola: Que era “pra móde” aquele vivente se tornar um bom cristão ou quem sabe um doutor! Só não podia era deixar o gato comer, senão virava ladrão! E o matuto ficava era doidinho quando nascia um “bacurinho” macho! Pábo de orgulho! Assim que começou a gravidez do sexto filho de Zefinha, Paulo foi até a casa de Seu Esaú e pediu pra ele cevar, lá debaixo do alpendre na parte do lado do sul da casa, um cortiço, pra fazer um “Cachimbo”: Uma garrafada de aguardente de cana e mel de Uruçu. Recomendou a Ciço Mouco e Zé Torreiro que engordasse um porco. A dona Tereza, lá de Santana, que morava na Rua da Cadeia, pelo mascate Zé Costa, enviaria um bilhete dizendo que ajuntasse uns dez cágados, no dia aprazado ia pegar. Perus, guinés e galinhas, não precisaria encomendar. O ano todo, tinham no terreiro de casa. Porém tinha um detalhe: só compraria a quem criasse preso, porque galinha solta come merda, lacraia, barata, tudo quanto é porcaria! Tudo era providenciado com antecedência pro dia do batizado. Iria chamar Enéas e Terezinha pra serem padrinhos de vela. E o senhor doutor João Yoyô ilustríssimo juiz de Direito daquela comarca com sua digníssima esposa convidaria pra serem os padrinhos de apresentar! Com certeza não podia faltar o farmacêutico “doutor” Hermidio. Ô homem bom de gogó! Depois de beber umas, o homem cantava umas modas de viola que era uma beleza. “-Ô de casa!? Com licença! Já tô entrando… Ôxente! Cadê o povo dessa casa? Já sei foram tudo catar algodão! E deixaram o rádio ligado coitado, ficou aí cantando sozinho.

“Prepare seu coração para as coisas que eu vou contar

Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar

Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar

E a morte, o destino e tudo, a morte, o destino e tudo

Estava fora de lugar, eu vivo pra consertar”

Êita! Que ano cego era aquele! Valha-me Deus! A última cuia de farinha, Zefinha catou no fundo do bornal, pôs um pouco de sal, molhou com água, até virar uma papa, e deu pros meninos comerem. O mais novo já estava com três anos. Por sugestão do padre Bulhões botaram-lhe o nome de Sebastião, pois no dia do batizado, era dia daquele santo. E era tanta a desolação de “Tiãozinho” e seus irmãos naqueles dias, que nem tinham ânimo pra brincar. Coragem se quer pra correr pelo terreiro, catar uma vagem de algaroba, travar no dente e sentir seu rústico sabor adocicado. Zefinha fez um chá, e o cheiro de capim Santo tomou conta. Trançou um cigarro de palha, pôs-se a fumar. E se já se anuviava as vistas pelas águas dos olhos, a fraqueza, a fumaça azulina mais ainda anuviava. Num semi estado de dormência. E ia se enfiando no cabelo negro, Anum. A sensação efêmera de serotomia, desencadeada pela nicotina, fluindo sobre a pele morena, ressecada. A testa lavrada de temperança, as unhas enegrecidas de carências. Sendo a afetiva a maior delas. O cercado tremia – tristeza. O pé de serra tremia – solidão. A vela acesa, alumiando o quarto tremia – oração. Desmanchou o có-có do longo cabelo. Pôs-se a pentear-se. O cabelo solto lhe fazia um pouco mais nova. De vez em quando “bisóiava” o canto de parede. Passava “o rabo do olho” pras imagens de “meu” padrinho Cícero, e padrinho frei Damião. Padrinho com a cabecinha branquinha, assim meio abaixada. “-Enh! enh! Meu Deus! E não era que eles estavam tudinho ali! Bem no cantinho do primeiro vão da minha taperinha de taipa! O tempo todo!” De repente dum salto ficou de pé, foi até o quarto e voltou com um objeto envolto num pedaço de linho velho desbotado. Novamente sentou-se a porta para aproveitar o clarão do dia e pôs-se a desenrolar sobre as pernas o que tinha embaixo do pano.

“Maria Maria, é um dom, uma certa magia

Uma mulher que merece viver e amar Como outra qualquer do planeta.

Mas é preciso ter raça

É preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca Maria

mistura a dor e a alegria.”

Maria, a filha mais velha se atreveu a perguntar: “-Mãe? O que a senhora vai fazer com a usina?” José, o irmão do meio, olhou assim com olhar estranho, não disse nada, mas pensou: conhecia aquilo como sendo uma máquina. A graciosa “Vigorelli“ era uma máquina de costura manual, sem pedestal. Acoplada num pequeno caixote retangular de madeira servindo-lhe de tampo dum compartimento pra guardar atavios. A manivela tinha o cabo de marfim, o corpo da peça todo em preto, e as letras no lombo, ainda conservava um pouco do dourado. Zefinha ia enxugando os pingos de lágrimas que iam caindo sobre o compartimento de apoio. Fazia tantos anos comprara a Seu Zezé Fonte da usina de corda de caruá. O maquinário era bem parecido com aquele. Desenganou-se da promessa do senador, passou mais de ano pagando, fazia tempo, era dela. Seu Zé Doceiro fazia caldo de cana, moendo, moendo, de tanto esforço os braços ficaram fortes. Ele moía até o bagaço virar uma bucha seca. Aí, ele dava pra burra comer. “- Seu Zé Doceiro era um engenheiro.” Matuto era assim mesmo, tinha mania de botar nome de usina, em tudo que era engenhoca. “-Sendo Seu Zé Doceiro um usineiro. “Entônsse” Seu Leô cego? Aquele que ajeita relógio quebrado era um maquinista?”

“Meu Deus, meu Deus

Setembro passou Outubro e novembro

Já tamo em Dezembro Meu Deus que é de nós?

Meu Deus, meu Deus

Assim fala o pobre do seco Nordeste

Com medo da peste da fome feroz. Ai, ai, ai, ai”

João Dorotheu se estava. sentado no oitão da usina de algodão de Seu Luiz dos Anjos. Zefinha chegou montada numa burra, apeou quase esbarrando no meio-fio. Nos caçuás, algodão. Daí a pouco chegou Enéas. Um olhou pra cá, depois olhou pra lá. Os outros repetiram o gesto. Acenderam cigarro. O azulão do céu ganhou pelo menos mais três pares de olhos. “-Não sei não. Mas como foi que Deus se inventou de criar o mundo?” “Não sabe? Pois então eu vou lhe contar.” E soou um silvo longo, lúgubre apito da usina.

Fabio Campos

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