O Medalhão de Ouro
5 fevereiro 2014
Houve uma tarde, dessas em que um céu se havia em todo seu esplendor. E o silêncio de Deus vinha vindo e pairava sobre toda criatura. E o sol naquele instante dava de chegar, ao mesmo lugar do dia em que Jesus expirou no alto do madeiro. Mas somente aos espíritos elevados era permitido perceber isso. Visto assim o mundo parecia experimentar o preâmbulo da consumação dos tempos. Foi num momento como esse, que um táxi parou na porta do abrigo São Vicente de Paulo. Mais uma idosa acabava de chegar pra compartilhar um dos cômodos junto aos demais internos.
Assentado num barranco, de barro vermelho, no início da Rua São Vicente. Ao sopé do serrote do Pintado, pelo lado Sul, o Asilo para idosos São Vicente de Paulo, é uma construção de linhas simples. Um único bloco, retangular, ornado de janelas na parte externa. Na parte de dentro, um enfileirado de pequenos quartos, guarnecidos de varanda, com caída d’água pra um singelo pátio descoberto, ornado de plantas. Em tudo lembrando um pequeno convento. Ao entrar ali, os olhares convergiam pra capela e o refeitório, estrategicamente localizados. Onze almas de senis cristãos viventes, por aqueles dias, encerravam parte daqueles cômodos. Sete mulheres e quatro homens. Feitos passageiros, de uma nave chamada tempo, estranhamente navegavam, sem saber dia nem hora que iriam desembarcar. A cada quarto, camas de velhos colchões, uma pequena cômoda, um filtro de barro, um copo num pires. Um banheiro igualmente simples, com uma pia, um pequeno espelho quadrado. Um sabonete um rolo de papel higiênico, um lixeiro, um penico de estanho. Invadindo as narinas, forte cheiro de desinfetante, como se a dizer às moscas que ali não eram bem vindas. Porém insensíveis a tal informação, esvoaçavam e iam pousar onde bem entendiam. Em todos os cômodos uma característica comum, as malas dos seus ocupantes pareciam preparadas, prontas pra viagem.
Apoiando-se no braço da zeladora da instituição como se a muito a conhecesse, lá vinha dona Aureliana Feitosa, se deixando ser conduzida pela passarela. Acabava de chegar a décima segunda tripulante, da nave de gastar tempo. Tempo restante de vida. O chofer do táxi, um negro de boné bufante, as seguia levando a surrada malinha de couro preta, contendo tudo o que a velha senhora possuía. O jardim, as Cássias e espadas de São Jorge em rubro e verde tornado. As paredes pintadas, os telhados nada atraía a atenção, da nova hospede. Como se a única coisa que interessasse, naquele momento fosse apenas ir pelo passeio. Não se dava conta de que pra onde estava indo, não havia volta, não havia saída. Se quer dava-se ao trabalho de lançar um olhar aos demais idosos. Dali pra frente seus companheiros de viagem. Relegados ao ato de existir, era hora de estar ali e esperar, e esperar. O traje da tripulação, roupas de dormir. Como se numa máquina de sonho. E sob uma sonolência se permaneceriam, donde só deveriam acordar, quando chegasse o dia do desembarque, assim viviam. Os homens, sentados nas camas, nas cadeiras de balanço dos alpendres, se ocupavam com coisa alguma. Deles, deitados dormiam. As mulheres preferiam conferir os pertences das suas malas, dobrar roupas. A presença de estranhos, a chegada de uma nova companheira de viagem, nada atraía sua atenção.
Dona Aureliana foi conduzida pra um quarto onde havia duas outras mulheres, Benedita e Vicentina. Chegando ali, foi logo perguntando pela mala de sua irmã Clotilde. É preciso esclarecer que dona Aureliana vinha duma tradicional família de pecuarista. Seus pais era dono de uma das maiores propriedades rural, dos tempos em que a cidade ainda era vila. Aureliana tivera seis irmãs. E todas as sete se deram em casamento, constituíram famílias e envelheceram. À medida que iam ficando viúva, iam sendo conduzidas pelos netos e parentes, para o Asilo São Vicente onde permaneciam até morrer. Fazia apenas alguns meses que Clotilde havia morrido. Acontece que tem a história de um relicário, um medalhão de ouro, valioso, porém amaldiçoado. Aureliana botou na cabeça que o colar desaparecido, estaria ali, entre os pertences de sua falecida irmã Clotilde.
