Secretaria mapeia necessidades dos povos tradicionais do Sertão do Rio São Francisco Trabalhos duraram 14 dias no Sertão alagoano contou com a participação de entidades estaduais, federais e da sociedade civil.

Bruno Levy / Ascom Semudh

08 dez 2022 - 12:41


 

Visita da equipe da FPI a Aldeia Koiupanká (Foto: Bruno Levy / Agência Alagoas)

A 11ª etapa da Fiscalização Preventiva Integrada (FPI), realizada entre os dias 20 de novembro e 3 de dezembro, na região sertaneja da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco em Alagoas, onde estão localizadas dezenas de comunidades de povos tradicionais remanescentes do quilombo, aldeias indígenas e de assentamentos, foi encerrada.

O programa agrupa 14 equipes divididas sob coordenação dos Ministérios Públicos Federal (MPF) e Estadual  de Alagoas (MPE), com apoio do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) e do Batalhão Ambiental da Polícia Militar (BPA). Cada equipe tinha objetivos individuais em favor do bioma e da proteção dos povos ribeirinhos dos municípios de Delmiro Gouveia, Inhapi, Pariconha, Água Branca, Olho D’água do Casado e Mata Grande.

Dentre estes objetivos estão: combate do desmatamento; comércio ilegal de animais silvestres; a captação irregular do Rio São Francisco; qualidade da água;  gerenciamento de resíduos sólidos; a extração irregular de minérios; pesca predatória; prejuízo aos patrimônios ambiental, histórico e cultural; e a proteção das comunidades tradicionais.

Equipe 10

No primeiro dia da expedição, em 20 de novembro, numa audiência com todos os participantes, foram traçadas as metas que deveriam ser cumpridas durante as duas semanas de trabalho. A data, inclusive, rememora o Dia da Consciência Negra, visto que os alvos da fiscalização envolvem estas comunidades históricas ribeirinhas do Rio São Francisco, advindas da ancestralidade de povos tradicionais no Estado.

A supervisora técnica de Direitos Humanos e da Igualdade Racial, Cinthia Pessoa, representou a Secretaria da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh) na Equipe 10, que era composta pelo MPF, MPE, BPA, CBHSF, Instituto do Meio Ambiente (IMA), Tribunal de Contas do Estado (TCE/AL), Rede Mulher de Comunidades Tradicionais (RMCT) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

A missão da equipe envolvia a prevenção educativa e a oitiva das demandas ou dúvidas dos populares, a fim de sanar possíveis problemas que estejam enfrentando, evitando a característica punitiva de parte do processo da FPI.

Como desdobramento da FPI, a Semudh realizou a doação de uma cadeira de banho à jovem Poliana Moreira da Silva, de 19 anos, quilombola e portadora de paralisia cerebral. Poliana e Edenilza Moreira da Silva, mãe da jovem, vivem junto com o pai em uma casa de taipa e com dificuldades financeiras. A mãe é incapaz de trabalhar por causa da doença da filha e o pai trabalha no campo. Eles praticamente vivem do benefício previdenciário de Poliana.

Durante visita à residência de Edenilza, ela relatou que utilizava uma cadeira de banho emprestada e que já estava bem avariada. A família é de origem quilombola e, a partir de doações de vizinhos e familiares, conseguiu construir uma casa nova e maior para abrigar Poliana. 

Relatório

Ao fim dos trabalhos, todas as 14 equipes se reuniram no dia 3 de dezembro, no auditório do Campus Sertão da Universidade Federal de Alagoas, para apresentar os relatórios com todas as informações coletadas e que serão entregues a Procuradores da República, representantes do MPF e a todas as entidades participantes, incluindo as secretarias do Governo de Alagoas.

A audiência contou com apresentações artísticas culturais dos povos de terreiro, das comunidades quilombolas e Torés e rituais indígenas para comemorar o fim dos trabalhos e a possibilidade de dias melhores para o povo sertanejo.

