Em recente artigo “Pandemia e Ressignificações” (22/04/2020), publicado neste site, chamei atenção para a necessidade da ressignificância da compreensão de quem somos. Pretendo em uma sequencia de reflexões pensar o assunto e escrever, publicando-as, se assim achar conveniente o editor.
A sentença “Conhece-te a ti mesmo” já usada na Grécia antiga e cuja autoria é alvo de infindáveis discussões por estudiosos, se constitui em um desafio para todo ser humano que pretenda viver com felicidade.
A autorreflexão do tema, no entanto, não é uma constante a todos os indivíduos no cotidiano. A busca pela sobrevivência tem ocupado a maior parte do tempo da maioria das pessoas fazendo as mesmas terceirizarem, de forma inconsciente, a conclusão acerca de tal reflexão, adotando os “sentidos de ser” que lhes são apresentados.
No rol de terceirizadores, instituições como o “Mercado” e a “Religião” vêm imprimindo “Sentidos de Ser” a revelia e em desconexão com a História e Natureza dos indivíduos. Por vezes, uma avalanche de novos profissionais autodenominados “coaches”, mesclando princípios de uma e de outra dessas instituições também atuam em tal área.
O produto gratuitamente ofertado pelo Mercado é a ideia de que você é o que consome. Nessa perspectiva você deve se reconstituir a cada dia para acompanhar as mudanças da moda e ser “da hora”.
Outrora, o magistral poeta Carlos Drummond de Andrade no poema “Eu Etiqueta” já revelava sua angustia frente a tal perspectiva e denunciava: “Ordens de uso, abuso, reincidências. Costume, hábito, premência, indispensabilidade… É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade.”. A aceitação de tal perspectiva identitária tem levado um número infindável de pessoas à armadilha da fútil e passageira percepção de si como coisa, e de um saudosismo não identificado que brota do íntimo da natureza humana que por vezes é interpretado como infelicidade, Drummond assim expressa tal sentimento:
“Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.”
A percepção de identidade quando tem consonância com a verdade é capaz, de fato, de tornar a “condição humana invencível” como diz o poeta. Entretanto, entre o real e o ideal há o espaço do ilusório onde as premissas do Mercado atuam na natureza humana. Não é simples fugir das armadilhas do mesmo em razão da massificação da propaganda consumista que ocupa nosso cotidiano como um tsunami.
As pessoas internalizam que são o que consomem e/ou o que sonham consumir (casos de patologias psíquicas) direcionando suas tomadas de decisões na vida e escolhas de bem estar, para o possuir, possuir, possuir! A coisificação do outro e a obsolescência programada, inclusive nas relações humanas, afetivas ou não, é assim gerada. Assertivas como “a fila anda”, “tô noutra”, “pegou o beco” passam a fazer parte do vocabulário de muitos, fazendo-os esquecer da aplicação de princípios como o perdão, a compreensão, a paciência, a reciprocidade e o amor em suas relações.
Na busca do autoconhecimento ainda não alcançamos o cume, mas sabemos o suficiente para alegarmos que não somos o “Ter”, não somos o que consumimos.
A compreensão de nossa constituição identitária passa pela apreensão do processo histórico em que vivemos e da própria construção do ser gerada nas escolhas grandes e pequenas, cotidianas e não habituais. Seja como indivíduo ou como coletividade, podemos ir mais longe se alargamos nossa memória às trajetórias dantes vividas tal qual a borracha do estilingue que lança mais longe a pedra quanto mais for esticada para trás.
No rol de nossa trajetória o consumido não passa de um detalhe que se desvanece. As relações e como elas se procedem é que marcam de fato o que somos. Desconfio que não haja compreensão de si sem considerar o outro como componente de si mesmo. Talvez tenha sido esta a motivação da emergência do segundo grande mandamento e esteja aí a catalise da trilha à felicidade.
Caso se esforce um pouco, cada um de nós poderá perceber que não lembramos do que usamos, comemos ou tínhamos a cinco, dez, ou quinze anos atrás. Mas de certo nos lembraremos de situações em que atitudes e gestos se contextualizaram na relação com o outro. O conceito de Ser se desconecta do usar e se fortalece no relacionar.
Acerca do outro terceirizador de sentidos de Ser (a religião) pretendo em breve discorrer.
Por Lenivaldo M. Melo* – colaboração
*É Sociólogo e Docente na UNEAL e na FASVIPA