Pra contar a história do colar misterioso, vamos ter que voltar um pouco no tempo. Embrenhar-se na caatinga, ir até os idos de 1936 no sertão alagoano. Saber do cangaceiro José Benedito, conhecido na bandidagem, pelo apelido de “Zé Preto” que mantinha um caso com a cangaceira Rosemêire apelidada Sinhazinha. Essa parelha de crias do cangaço, em determinado ataque a fazenda Grota do Pombal, localizada nas imediações da Vila Entre Montes, às margens do “Velho Chico”, degolou friamente o casal de donos da fazenda. Antes de matar a mulher do fazendeiro, subtraíram-lhe um colar de ouro. Uma praga, um mau agouro foi rogado. Na agonia de morte a mulher teria lançado a maldição, do qual ela própria se dizia vítima, que passasse para quem se apossasse daquele colar. Sem entender do que se tratava a cangaceira passou a usar a jóia. Não demoraria muito e a Sinhazinha deu-se em coito com outro cangaceiro, Ao descobrir a traição “Zé Preto” matou o cabra safado que havia se deitado com sua companheira. A maldição havia se cumprido.
Como o colar teria ido parar nas mãos das irmãs Feitosa, é outra história. “Zé Preto” e Sinhazinha acabaram presos pela tropa de soldados do 3º Pelotão da Polícia Militar de Alagoas, cujo quartel ficava na cidade de Santana do Ipanema. Os despojos dos cangaceiros, armas, munições, a tal relíquia de ouro amaldiçoada, entre outras jóias. Tudo foi parar em cima do birô do comandante da brigada. O Coronel Albuquerque, na ocasião era amante justamente da mulher que um dia seria a mãe das irmãs Feitosa. Num de seus encontros amoroso teria presenteado-lhe o colar, o que implicava em perpetuar a maldição.
Dona Aureliana não encontrou a relíquia entre os pertences de sua irmã. O que incluía uma quantidade considerável de bonecas e calungas de pano. E esse mundo de meu Deus vagou, e vagou pelo mar do céu profundo. Feito a arca do dilúvio, a nave terra. Um dirigível tendo acoplado um bojo, o asilo, tripulado pelos anciãos do São Vicente, continuava sua viagem. Dias e dias, entremeados de noites se passaram. Um dia, melhor dizendo, uma tarde, parecida com aquela do início de tudo, em que Noé esperava um sinal de terra firme. E Dona Vicentina vislumbrou na imensidão do céu, uma pomba branca que vinha. Observando melhor viu que se tratava de um cavalo alado. Se destacando entre o azul vespertino, um alvo equino varão, feito nuvem, veio vindo. E se fazia montado por um homem maduro, de cavanhaque, trajado em vestes pretas.
“-Padre Vicente! O Senhor veio me buscar? Minha mala já está pronta! O senhor trouxe a coroa de ouro da rainha Margarida? E meu noivo, o rei Henrique da França, está esperando pra casar comigo? Vou me casar com o rei! Vamos ter quatro filhos: Três meninos e uma menina! Olhe essa boneca padre! Eu ganhei de Clotilde. Eu guardei pra dar a minha filha, que terei com o rei! Vamos padre! O seu cavalo, está machucando a grama do jardim!” Vicentina aos berros esbravejava, o que a um observador comum parecia um monólogo. No entanto se referia a um interlocutor não visível aos demais, e ele estava lá. Se Vicentina conseguisse viver aquele sonhado conto de fadas, seria interessante que não presenteasse sua filha com aquela boneca. Pra não acabar levando pro seu régio matrimônio, a maldição do colar, encerrado e costurado por Clotilde, nas entranhas da boneca.