No total, foram visitados nove locais, sendo quatro aldeias indígenas, três comunidades quilombolas e dois assentamentos, além de um encontro com povos de terreiros e um sítio arqueológico no Serrote do Craunã.

As histórias e culturas dos povos ribeirinhos

De acordo com o relatório apresentado pelos integrantes, estima-se que cerca de 70 mil indígenas habitam a bacia do Rio São Francisco. São 32 povos vivendo e sobrevivendo desse rio que ainda sustenta muitas dessas famílias. As comunidades quilombolas têm forte presença em todo o Médio e Baixo São Francisco. A tradição dos quilombos com o Velho Chico firma-se desde o século XVII quando começou o desenvolvimento da pecuária extensiva e do período do couro.

Dois assentamentos tiveram enorme importância nos trabalhos da FPI pela preservação de patrimônios da humanidade nos diversos sítios arqueológicos da região. Neste extremo Sertão alagoano, já foram registrados 300 sítios arqueológicos de pintura rupestre, oficinas líticas, sítios a céu aberto e sítios de gravuras, segundo o Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA-IPHAN).

Jeripankó

A aldeia Jeripankó fica no município de Pariconha e foi o primeiro povoado indígena que a FPI visitou. A origem se deve ao aldeamento missionário Curral de Bois, em Pernambuco, promovido pela Igreja até o séc. XVIII, onde conviveram diversos grupos indígenas diferenciados entre si, sendo possível afirmar que a aldeia indígena Pankararu de Brejo dos Padres em Tacaratu/PE configurou-se em território compartilhado etnicamente por vários grupos indígenas, razão pela qual as perseguições que sofreram levaram os Jeripankó a refugiarem-se em Pariconha, onde levantaram aldeias e encontraram a paz.

A população vive numa região de apenas 215 hectares e é reconhecida pela Fundação Nacional Indígena (Funai), mas ainda aguarda a demarcação de terra de 1.110ha pelo poder público federal. São agricultores que sobreviveram durante a grande estiagem dos últimos anos com programas sociais do governo como o Auxílio Brasil e de benefícios previdenciários.

Katokkin

Foto: Bruno Levy / Agência Alagoas

O trabalho seguiu na aldeia de Katokkin, que, curiosamente, diferentemente de outras aldeias visitadas, localiza-se na zona urbana da cidade de Pariconha, onde vivem cerca de 820 indígenas espalhados entre os bairros.

Devido a isso, os indígenas sofrem atualmente um processo discriminatório, onde são acusados de não serem mais índios por terem adotado costumes iguais aos moradores dos povoados, devendo-se, principalmente, à ascendência indígena não se manifestar por sinais biológicos. Os comunitários relatam que eles tiveram de se tornar “invisíveis” entre os povoados destribalizados para sobreviverem às perseguições. Durante centenas de anos misturaram-se, casaram e formaram compadrios nos povoados, mas em segredo mantiveram seus valores tradicionais, especialmente os religiosos.

Koiupanká

A equipe se deslocou até os aldeamentos do município de Inhapi, para ouvir os caciques do grupo indígena Koiupanká. A comunidade possui cerca de 167 famílias, totalizando em média 600 pessoas.

A aldeia, assim como o povoado Katokkin, também sofre preconceito discriminatório pelas misturas de raças. Apesar disso, eles buscam manter as tradições dos antepassados e lutam pela demarcação de terra, território que lhes foram tomados, para desenvolver de forma satisfatória o cultivo de plantações. Atualmente eles possuem apenas pequenas porções de terra nos arredores das casas, com plantações de mandioca, que é beneficiada em uma casa de farinha, para consumo próprio.

Povoado Cruz

O Povoado Cruz, localizado na zona rural de Delmiro Gouveia, é uma comunidade ribeirinha que tem acesso direto ao Rio São Francisco. Certificado pela Fundação Palmares desde 2005, possui cerca de 70 famílias quilombolas residindo no local. O povoado tem como meio de subsistência a pesca e agricultura, principalmente cultivo de milho e feijão.

