Destinos em casas decimais
10 janeiro 2014
Negro Benedito depois de velho, já encabeçando os sessenta, botou na cabeça que era vidente. E se inventou de atender o povo, fazendo consultas sobre passado, presente e futuro. Essa história que vou contar aconteceu já faz certo tempo. Como tudo começou, não sei direito, por isso vou contar de onde, e até onde sei. Foi mais ou menos assim, primeiro conheci Damião, filho do velho Benedito. Damião não passava de um menino como eu. Nós nos tornamos amigo, vez outra ia ele a minha casa, e eis que um dia coloquei os pés dentro da casa dele. Senti um calafrio. Ali descobriria a história da vidência de seu pai.
Seu Benedito, era assim, parecia um preto velho desses que só se encontra originalmente na Bahia, no pelourinho ou na Baixa do Sapateiro. Se ao contrário fossemos nós o adivinho, diria que Seu Benedito teria vindo duma comunidade quilombola, nascido numa família prolífera, e que teria terminado de ser criado por um rico fazendeiro. Muito sofrera depois que a mãe morrera, e para sobreviver teve que ser engraxate, vender picolé, fazer frete de carro de mão, teria cuidado de animais na intendência, no vigor da idade fora estivador, conseguira um aposentadoria e agora estava ali, na minha frente. Devidamente trajado de branco, trazia uma quantidade razoável de colares cheio de contas coloridas, no pescoço, e outra dezena de amuletos e patuás, deles que descia até sobre sua imensa pança negra cujos botões da blusa branca de mangas compridas, punha à mostra. Uma barba branca, combinando com a carapinha, escondida em baixo de um chapéu de massa branco. Na beiçola um charuto, ora aceso, ora apagado, porém sempre fedorento. Os olhos do negro, estes mereciam uma descrição especial, primeiro porque eram enormemente incomuns. Além do que eram incomumente avermelhados. Projetavam-se para fora do globo ocular, como se a qualquer momento fossem pular fora da caixa. E se saltassem por certo me atingiria, em cheio, aumentando ainda mais meu medo.
A casa era simples, misturava paredes de taipa com outras de alvenaria, dando um aspecto surreal à construção. A entrada havia uma pequena sala de estar, que mal acomodaria três pares de pessoas. O teto baixo daria pra ser facilmente alcançado caso, um homem mediano, estirasse o braço. As paredes repletas de diversos quadros de santos da igreja católica, porém havia imagens pagãs. Numa mistura de crenças e misticismo. A gravura azulina de Iemanjá, flutuando sobre as águas do mar, repleto de flores, ladeada da imagem de São Pedro. O santo com a chave do céu, de rosto ríspido, de cara fechada, volvendo seu olhar aos céus, como se reprovasse aquele ecumenismo caboclo.
Olhando com aquele olhar de causar calafrio. Como se olhasse através da gente, o velho Biu teria dito: “-Ô! Esse menino! O que veio fazer na minha casa? Não precisa dizer! Eu sei de tudo. Você é amigo de meu filho, e só. É! Mas tem muitas coisas por trás de tudo isso. Coisas que vocês não sabem. Ele está aqui! O tempo todo está bem aqui. Ele me persegue.” Sobre o que estava falando não entendi patavina. E continuou: “-Venha…Vou lhe mostrar!” E me conduziu a um dos quartos da casa, que deu pra perceber tratar-se da sala das consultas. Havia uma cortina vermelha ao fundo. Uma mesa forrada de branco ao centro, à medida que meus olhos foram se acostumando com a penumbra, pude perceber diversas estatuetas espalhadas pelo chão. Uma delas era de um enorme cachorro da raça Collie, igual a cadela Lessie do filme, em posição de sentado atingia a cintura de um homem. Os olhos pareciam ter vida, pintados com tinta fosforescente. Noutro canto a estatueta do capeta, vermelho com seu tridente sorria maliciosamente. Centenas de ex-votos. E velas de cores variadas, algumas acesas. O cheiro que impregnava o ar era de um incenso nauseabundo. Nunca esquecerei aquele cheiro. Não teria Seu Benedito, feito previsões sobre a vida, do menino que acabava de conhecer. Porém algumas coisas interessantes teriam ocorrido ali, talvez isso, fosse o que interessasse aqui ser contado. Como se tivesse se sentindo perseguido, Seu Benedito ficou visivelmente perturbado. Agitando os braços para todos os lados, e dando voltas sobre si mesmo, sem fixar os olhos em lugar algum, começou a falar alto:
“-Ele está aqui. Eu o invoquei e agora não tenho mais como me livrar dele! Se alguém quiser ficar rico ele ajuda! Mas cobra um preço muito caro! Ele não me deixa em paz! Não queira nem saber de quem estou falando. Só precisa saber que é ruim! Dia e noite sem ter paz. Eu só não morri ainda porque tenho o corpo fechado. Não era nem pra dizer isso. Mas já disse.” Antes de sair da casa, dona Maria, a mulher de Seu Benedito, olhando com olhar enigmático disse: “-Você viu? Ele está doente. Ele invocou os espíritos das trevas, pediu pra lhe dizer, as seis dezenas da loteria. Andou fazendo algumas oferendas pra eles, mas não serviu. Eles sempre querem mais. Agora está perturbado.”
No dia que Seu Benedito morreu fui ao sepultamento. O esquife ficou exposto dentro da capelinha do cemitério, intensamente repleto de luz e calor do sol. A luz quase que cegava. O calor sufocava. Além dos poucos familiares, mais ninguém. Agora velas brancas velavam, flores e o forro do pequeno altar. Em solidariedade ao amigo, estávamos ali, ele não chorava. Apenas tentava consolar sua mãe. Só na hora de fechar o caixão criei coragem pra me aproximar. Um rosto de sobrancelhas serradas, de quem morrera com angústia e muita dor.
Seu Belo também estava ali. Seu Belo era dono da bodega, que ficava perto da Cadeia Pública, que ficava virada pra praia. Seu Belo nunca conheceu Seu Benedito, mas estava ali porque era da opinião de que aquele homem precisava descansar em paz. Nenhum dos que ali estavam via Seu Belo. Ele não fazia questão de ser visto, era melhor assim. Fez sua oração pela alma daquele homem, e se foi. Lembro quando ele um dia me disse: “-Na vida nós fazemos escolhas. É preciso ter serenidade, paz no coração. Um dia você nasceu. Nada acontece à toa. Como não é à toa que você está aqui, conversando comigo.”
A uma ensolarada manhã de segunda-feira. Por volta de sete horas, do dia primeiro de março. Do ano em que morrera a princesa Eleonora de Aragon, filha do rei Fernando I de Espanha, Sandro nasceu. No seio de uma família pobre, de camponeses. A um humilde casebre, ao lado da ponte velha, as margens do rio Arno, na velha Florença Sandro veio ao mundo. O pai Felipe Mariano muito comemorou a vinda de mais um varão, nascido em plena primavera. Sandro jamais sonhara, porém se tornaria um dos maiores pintores da renascença. E tão belamente pintou o nascimento da Vênus de Milo.
Fabio Campos