A comunidade é remanescente de negros escravos do século XIX, que teria surgido, segundo história oral dos próprios moradores, a partir da fuga do escravo Apolinário e da cuidadora Silvana para as terras que hoje ocupam. Apolinário veio junto da comitiva de D. Pedro I, mas ele adoeceu e a comitiva seguiu viagem. Quando melhorou, decidiu fugir acompanhado por Silvana, e se escondeu em caverna de pedras, local onde se formou o povoado.

Foto: Bruno Levy / Agência Alagoas

Sítio Rolas

A comunidade Sítio Rolas surgiu no final do século XIX, em 1890, e tem como matriarca uma senhora conhecida como Dona Ubalda, uma negra que chegou à região ao se libertar da condição de escravizada. Ficou conhecida por sempre ir à igreja, junto ao seu companheiro, usando roupas brancas. O casal passou a ser conhecido na cidade como o casal de rolinhas, o que caracterizou e nomeou a comunidade do Sítio Rolas.

Os presentes revelaram que, por vezes, o nome da comunidade causa constrangimento em serviços e repartições públicas. Segundo relatos, agentes públicos preferem utilizar o nome de Povoado Luciano para evitar a dupla conotação do nome “Rolas”. A população é composta por 43 famílias, sendo que apenas 39 residem atualmente na comunidade, e tem como principal meio de subsistência a agricultura. Além da produção de alimentos, grande parte das famílias conta com programas de assistência social e recebe auxílios como cestas básicas e o Auxílio Brasil.

Assentamentos Lemeirão

O assentamento Lameirão, em Delmiro Gouveia, foi um dos primeiros espaços legitimados pelo Estado na política da redistribuição das terras, a partir do trabalho do Movimento Sem Terra (MST). Numa uma área total de 1.634,3 hectares às margens do Rio São Francisco, lá vivem 40 famílias (108 pessoas), que dependem basicamente da agricultura familiar, com a produção de raízes, hortaliças, grãos e criação de pequenos animais. Desde 2009, o assentamento tem acesso as políticas de comercialização da agricultura familiar Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

A visita ao sítio arqueológico foi conduzida pelos próprios moradores do assentamento que ofertam serviços de trilha aos sítios arqueológicos, assim como imersão no bioma da caatinga.

Nova Esperança

Na zona rural do município de Olho D’Água do Casado, o assentamento Nova Esperança abriga aproximadamente 130 famílias, totalizando cerca de 1200 pessoas que vivem da agricultura familiar e, em menor medida, de aposentadorias e programas de transferência de renda. O local é caracterizado pelo IPHAN como complexo arqueológico devido à grande densidade de registros rupestres que contribuem para o entendimento da ocupação do território brasileiro e, para além da importância científico-cultural, têm grande significação para os moradores locais. 

As moradoras e moradores possuem um mercado próprio de artesanato com símbolos rupestres e conseguem fomentar a economia da associação de moradores com a venda desses objetos para quem visita a região.

Povoado Tingui

Apesar de não ser um alvo do FPI, a equipe se dirigiu até o Povoado Tingui, no município de Água Branca, onde boa parte dos moradores possuem ancestralidade com colonizadores holandeses advindos na época da colonização.

De acordo com os populares, o suposto fundador da região tinha o nome de Arnaldo, um senhor de escravos que fugiu da guerra e, em 1800, teria fundado o atual povoado. Este mesmo Arnaldo teria sido envenenado por um dos escravos que havia torturado, e enterrado numa área repleta de uma erva daninha conhecida como Tingui, daí o nome.

A maior característica da comunidade não é por ser quilombola ou indígena, mas pelos olhos claros característicos em quase todos que vivem lá. A violência castigou a vida dos antepassados, mas hoje o Tingui vive dias melhores e com mais dignidade ao povo agricultor. No intuito de eternizar a história deles, um dos moradores construiu um museu que conta boa parte dela.

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